Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Queirós

“A queda drás­tica da taxa de mor­ta­li­dade infan­til em Por­tu­gal nas últi­mas déca­das é geral­mente con­si­de­rada um dos mais rele­van­tes índi­ces de pro­gresso social que fica­rão a mar­car a nossa his­tó­ria recente. Sabe-se como, para esse per­curso de sucesso, que guin­dou o país para luga­res de topo a nível mun­dial na qua­li­dade da saúde materno-infantil, con­tri­buiu, em pri­meiro lugar, o inves­ti­mento na reor­ga­ni­za­ção da rede pública hos­pi­ta­lar, com vista a con­cen­trar os par­tos em uni­da­des de saúde dota­das dos equi­pa­men­tos e recur­sos pro­fis­si­o­nais ade­qua­dos. O nas­ci­mento em ambi­ente hos­pi­ta­lar tornou-se a regra: se há qua­renta anos mais de 90% das cri­an­ças nas­ciam em casa, hoje o número de par­tos fora dos hos­pi­tais reduz-se a algu­mas cen­te­nas por ano.

Pelo menos uma parte des­ses par­tos domi­ci­liá­rios cor­res­pon­derá a uma esco­lha deli­be­rada. Há sinais de que em Por­tu­gal, como em outros paí­ses, se tem vindo a mani­fes­tar nos últi­mos anos, embora per­ma­neça resi­dual, uma nova ten­dên­cia social (outros chamar-lhe-ão uma moda), que leva algu­mas mulhe­res, ou casais, a optar pelo cha­mado ‘parto natu­ral’ em casa. Quem faz ou apoia essa esco­lha argu­menta geral­mente com as van­ta­gens do con­forto e inti­mi­dade do ambi­ente fami­liar no caso de par­tos supos­ta­mente sem risco, em con­tra­ponto a um modelo de assis­tên­cia hos­pi­ta­lar que vê como exces­si­va­mente medi­ca­li­zado e intervencionista.

Esses argu­men­tos são par­ti­lha­dos por quem se dedica ao acom­pa­nha­mento remu­ne­rado dos par­tos domi­ci­liá­rios: alguns enfer­mei­ros, par­tei­ras e as ofi­ci­an­tes da uma nova pro­fis­são, conhe­ci­das como dou­las, que se defi­nem como pres­ta­do­ras de assis­tên­cia emo­ci­o­nal às par­tu­ri­en­tes. E são em geral con­tra­ri­a­dos por pedi­a­tras e espe­ci­a­lis­tas em neo­na­ta­lo­gia, que sali­en­tam os ris­cos des­ne­ces­sá­rios asso­ci­a­dos aos nas­ci­men­tos em casa, por falta dos meios ade­qua­dos para enfren­tar com­pli­ca­ções imprevistas.

‘Gra­vi­dez de baixo risco não é igual a parto de baixo risco’, subli­nhou há dias o pre­si­dente da Soci­e­dade Por­tu­guesa de Obs­te­trí­cia e Medi­cina Materno-Fetal, Luís Graça, numa inter­ven­ção em que clas­si­fi­cou a defesa do parto não hos­pi­ta­lar como um ‘regresso à idade das tre­vas’. Nos últi­mos meses, a polé­mica gerada pela nova visi­bi­li­dade do recurso ao parto domi­ci­liá­rio — para a qual terão con­tri­buído casos recen­tes de mães que cor­re­ram risco de vida, e a morte, nos últi­mos anos, de pelo menos três bebés nas­ci­dos em casa — deu ori­gem a toma­das de posi­ção públi­cas, e con­tra­di­tó­rias, das ordens dos Médi­cos e dos Enfermeiros.

Vem este preâm­bulo a pro­pó­sito da queixa que recebi de uma lei­tora sobre a peça inti­tu­lada ‘Aumento de par­tos em casa por falta de alter­na­ti­vas natu­rais nos hos­pi­tais’, assi­nada por Cata­rina Gomes na edi­ção do pas­sado dia 8 de Abril. Um tra­ba­lho jor­na­lís­tico que, segundo a sua autora, terá visado ‘per­ce­ber o porquê [do recurso aos par­tos domi­ci­liá­rios] no século XXI como opção de mulhe­res com for­ma­ção supe­rior à média’, e ainda até que ponto as razões dessa opção esta­riam ou não a pro­vo­car ‘alguma mudança nos hos­pi­tais públicos’.

Não o enten­deu assim a lei­tora Ana Maria Mes­quita, que viveu recen­te­mente uma tra­gé­dia pes­soal: a morte, após horas de ago­nia, de uma neta recém-nascida em situ­a­ção de parto domi­ci­liá­rio supos­ta­mente apoi­ado por uma enfer­meira e uma doula. A morte da bebé, que deu ori­gem a quei­xas às enti­da­des com­pe­ten­tes e a um inqué­rito à enfer­meira envol­vida, ficou a dever-se a um pro­blema car­díaco difi­cil­mente detec­tá­vel antes do nas­ci­mento, mas sus­cep­tí­vel de ser resol­vido atra­vés de uma cirur­gia urgente. ‘A cri­ança pode­ria ter sido salva se tivesse nas­cido num hos­pi­tal’, afir­mou sobre o caso o pre­si­dente da espe­ci­a­li­dade de Gine­co­lo­gia e Obs­te­trí­cia da Ordem dos Médi­cos, João Silva Carvalho.

A lei­tora viu no artigo do PÚBLICO uma ‘defesa do parto domi­ci­liá­rio, assis­tido por enfer­mei­ros obs­te­tras’, com ‘con­si­de­ran­dos envi­e­sa­dos’ e ‘dados incor­rec­tos’, que ‘poderá ori­en­tar futu­ras par­tu­ri­en­tes para prá­ti­cas inse­gu­ras’. E ainda ‘publi­ci­dade gra­tuita’ ao ‘negó­cio dos par­tos em casa’. Não sendo pos­sí­vel trans­cre­ver nesta cró­nica a sua extensa argu­men­ta­ção, bem como as igual­mente exten­sas expli­ca­ções da jor­na­lista, con­vido os lei­to­res inte­res­sa­dos neste tema sen­sí­vel a con­sul­tar mais adi­ante esses tex­tos. Pode­rão igual­mente ace­der ao artigo em causa no arquivo da edi­ção on line. Cingir-me-ei, aqui, a alguns dos moti­vos de refle­xão que con­si­dero mais rele­van­tes na recla­ma­ção recebida.

Ana Maria Mes­quita aponta ao artigo um erro de facto e várias omis­sões. O erro apa­rece logo no título, que refere um ‘aumento de par­tos em casa’. Na ver­dade, e de acordo com os núme­ros que a jor­na­lista obteve do Ins­ti­tuto Naci­o­nal de Esta­tís­tica, o número de nas­ci­men­tos em casa teve neste iní­cio de século o seu valor mais ele­vado em 2007 (cerca de um milhar), tendo decres­cido desde então. Ainda que se pre­ten­desse ape­nas refe­rir um ‘aumento’ de casos de esco­lha do domi­cí­lio por ‘falta de alter­na­ti­vas natu­rais nos hos­pi­tais’ — o que não está demons­trado nem resulta do que se lê no texto —, o título não dei­xa­ria de ser enga­noso e de con­tra­riar os dados dis­po­ní­veis. Um erro grave no grá­fico que acom­pa­nha o texto (exem­plo de edi­ção negli­gente, que não é da res­pon­sa­bi­li­dade da jor­na­lista) aumen­tava a con­fu­são, ao dar a ‘infor­ma­ção’ dis­pa­ra­tada de que o número de par­tos domi­ci­liá­rios se situ­a­ria pró­ximo do zero na década de 70 do século passado.

Quanto a omis­sões, a lei­tora sus­tenta que o tra­ta­mento jor­na­lís­tico deste tema não deve­ria ter igno­rado, entre outros, pon­tos como os seguin­tes: a liga­ção entre o número de nas­ci­men­tos em casa (ainda que resi­dual) e a exis­tên­cia de ‘um movi­mento orga­ni­zado em defesa des­sas prá­ti­cas’; os inte­res­ses de enfer­mei­ros e dou­las que ‘vivem de um mer­cado ‘ carac­te­ri­zado por pre­ços ele­va­dos (che­ga­rão aos 2.000 euros para as par­tei­ras, mais umas cen­te­nas para as dou­las, além de outras des­pe­sas); a exis­tên­cia de con­tra­tos de duvi­dosa lega­li­dade, que pro­cu­ram des­res­pon­sa­bi­li­zar ‘os envol­vi­dos nes­tas prá­ti­cas (…) de tudo o que possa cor­rer mal’; e, final­mente, os pare­ce­res de auto­ri­da­des médi­cas, por­tu­gue­sas ou estran­gei­ras, desa­con­se­lhando os par­tos em casa.

Cata­rina Gomes con­testa a vera­ci­dade do último ponto, recor­dando que ‘as reti­cên­cias da classe médica’ aos par­tos domi­ci­liá­rios são refe­ri­das de forma bem visí­vel na entrada, e depois num pará­grafo do artigo prin­ci­pal, bem como num segundo texto, em que se refere esta­rem a ser inves­ti­ga­das as mor­tes de três bebés nas­ci­dos em casa. Às outras objec­ções res­ponde gene­ri­ca­mente que se trata de ques­tões exte­ri­o­res aos ‘objec­ti­vos do tra­ba­lho’, o qual, insiste, pre­ten­dia retra­tar os moti­vos que levam um deter­mi­nado número de mulhe­res a olhar com des­con­fi­ança a oferta hos­pi­ta­lar. Pareceu-lhe, escreve, ser esta ‘uma pers­pec­tiva bas­tante mais ino­va­dora do que o já muito batido ângulo que dá conta da exis­tên­cia deste fenómeno’.

Por mim, não subs­crevo as acu­sa­ções de par­ci­a­li­dade ou de publi­ci­dade enca­po­tada diri­gi­das à jor­na­lista. O tra­ba­lho publi­cado a 8 de Abril não ignora as posi­ções dos espe­ci­a­lis­tas que desa­con­se­lham ou con­de­nam o recurso ao parto domi­ci­liá­rio, embora me pareça claro que, na eco­no­mia glo­bal do texto, existe algum dese­qui­lí­brio entre as posi­ções em confronto.

Con­si­dero no entanto per­ti­nente, e mere­ce­dora de refle­xão no plano edi­to­rial, a maior parte das obser­va­ções e repa­ros da lei­tora. O que está aqui em causa, a meu ver, não é a isen­ção. O pro­blema é outro: é o do justo equi­lí­brio entre a opção jor­na­lís­tica por um ângulo ‘ino­va­dor’ — no caso a ten­dên­cia, ou moda, de uma pequena mino­ria a apos­tar no regresso ao parto caseiro — e a noção de res­pon­sa­bi­li­dade social da imprensa. Quando se aborda um tema como este, de evi­dente impor­tân­cia no plano da saúde pública e do escla­re­ci­mento dos cida­dãos, deve esperar-se um maior esforço de con­tex­tu­a­li­za­ção do fenó­meno retra­tado, à luz dos conhe­ci­men­tos dis­po­ní­veis. Por muito ‘batido’ que esteja o ‘ângulo’ dos ris­cos asso­ci­a­dos aos par­tos domi­ci­liá­rios e da con­se­quente pon­de­ra­ção do melhor inte­resse dos nas­ci­tu­ros, o sen­tido de res­pon­sa­bi­li­dade deve­ria ter obri­gado a refe­rir (ou inves­ti­gar) dados como os que a lei­tora con­si­de­rou terem sido omitidos.

Registe-se, a ter­mi­nar, que, na edi­ção de 16 de Abril, Cata­rina Gomes assi­nou um texto inti­tu­lado ‘Parto em casa ter­mi­nou em morte de bebé que sofria de pro­blema car­díaco’, em que narra o mais recente caso conhe­cido (que é o caso acima refe­rido) de um parto domi­ci­liá­rio com este des­fe­cho. Fize­ram bem o jor­nal e a jor­na­lista em dar-lhe o devido des­ta­que, demons­trando aliás que não eram movi­dos por nenhum tipo de par­ci­a­li­dade nesta maté­ria. As infor­ma­ções aí con­ti­das terão cor­ri­gido ou con­tra­ba­lan­çado, junto de quem tenha lido ambas as peças, o que Ana Maria Mes­quita con­si­de­rou ser suge­rido pelo texto do dia 8, ao criticá-lo por poder con­tri­buir para ‘ori­en­tar futu­ras par­tu­ri­en­tes para prá­ti­cas inse­gu­ras’. Ficará agora a fal­tar um tra­ba­lho de fundo que for­neça, de forma com­pleta, equi­li­brada e actu­a­li­zada, todos os ele­men­tos neces­sá­rios para que os lei­to­res se pos­sam sen­tir bem infor­ma­dos sobre este tema sensível.”