Sábado, 8 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

Dramaturgia de mercado

(Imagem: Richardson Nicola Pontone)

O remake de Vale Tudo reabriu a velha praça do horário nobre sob a luz ofuscante das métricas. Enquanto a crítica entalava com furos de roteiro, soluções fáceis e direção que, às vezes, polia o atrito social que consagrou a obra de 1988, o caixa cantou alto. Não foi “só” nostalgia: o chamado efeito Odete virou modelo de negócio, com uma inserção publicitária, em média, a cada 50 minutos de arte e a novela cravando o maior faturamento da história da emissora. A notícia se espalhou entre colunas de TV e entretenimento e foi reverberada em veículos regionais e nacionais. O dado é incômodo porque expõe a dissociação entre avaliação estética e resultado industrial: a crítica dói, mas não quebra o cofre.

A reação do público digital foi ruidosa e pedagógica: threads destrincharam descontinuidades, denunciaram o verniz da luta de classe, raça e gênero e zombaram de cenas que, no original, latejavam. Ainda assim, a curva de atenção subiu nos ganchos do arco “Quem matou Odete?”, e a novela manteve tração comercial. Por quê? Porque a régua que decide destino de folhetim é industrial, não literária e, em 2025, mede-se em ecossistema convergente: TV aberta + streaming + social + busca + meme, tudo embalado para vender alcance e repetição. Nesse ambiente, a conversa, mesmo ácida, prolonga vida útil, alimenta curiosidade e organiza presença de marca. Em linguagem de mídia: share of voice continua a valer mais que amor de crítico.

Esse chão industrial é tangível. A Kantar IBOPE Media atualizou, para 2025, a equivalência do ponto de audiência (PNT, 15 mercados): 1 ponto = 270.631 domicílios ou 692.281 indivíduos. Cada décimo de ponto movimenta verbas, mix de canais, promoções e metas de performance digital. É o velho Gross Rating Points (GRP) – pontos de audiência bruta – recauchutado para a economia da atenção. Ao mesmo tempo, o relatório Inside Video 2025 registrou que o vídeo impactou 99,54% dos brasileiros em 2024, com alcance diário acima de 60%, ou seja, quase todo mundo foi tocado por algum fluxo audiovisual, e a TV linear segue estruturando o alcance em faixas horárias estratégicas. A novela, nesse tabuleiro, é nó logístico: concentra massa, irradia conversa, abastece os demais pontos da jornada.

A Globo leu o jogo e operou Vale Tudo como esteira integrada de conteúdo e publicidade. Além dos patrocínios de peso, proliferaram ativações e conteúdos de marca, uma vitrine combinando colocações na narrativa, inserções contextualizadas e presença de anunciante em múltiplas janelas. Listas publicadas por sites de mídia relacionaram um rosário de marcas (banco, telecom, automotiva, bebidas, beleza, higiene, varejo, tecnologia) conectadas ao produto, demonstrando o grau de sinergia do folhetim como hub comercial. O recado aos compradores de mídia é direto: novela boa (ou barulhenta) organiza a semana de campanha.

Mas a TV não virou ‘segunda tela’? Virou no bolso do espectador, nem sempre no bolso do anunciante. As marcas ainda ancoram alcance no prime time da TV aberta e redistribuem frequência no digital. Quando um produto crava recorde comercial, mesmo sob saraivada nas redes, revela-se o paradoxo central do nosso ecossistema: a cultura do celular sequestra o olho, mas é a novela que ainda entrega a praça comum. Mede-se assim: ponto de audiência mais caro em gente, vídeo quase onipresente e um mercado que compra escala garantida, e conversa para amplificar.

Do outro lado da rua, o Globoplay estende o fôlego da trama. Quem abandona na TV pode retomar sob demanda; quem perde capítulo recupera o fio por capítulos-chave; quem quer maratonar o arco de Odete encontra trilhos editoriais. Não à toa, a plataforma completou 10 anos assumindo-se como hub/marketplace do universo Globo, sinalizando crescimento de base e metas de equilíbrio financeiro, um desenho que amarra a novela a uma lógica de retenção e recorrência. Ao mesmo tempo, no mercado de streaming do Brasil, o Prime Video assumiu a liderança no 2º trimestre de 2025, com 22% de participação, à frente da Netflix (21%), enquanto o Globoplay sustentou fatia relevante de dois dígitos e, sobretudo, o acoplamento estratégico com o linear. Para a Globo, jogar nos dois campos mitiga risco: se a crítica ferir um braço, o outro estabiliza.

Essa integração não cai do céu: é parte de uma transformação mediatech que a Globo vem conduzindo desde 2018 e que ganhou corpo em parceria estratégica com o Google Cloud a partir de 2021 (dados, IA/ML, distribuição, operação em nuvem). Resultado prático: elasticidade para modular janelas, turbinar mensuração e orquestrar publicidade em tempo (quase) real. Na linguagem do negócio, é o arcabouço que permite multiplicar formatos – do break com call to action ao corte de rede social, sem interromper o fluxo de entrega.

Voltemos à estética. Dramaturgia não é detalhe: é onde a sociedade se vê e onde uma obra decide ferir ou polir a superfície do país. O remake, por vezes, domesticou o ácido: onde a novela original cuspia ferrugem de corrupção e cinismo de classe, vimos escolhas que anestesiaram o conflito. O problema não é “falta de respeito ao cânone”, é política de representação: quando o mundo do trabalho vira cenário, e não motor ético, o público percebe e rosna (com razão). A questão é que, em ambiente de “dramaturgia de mercado”, o sistema já aprendeu a converter ruído em ativo conversacional, e a compensar fragilidades da forma com exuberância do ecossistema. Não deveria ser assim, mas tem sido.

Há também o contexto estrutural: operamos numa paisagem midiática de alta concentração e propriedade cruzada. O Media Ownership Monitor (RSF/Intervozes) aponta, desde os anos 2010, risco elevado ao pluralismo, com televisão liderando o problema e poucos grupos controlando a maior parte da audiência. Quem tem a praça, pauta a conversa; quem pauta a conversa, define a régua de risco estético. Nesse terreno, remakes viram escolhas prudentes; ousadia, exceção. O resultado? Mais previsibilidade para o caixa, menos ar para experimento formal e político.

Também é papel da crítica, acadêmica, especializada, popular, mapear a nova gramática híbrida que atravessa a novela contemporânea: QR code na chamada comercial que mede conversão, postagem oficial que reescreve sentido da cena no dia seguinte. O vocabulário da publicidade virou componente da dramaturgia; a análise precisa alcançar esse nível do texto. Não é apenas denunciar o furo: é dissecar o desenho do ecossistema que transforma cada capítulo em peça de uma máquina de atenção.

No fim, esse caso Vale Tudo devolve uma síntese nada reconfortante e por isso útil. A pergunta de 1988 (“vale tudo?”) encontrou, em 2025, sua atualização pragmática: vale quanto fatura. A missão de quem faz e de quem pensa comunicação é quebrar essa equivalência e recolocar valor e verdade na arena da forma, do conflito e do comum. Porque a novela ainda paga as contas sim, mas só será praça, de fato, se devolver ao país o estranhamento que o país lhe empresta. Quando a dramaturgia para de sangrar e só perfuma, não temos arte popular: temos gerência de atenção. E o nome disso, caríssimo leitor, caríssima leitora, é justamente o que este texto insiste em problematizar: dramaturgia de mercado.

Fontes:
• “Efeito Odete? ‘Vale Tudo’ bomba em faturamento com propaganda a cada 50 minutos.” O Tempo; e repercussões em veículos regionais. (Jornal “O Tempo” acesso em 29 set. 2025)
• Kantar IBOPE Media — Inside Video 2025 (alcance anual de vídeo: 99,54% em 2024) e atualização da equivalência do ponto de audiência para 2025.
• JustWatch (Q2/2025) via Meio & Mensagem: Prime Video 22% e Netflix 21% no mercado brasileiro de streaming; posicionamento e hubs do Globoplay aos 10 anos.
• Parceria Globo–Google Cloud (estudos de caso e comunicado de 2021).
• Media Ownership Monitor (RSF/Intervozes): alto risco ao pluralismo no Brasil e concentração de audiência na TV.

Comunicador social, professor e documentarista. Docente da Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Divinópolis para os cursos de jornalismo e publicidade e propaganda.