Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Joaquim Vieira

‘Há muito mais responsabilidade na escolha de uma fotografia para publicação do que por vezes julgam os jornalistas. O provedor regressa ao tema da fotografia.

´Pela primeira vez se dirige` M. Malaca ao provedor, apesar de já ´ter ficado indignado com certas coisas publicadas` neste diário – só que a edição de 23 de Abril ´ultrapassa tudo, e o [seu] sentimento é de nojo´. Quais as razões para tanta repulsa? ´Quase metade da primeira página é preenchida com uma foto de uma triste personagem segurando um chapéu de chuva e ao lado direito uma janelinha na qual se chama a atenção para uma figura MAIOR da Cultura Universal e que deveria merecer mais respeito por parte do jornal, até pelos termos usados para noticiar o evento´. A ´triste personagem` é Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do Futebol Clube do Porto, a entrar na véspera para o Tribunal de Gondomar, em mais um episódio da novela judicial que o envolveu, sob o título ´Apito Dourado: Pinto da Costa e Carolina Salgado vão defrontar-se em tribunal´. A ´figura maior da cultura universal` é o Nobel da Literatura José Saramago, numa imagem de arquivo ao lado do título ´O escritor que subverteu a pontuação numa mega exposição em Lisboa´.

Já na anterior crónica o provedor abordara as orientações para escolha da foto maior de capa, mas vale a pena atender a uma explicação mais substanciada do director do PÚBLICO: ´Só por excepção recorremos a fotos de arquivo, se bem que isso seja (…) mais fácil de escrever do que de concretizar se desejamos uma foto forte. As fotos devem ser do dia ou resultar de um trabalho publicado naquele dia. (…) A escolha das fotos de capa é uma das principais responsabilidades da direcção e da direcção de arte, podendo ocupar várias horas por dia´.

O princípio exposto por José Manuel Fernandes, aplicável à situação em análise, justifica-se num diário que dá primazia à actualidade. Ao contrário do rosto de Saramago, a foto de Pinto da Costa era do dia, com a vantagem de fornecer à primeira página uma solução gráficamente mais interessante e atractiva. Acresce que o jornal não está obrigado à ordenação das notícias segundo uma qualquer escala de relevo (sempre subjectiva) dos protagonistas. Estipula aliás o seu Estatuto Editorial que o ´PÚBLICO estabelece as suas opções editoriais sem hierarquias prévias entre os diversos sectores de actividade, numa constante disponibilidade para o estímulo dos acontecimentos e situações que, quotidianamente, são noticiados e comentados´.

Problema mais sensível, ainda a ver com portuenses fotografados na capa, foi suscitado por Angelina Carvalho a propósito da reportagem ´Tráfico de droga deslocalizou-se para o bairro social do Cerco´, publicada apenas na secção Local da edição Porto de 10 de Junho (com síntese na edição Lisboa mas sem as componentes questionadas).

Reclamou a leitora: ´Na primeira página, no canto superior direito, aparece uma fotografia: em primeiro plano um jovem cigano e em segundo plano um senhor de boné e barba. Acontece que logo no início do texto se refere que entre os indivíduos que nunca saem do bairro há ‘um homem de barba e boné que vende prata’ (para preparar a heroína fumada). Por coincidência infeliz, a pessoa fotografada, deputado da Assembleia da Junta de Freguesia, membro de várias associações locais, com um trabalho comunitário reconhecido, esteve com a equipa de reportagem, a pedido desta, para estabelecer contactos (…). A sua fotografia foi tirada sem autorização, e, relacionada com o texto atrás referido, pode levar, para quem não o conhecer, a conotações pouco agradáveis. Dando de barato que foi um acaso, revela ainda assim pouco cuidado (…) e merece, da parte do jornal, um esclarecimento e pedido de desculpas´.

Tal pedido parece ter existido, mas de forma peculiar, de acordo com a explicação conjunta de Amílcar Correia, subdirector para a edição Porto, e Ana Cristina Pereira, autora da reportagem, defendendo apesar de tudo a opção do jornal: ´Todas as pessoas fotografadas deram a sua autorização (…). Todas as fotografias foram tiradas durante o dia, pelo que nos pareceu evidente que nenhuma retrata o movimento nocturno de tráfico reportado no texto (…). O jornal foi informado de que uma das duas pessoas retratadas na fotografia (…) estava descontente. Achava que poderia haver alguma má interpretação (…). Decidiu-se telefonar às duas pessoas a pedir desculpa e republicar essa fotografia como ‘Foto da semana’, rubrica que sai ao sábado [só na edição Porto]. Na legenda torna-se a explicar que ‘de dia o Bairro do Cerco do Porto é quase pacato’. E afirma-se que nem esta nem as outras fotografias publicadas [na reportagem] representam o universo do tráfico de droga. Apanham momentos da vida do Cerco do Porto a meio da tarde. Há imagens dos rapazes que jogam à malha junto ao ringue, (…) de uma alcoólica que se passeia de garrafa na mão´.

Mas também acerca da foto da ´alcoólica` protestou Angelina Carvalho: ´[É] identificada com o seu próprio nome (Rosa) e [dela] se diz (…) que ‘a alcoólica Rosa passeia entre [os prédios]’. Não se trata de ‘Rosa, que é alcoólica’ mas da ‘alcoólica Rosa’. Ou seja, a sua identificação passou a ser, não o nome, mas a sua qualidade de alcoólica. A senhora em questão pode ter dado o consentimento para a sua fotografia (…) mas, como é evidente, dada a condição de alcoólica que a reportagem refere, as condições psíquicas, cognitivas e emocionais tornarão esse consentimento pouco fiável. Além disso, a utilização de alguém em estado de vulnerabilidade nada acrescenta ao conhecimento do que é tratado, revela crueldade para com aquela pessoa e significa que o jornal se sentiu protegido, (…) porque esse alguém não se pode defender, (…) não tem os meios, os instrumentos ou os dispositivos para o fazer. (…) Depois de se saber que a reportagem saiu, todo o bairro a lê e comenta, reforça-se a imagem de degradação daquela pessoa (…) e humilha-se ainda mais a família´.

Os jornalistas admitem neste caso o erro: ´Não devíamos publicar rostos de pessoas embriagadas, como não devemos publicar rostos de pessoas que consumiram outras drogas. O fotógrafo pôs em linha sem pudor, talvez porque a senhora não só deu consentimento (…) como posou para a fotografia´. Defendem porém a menção à personagem: ´Não parece que a referência à sua existência, no texto, seja ofensiva. (…) Toda a gente no Cerco conhece aquela senhora, sabe o seu nome, a sua história. Usamos apenas um nome próprio, prática comum na referência a pessoas que não queremos tornar identificável ao exterior´. (Mas é claro que uma foto – ´escusada´, reconhecem os jornalistas – identifica mais uma pessoa perante a sociedade do que a publicação integral dos dados do seu bilhete de identidade).

Não ficam por aqui os problemas com fotos desta reportagem. Observa ainda Angelina Carvalho: ´Porque conheço o bairro posso dizer que também a fotografia dos jovens legendada com ‘o clima de tensão tem vindo a agravar-se’ está incorrectamente referenciada. Basta olhar para essa fotografia para se perceber que neste grupo não há tensão. São jovens que têm fortes redes de sociabilidade e estavam a jogar quando aceitaram ser fotografados´.

Explicação dos jornalistas: ´O trabalho engloba três textos: um sobre o movimento (nocturno) do tráfico de droga, um com opinião de especialistas acerca da transferência dos fluxos de tráfico (…) para o Cerco, outro com reacções dos moradores sobre o facto de o presidente da Câmara [Rui Rio] ter admitido a hipótese de ‘demolir um bloco se for aconselhável ao nível urbanístico’ (…). Todas as fotografias foram tiradas quando se estava a fazer a reportagem sobre a eventual demolição de algum bloco, e, de forma automática, as pessoas falavam sobre a tensão no bairro associada ao tráfico´.

Parecem razoáveis, aos olhos do provedor, as respostas e a admissão de faltas por parte dos responsáveis pela edição. Espera-se que alertem para pontos cruciais mas que os jornalistas tendem muitas vezes a menosprezar.

CAIXA:

Uma questão de sensibilidade

Duas reclamações recebidas em 20 de Maio no espaço de menos uma hora, ambas de endereços electrónicos da Universidade de Harvard, mostram que as imagens difundidas pelo PÚBLICO on-line afectam particularmente a sensibilidade de pelo menos um par de portugueses expatriados no Massachusetts (EUA). ´Tenho vindo a notar que as fotos (…) estão a aumentar em agressividade´, escreveu Maria Sá. ´A do braço de uma criança morta nos escombros do recente terramoto na China representa um desses exemplos. A que neste momento se encontra, do olhar de um zimbabueano em sofrimento, é, na minha opinião, tão chocante que não deveria invadir e ferir desta forma a sensibilidade de uma pessoa que vos tem como homepage. (…) Concordo que faz parte do trabalho de um jornalista dar a conhecer o drama humano, mas talvez seja possível criar uma página separada para fotos e/ou filmes deste nível emocional tão forte, para, pelo menos, preparar os leitores´. Ao que José Antão acrescentou: ´Tenho vindo a notar (…) maior frequência na inclusão de fotos com conteúdos mais duros e susceptíveis de chocar (…). No ano passado, aquando da explosão numa refinaria na Nigéria, o PÚBLICO – sensatamente – questionou os leitores acerca da inclusão de uma imagem do acidente na primeira página da edição impressa. (…) Manifestei-me contra, visto ser muito mais violência gratuita do que jornalismo. O mesmo se pode aplicar a estes casos´. Segue-se idêntica sugestão, com remissão, a título de exemplo, para a página da BBC News.

As explicações do editor do PUBLICO.PT Sérgio B. Gomes: ´Não existe (…) nenhuma mudança editorial ou intenção deliberada no sentido de mostrar na homepage fotografias ‘chocantes’, ‘agressivas’ ou ‘duras’. Os dois principais critérios que norteiam a selecção de fotografias para a secção ‘Foto do dia’ são a importância noticiosa (…) e a qualidade estética e técnica (…). O PÚBLICO on-line pondera sempre que está perante uma fotografia que dá apenas o horror pelo horror (…). Mas não tem pudor de publicar uma fotografia com inegável importância noticiosa só porque o seu conteúdo pode chocar alguns leitores. Haverá sempre imagens que chocam mais uns leitores do que outros. A realidade em que vivemos é muitas vezes chocante. O PÚBLICO on-line luta por não ser o espelho de um mundo asséptico, expurgado de imagens que mostram acontecimentos na sua faceta mais imediata e crua. A sugestão dos leitores que aponta para uma personalização da homepage de modo a atirar para outro local da página as imagens mais susceptíveis não nos parece plausível. Isso pressuporia criar uma página com diferentes ‘níveis de choque’´.

Em todo o caso, apenas por uma questão de bom senso e bom gosto, julga o provedor que seria de ponderar o processo seguido pela BBC na sua página noticiosa.’