Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

José Queirós

‘De volta a este espaço, regresso também ao tema da minha última crónica: a controvérsia em torno da constituição do jornalista do PÚBLICO José António Cerejo como assistente no inquérito judicial ao chamado caso Freeport. Os leitores terão notado que a polémica prosseguiu entretanto nestas páginas, com um artigo do advogado José Augusto Rocha (edição de 29/8), criticando com veemência essa iniciativa, a que se seguiram uma igualmente veemente réplica de Cerejo (2/9) e, um dia depois, um texto de José Manuel Fernandes, defendendo a utilização desse estatuto legal pelo jornalista, ideia que ele próprio aprovara há cerca de ano e meio, então na qualidade de director do PÚBLICO.

Registe-se ainda a publicação (2/9) de um post-scriptum a um editorial (não assinado, mas presumivelmente da autoria da direcção do jornal), em que se lê que ‘o que nos move [ao PÚBLICO] é ajudar os leitores a formar opinião da maneira mais completa possível’, mas se omite qualquer nova tomada de posição sobre o caso, que entretanto levou mais alguns leitores a manifestar dúvidas sobre a bondade ética da opção feita pelo jornal. O tema gerou também discussão no universo dos blogues (com especial intensidade em jugular.blogs.sapo.pt), com posições contra e a favor do recurso do jornalista à posição de assistente no processo, e novos ângulos para um debate que julgo importante e a que tentarei voltar.

Hoje terei sobretudo em mente as peças da polémica que os leitores puderam seguir nestas páginas, para a essa luz clarificar ou desenvolver alguns pontos da crónica anterior (15/8), em que defendi que Cerejo não ofendeu o preceito deontológico que veda aos jornalistas a utilização de meios ilegais para obter informações — o único que, a meu ver, poderia ser invocado neste caso. Por isso, e tendo reconhecido que o jornalista e o jornal se serviram dos artigos do Código do Processo Penal que regulam a figura do assistente para fins que eventualmente não seriam os do legislador, concluí que ‘no conflito de valores aqui em causa’ deveriam ‘prevalecer os direitos de informar e ser informado, e o dever de o fazer com rigor’. Não dispunha nessa altura da informação, que colhi no artigo de José Manuel Fernandes, de que, ‘como estávamos no Verão e havia funcionários de férias, o acesso dos jornalistas ao processo foi atirado para depois de Agosto’. E concordo com a sua conclusão de que foi o acesso do jornalista do PÚBLICO aos autos que permitiu conhecer, logo que possível, elementos relevantes que lá se encontravam.

A legislação em vigor confere a qualquer cidadão o direito a constituir-se assistente em processos como, entre outros, os de corrupção, peculato ou tráfico de influências. E fá-lo certamente por se considerar, como escreveu o anterior director do PÚBLICO, que ‘nestes crimes há um bem comum a preservar’, o que faz de qualquer cidadão um potencial ofendido. José Manuel Fernandes aproxima esse conceito de ‘bem comum’ — e também aí acompanho o seu raciocínio — à noção de ‘interesse público’ que deve orientar as decisões editoriais.

A questão complica-se pelo facto de o mesmo articulado legal definir o papel dos assistentes como ‘colaboradores do Ministério Público’, competindo-lhes ‘em especial’ funções como as de ‘intervir no inquérito’, ‘deduzir acusação’ ou ‘interpor recurso’. É certo que, neste caso, invocando correctamente as suas obrigações deontológicas, o jornalista se comprometeu perante os leitores a não intervir, de forma nenhuma, no processo. Tendo a sua condição de assistente sido validada pelo juiz competente, o que afasta a infracção deontológica (ainda que não esgote o problema ético envolvido), colocou-se numa posição de acesso privilegiado e directo à fonte primária da informação no caso que se propôs reportar, e esse é, por definição, um bom serviço prestado aos leitores do seu jornal.

Subjacente a esta lógica terá de estar uma interpretação da lei que permita acomodar a figura do assistente a uma função — e aqui só a essa — de escrutínio do processo e da investigação, em nome do interesse público representado pela mediação jornalística, materializado na informação publicada e justificado por se tratar de um processo em que estará em causa o tal ‘bem comum’ que justificou o alargamento aos cidadãos em geral da possibilidade de se constituirem assistentes nos processos referentes a crimes como os que estiveram em causa no inquérito do caso Freeport (embora não tenham sido acolhidos no despacho final de acusação).

Terá sido esse raciocínio que presidiu à controversa iniciativa do PÚBLICO, independentemente de tal interpretação da lei vir ou não a mostrar-se pacífica; e não o é, à evidência, para juristas como o que a criticou nestas páginas. Sem entrar nesse debate, julgo no entanto que essa interpretação não pode legitimar, no plano da ética jornalística, ideias como as de que o jornalista investido em assistente possa ou deva canalizar para o Ministério Público ‘elementos que obteve mas não está em condições de divulgar’, como sustentou (e aqui já não o acompanho) o ex-director do PÚBLICO.

Convém referir que, como já foi notado, e se depreendia da documentação que sobre este caso coloquei no meu blogue, são diferentes os termos em que a anterior e a actual direcção do PÚBLICO se pronunciaram sobre esta figura do ‘jornalista-assistente’. Em 2009, José Manuel Fernandes explicava já que um dos motivos que o levaram a autorizar a iniciativa de Cerejo foi o de considerar que ‘colaborar com a investigação judicial em casos de interesse público não é incompatível com a profissão de jornalista’. Admitia assim que este pudesse, em certas circunstâncias, intervir no processo. Pela minha parte, considero que a fórmula não pode ser aplicada a um caso que cabe ao jornalista noticiar, sob pena de colocar em causa a sua independência profissional e a lealdade devida aos leitores.

Não é essa, aliás, a posição que José António Cerejo tornou pública no mês passado, no texto em que justificou o seu invulgar estatuto no processo. E não é, sobretudo, a posição definida pela actual direcção, como se depreende da explicação que me foi dada pelo director adjunto Nuno Pacheco e que transmiti aos leitores. Recordo que, de acordo com as suas palavras, o apoio da direcção editorial à posição de Cerejo teria de ser entendido nos termos seguintes: ‘1) usar a constituição como assistente no processo ‘com um objectivo claro e exclusivamente profissional: garantir a obtenção, de forma legal e transparente, de informação consistente e documentada sobre um assunto de indiscutível interesse público’; 2) não a usar, em nenhum caso, para ‘intervir efectivamente no processo graças ao estatuto de assistente’ ‘.

Foi neste quadro que considerei defensável e objectivamente útil a opção do jornal, sem deixar de salientar que, tratando-se de uma iniciativa quase sem precedentes, e não tendo esses precedentes gerado reflexão conhecida, ela merecia ser sujeita a um debate clarificador. E, tendo existido uma evolução, ou pelo menos uma clarificação significativa da posição editorial do PÚBLICO nesta matéria, os seus fundamentos deveriam ter sido explicados.

Mas não foi só nesse domínio que a direcção do PÚBLICO não cumpriu, a meu ver, deveres de transparência para com os seus leitores. Uma apreciação definitiva do comportamento ético do jornal neste caso não pode dispensar o conhecimento dos termos em que foi requerido o estatuto de assistente no processo Freeport, bem como da decisão do juiz que o autorizou. Só com esses elementos se poderão afinal desfazer, sem margem para dúvidas, as suspeitas que neste caso se levantaram sobre a boa-fé do jornal e o seu respeito pelos procedimentos recomendados pela deontologia da profissão. E desautorizar, ou não, as críticas à utilização de um disfarce. No caso Freeport, ‘o PÚBLICO envolveu-se da forma que os leitores sabem’, escrevia-se no post-scriptum acima referido. Ora isto, que deveriam ter sabido, ainda não sabem. Insisto, por isso, na recomendação de que esses elementos sejam dados a conhecer aos leitores.

P.S.- A discussão acerca de a lei poder ou não ser interpretada de modo a legitimar o recurso ao estatuto de assistente com o único objectivo de informar a opinião pública é tema para os juristas. No plano do interesse público que deve orientar o bom jornalismo, o que importa defender é que a lei deve facilitar o objectivo que Cerejo e o PÚBLICO quiseram atingir. Um processo em que possam estar em causa actos de responsáveis do poder público, quer venham ou não a confirmar-se, e que não está em segredo de justiça, deve poder ser sujeito, sem quaisquer restrições, ao escrutínio da comunicação social. Só assim se garante o direito fundamental dos cidadãos a serem informados, de forma credível e verificável.’