Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Queirós

“Anun­ci­ada como um debate que terá par­tido da ini­ci­a­tiva do primeiro-ministro, para ouvir a ‘soci­e­dade civil’ sobre ‘a reforma do Estado’, realizou-se nas últi­mas terça e quarta-feira no Palá­cio Foz, em Lis­boa, uma con­fe­rên­cia inti­tu­lada ‘Pen­sar o Futuro — um Estado para a Soci­e­dade’. Os lei­to­res deste jor­nal foram infor­ma­dos do que lá foi dito nos dis­cur­sos de aber­tura e de encer­ra­mento — a cargo, res­pec­ti­va­mente, do secre­tá­rio de Estado Car­los Moe­das e do pró­prio Pas­sos Coe­lho —, mas foram man­ti­dos na igno­rân­cia do que se deba­teu nas diver­sas ses­sões dedi­ca­das a temas como, entre outros, a edu­ca­ção, a saúde, a segu­rança social ou a defesa. Isto é, não foram infor­ma­dos sobre as teses e argu­men­tos que terão ali­men­tado uma dis­cus­são (se é que houve dis­cus­são) dos pro­fun­dos cor­tes na des­pesa pública que o Governo se pre­para para anun­ciar com o rótulo de ‘reforma do Estado’.

Na ori­gem desta ausên­cia de infor­ma­ção esteve a dis­cor­dân­cia dos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais do PÚBLICOface às regras de cober­tura jor­na­lís­tica que os pro­mo­to­res da con­fe­rên­cia ten­ta­ram impor. Segundo rela­tou a jor­na­lista Sofia Rodri­gues em notí­cia publi­cada no pas­sado dia 16, essas regras foram anun­ci­a­das no iní­cio da ses­são de aber­tura por Sofia Gal­vão, figura des­ta­cada do PSD a quem foi con­fi­ada a orga­ni­za­ção da ini­ci­a­tiva. Nes­tes ter­mos: ‘Não haverá regis­tos de ima­gem e som senão nesta ses­são de aber­tura e na de encer­ra­mento. A per­ma­nên­cia de jor­na­lis­tas na sala pode manter-se, mas não haverá cita­ções de nada que aqui seja dito sem expressa auto­ri­za­ção dos cita­dos’. A orga­ni­za­dora terá ainda acres­cen­tado que tais regras tinham sido ‘per­ce­bi­das e acei­tes pela comu­ni­ca­ção social’.

A jor­na­lista do PÚBLICO, que aban­do­nou o local na sequên­cia deste anún­cio — tal como fize­ram outros repre­sen­tan­tes de órgãos de infor­ma­ção (mas não todos) —, garan­tiu, na notí­cia já refe­rida, que o jor­nal ‘não tinha sido infor­mado pre­vi­a­mente des­tas limi­ta­ções’ ao seu tra­ba­lho. Infor­mada da deci­são tomada por Sofia Rodri­gues, a direc­ção do PÚBLICO aprovou-a e optou por renun­ciar ao acom­pa­nha­mento jor­na­lís­tico dos deba­tes. À excep­ção de uma peça em que se repor­tou, na edi­ção de quinta-feira, o dis­curso final do primeiro-ministro (não abran­gido pelas res­tri­ções anun­ci­a­das), o espaço noti­ci­oso dedi­cado à ini­ci­a­tiva limitou-se assim ao relato do con­di­ci­o­na­mento infor­ma­tivo que a mar­cou, denun­ci­ado em edi­to­rial como ‘uma ina­cei­tá­vel ten­ta­tiva de vedar aos cida­dãos um debate que lhes inte­ressa’. Nesse edi­to­rial — que, tal como se tor­nou regra nos últi­mos anos, não é assi­nado, mas res­pon­sa­bi­liza natu­ral­mente a direc­ção do jor­nal — afirma-se ainda que ‘a con­fe­rên­cia foi feita sob o signo do segredo e da cen­sura prévia’.

A posi­ção assu­mida pelo PÚBLICO foi ques­ti­o­nada por alguns lei­to­res, em sen­ti­dos dife­ren­tes e con­tra­di­tó­rios. Houve quem cri­ti­casse o que foi enten­dido como um boi­cote infor­ma­tivo a uma ini­ci­a­tiva gover­na­men­tal, e houve quem, pelo con­trá­rio, sus­ten­tasse que o jor­nal deve­ria ter igno­rado tam­bém o dis­curso de Pas­sos Coe­lho, como forma de pro­testo con­tra um aten­tado à liber­dade de infor­ma­ção. Duarte Mar­ti­nho, por exem­plo, per­gunta se ‘não deve­riam os jor­na­lis­tas ter boi­co­tado toda a con­fe­rên­cia’ e faz notar que o primeiro-ministro cau­ci­o­nou pes­so­al­mente o con­di­ci­o­na­mento imposto à comu­ni­ca­ção social, ao dizer nesse dis­curso final que aguar­dava que lhe fos­sem entre­gues nos pró­xi­mos dias as con­clu­sões dos deba­tes, que ‘repre­sen­tam fide­dig­na­mente o que foi dito’, não sendo assim con­ta­mi­na­das, no seu enten­der, pela medi­a­ção jor­na­lís­tica. O mesmo ‘incon­ve­ni­ente’, afi­nal, invo­cado por Sofia Gal­vão quando jus­ti­fi­cou as regras adop­ta­das no Palá­cio Foz como uma medida para evi­tar que apa­re­ces­sem na imprensa ‘afir­ma­ções des­con­tex­tu­a­li­za­das’ atri­buí­das aos oradores.

Nem todos os res­pon­sá­veis por órgãos de comu­ni­ca­ção rea­gi­ram do mesmo modo à situ­a­ção cri­ada pelos pro­mo­to­res da con­fe­rên­cia. Entre os que opta­ram por acom­pa­nhar e noti­ciar os deba­tes houve quem garan­tisse ter sido avi­sado das regras res­tri­ti­vas, presumindo-se que com elas se tenha con­for­mado, quer as tenha ou não cum­prido à letra. Soube-se, entre­tanto, que um des­pa­cho dis­tri­buído pela agên­cia Lusa ao iní­cio da noite de segunda-feira expli­cava que, segundo Sofia Gal­vão, ‘a comu­ni­ca­ção social não poderá regis­tar nem citar as decla­ra­ções fei­tas nos pai­néis de debate ‘.

O PÚBLICO, segundo me expli­cou a direc­tora, Bár­bara Reis, ‘não foi con­vi­dado’ a acom­pa­nhar a ini­ci­a­tiva, tendo sabido da sua exis­tên­cia ‘atra­vés de outros meios de comu­ni­ca­ção’. Não teve, tam­bém, conhe­ci­mento atem­pado da con­tro­versa norma adop­tada: ‘Che­gá­mos à con­fe­rên­cia sem saber as regras. Na vés­pera à noite, ao con­sul­tar a agenda da Lusa (não uma notí­cia, a agenda), lemos uma breve nota que fazia refe­rên­cia a limi­ta­ções’. Tratava-se, porém, de uma nota ‘con­tra­di­tó­ria e con­fusa’, em que se lia que ‘o encon­tro é aberto à imprensa escrita, excepto as ses­sões de aber­tura e fecho, que podem ser cober­tas tam­bém pela imprensa de audio e vídeo’ (!).

Nesse mesmo dia, pros­se­gue Bár­bara Reis, ‘a jor­na­lista Sofia Rodri­gues falou com a orga­ni­za­dora da con­fe­rên­cia, para lhe pedir o pro­grama. Nesse con­tacto, em momento algum Sofia Gal­vão falou de regras par­ti­cu­la­res sobre a cober­tura da con­fe­rên­cia ou limi­ta­ções de qual­quer tipo. O pro­grama que nos enviou a seguir tam­bém não aborda o tema’. ‘Com­pre­en­de­mos, conhe­ce­mos e res­pei­ta­mos’, escreve a direc­tora do jor­nal, ‘dife­ren­tes tipos de con­fe­rên­cias e regras para a sua cober­tura. Quando são dife­ren­tes da norma e da tra­di­ção, dife­ren­tes do expec­tá­vel, as regras são apre­sen­ta­das, dis­cu­ti­das e acor­da­das com o jor­nal com ante­ce­dên­cia. (…) Não foi o caso. Pelo con­trá­rio: a con­fe­rên­cia foi apre­sen­tada como sendo ‘aberta à soci­e­dade civil’ e ao PÚBLICO não che­gou qual­quer aviso pré­vio de que esta seria uma con­fe­rên­cia com regras diferentes’.

Assim, a afir­ma­ção gené­rica de que a ‘comu­ni­ca­ção social’ acei­tara as nor­mas em ques­tão não é de todo rigo­rosa, devendo ainda notar-se que uma nego­ci­a­ção nesse sen­tido não é subs­ti­tuí­vel por uma decla­ra­ção uni­la­te­ral à Lusa. Bár­bara Reis con­si­dera por isso que o que se pas­sou con­fi­gura ‘uma que­bra dos vín­cu­los de con­fi­ança, leal­dade e res­peito pelo tra­ba­lho dos jor­na­lis­tas’, e explica que foram pon­de­ra­das várias opções para rea­gir à situ­a­ção, tendo pre­va­le­cido a que os lei­to­res já conhecem.

Não valerá a pena repro­du­zir aqui todas as crí­ti­cas já diri­gi­das aos pro­mo­to­res da ini­ci­a­tiva. Parece-me evi­dente que a ten­ta­tiva de difi­cul­tar a infor­ma­ção sobre quem disse o quê no Palá­cio Foz (com a notó­ria excep­ção para Moe­das e Pas­sos Coe­lho), tal como a entrega exclu­siva da cap­ta­ção e edi­ção de sons e ima­gens dos deba­tes a fun­ci­o­ná­rios do Governo, se inse­rem numa lógica de pro­pa­ganda e con­trolo da infor­ma­ção, que só pode pre­ju­di­car o escru­tí­nio inde­pen­dente e a cre­di­bi­li­dade das con­clu­sões que serão entre­gues ao primeiro-ministro.

É óbvio que nada impede os gover­nan­tes ou quem os apoia de orga­ni­za­rem as reu­niões que enten­de­rem, com as regras que enten­de­rem, e não custa ima­gi­nar bons moti­vos para con­ci­liá­bu­los mais dis­cre­tos ou dis­cus­sões de divul­ga­ção limi­tada. Não se con­funda é isso com debate público sobre a ‘reforma do Estado’, des­ti­nado a ouvir ‘o que a soci­e­dade civil quer’, como disse Moe­das. Nem se con­funda a soci­e­dade civil com um punhado de con­vi­da­dos para uma troca de ideias patro­ci­nada pelo Governo. Nem, muito menos, se aceite a ideia, invo­cada pela orga­ni­za­ção, de que a regra da não cita­ção dos inter­ve­ni­en­tes se jus­ti­fi­ca­ria para evi­tar um ‘cons­tran­gi­mento das con­ver­sas’. Quem, de entre as figu­ras públi­cas que pas­sa­ram pelo Palá­cio Foz, se rebai­xa­ria à exi­gên­cia do ano­ni­mato para emi­tir opi­niões, nas suas áreas de conhe­ci­mento, sobre alguns dos mais gra­ves pro­ble­mas do país?

Nada tenho a opor, assim, às crí­ti­cas diri­gi­das pelo PÚBLICO à orga­ni­za­ção do debate, embora dis­corde dos ter­mos uti­li­za­dos no edi­to­rial do dia 16, em que se fala de uma con­fe­rên­cia feita ‘sob o signo do segredo e da cen­sura pré­via’, uma acu­sa­ção mani­fes­ta­mente des­pro­por­ci­o­nada. Nem cri­tico a ati­tude de pro­testo assu­mida por Sofia Rodri­gues, que em qual­quer caso per­tence ao foro indi­vi­dual do livre exer­cí­cio da cons­ci­ên­cia profissional.

Falta, no entanto, res­pon­der às dúvi­das dos lei­to­res. Fez bem o PÚBLICO em igno­rar o con­teúdo dos deba­tes no Palá­cio Foz? Por mim, julgo que não. Pela impor­tân­cia e actu­a­li­dade dos temas dis­cu­ti­dos, pela repu­ta­ção de alguns dos con­fe­ren­cis­tas, tinham à par­tida indis­cu­tí­vel inte­resse noti­ci­oso, sem des­cu­rar o seu enqua­dra­mento no plano polí­tico. A orga­ni­za­ção quis ‘proi­bir’ a cita­ção de decla­ra­ções não auto­ri­za­das pelos seus auto­res? Por que não pedir essa auto­ri­za­ção, se a sua rele­vân­cia o jus­ti­fi­casse? Por que não, em alter­na­tiva, igno­rar essa absurda ‘proi­bi­ção’, em nome do direito e dever de infor­mar? Por que não, mesmo não assis­tindo ao encon­tro, recu­pe­rar o que fosse rele­vante atra­vés de fon­tes fiáveis?

Qual­quer que fosse a solu­ção esco­lhida, deve­ria ter pre­va­le­cido, na minha opi­nião, o dever pri­ma­cial dos jor­na­lis­tas, que é o de infor­mar os seus lei­to­res. Sem pre­juízo do pro­testo con­tra limi­ta­ções cen­su­rá­veis ao livre exer­cí­cio da pro­fis­são. A menos que (como pode sem­pre acon­te­cer na cober­tura de um acon­te­ci­mento) as expec­ta­ti­vas ini­ci­ais de inte­resse público fos­sem defrau­da­das por falta de rele­vân­cia ou novi­dade da maté­ria noti­ci­osa. Porém, pelo que vi refe­rido na imprensa que repor­tou os deba­tes, algu­mas suges­tões e pro­pos­tas mar­can­tes em áreas como o cál­culo das pen­sões, o dese­nho do Ser­viço Naci­o­nal de Saúde, a polí­tica sala­rial ou o grau de auto­no­mia das esco­las — quer se apro­xi­mas­sem ou se afas­tas­sem das actu­ais ori­en­ta­ções gover­na­men­tais — deve­riam cer­ta­mente ter sido dadas a conhe­cer aos lei­to­res deste jornal.”