Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Marcelo Beraba

‘A Folha reconheceu, na edição de sexta, no alto de sua Primeira Página, que publicou uma manchete errada. Não é raro o jornal errar, mas é incomum reconhecer o erro com tanto destaque. A notícia foi publicada dia 11 e tinha como base um relatório divulgado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre trabalho infantil no mundo que incluía dados sobre o Brasil. O texto foi escrito com base nas agências internacionais.

A reportagem informava, entre outros números, que 559 mil crianças e jovens brasileiros entre dez e 17 anos são explorados como trabalhadores domésticos. ‘Brasil tem meio milhão de crianças escravizadas’, dizia a manchete da Folha.

O primeiro sinal de alerta partiu do jornalista André Petry, diretor da revista ‘Veja’ em Brasília. Ele assinou um artigo, ‘Asneira internacional’, em que questionava os números que o relatório da OIT trazia sobre o Brasil. Descobriu que o trabalho não informava sobre a metodologia da pesquisa e que os números nacionais eram de relatórios antigos da Unicef e da OIT.

A Folha decidiu checar os dados que publicou e três jornalistas do seu quadro foram designados para a apuração. O resultado foi publicado anteontem, no alto da capa: ‘Dado sobre escravidão de crianças estava errado’. Dentro, sobre uma manchete semelhante, o jornal informava: ‘Para agência da ONU, é impossível quantificar trabalho escravo de crianças; Folha corrige reportagem de 11 de junho’.

O relatório da OIT não falava em meio milhão de crianças escravizadas, mas de crianças no trabalho doméstico. Descobriu-se, além disso, que os números da OIT também estavam defasados: segundo o IBGE, em 2002 o Brasil tinha 482 mil crianças e jovens em trabalho doméstico.

Mais de 400 mil meninos e meninas em trabalho doméstico é assustador da mesma forma. E é provável que boa parte deles viva sob regime semelhante ao da escravidão. Mas dados errados tiram credibilidade de quem os produz e de quem os divulga.

O jornal assumiu o erro: ‘Falhas de apuração da Folha, má interpretação por parte de uma agência internacional de notícias (AP, Associated Press) e imprecisões nos informes da OIT à imprensa contribuíram para a publicação equivocada’.

Leitores cobram, com razão, que os jornais custam a reconhecer os erros e o fazem timidamente. Também acho isso. Nesse caso, a Folha agiu rápido. Embora tenha sido um dos primeiros jornais no país a reservar um espaço fixo para correções (a seção ‘Erramos’, na página A3), é comum o jornal demorar a reconhecer uma informação errada.

Não é a primeira vez que a Folha estampa uma confissão na Primeira Página, mas é raro. Levantamento feito pelo Banco de Dados do jornal registra seis outros casos desde 1992.

O caso mais explícito de reconhecimento de erro que me recordo aconteceu em 4 de agosto de 2000, quando o ‘Correio Braziliense’ admitiu em manchete: ‘O Correio errou’. Na véspera, tinha publicado reportagem com denúncias contra Eduardo Jorge, ex-secretário da Presidência. Assinava a correção, também sem nenhuma evasiva, o então editor-executivo do jornal, André Petry, o mesmo que agora descobriu erros no relatório da OIT e na manchete da Folha.

Loucos por números

O erro da Folha sugere algumas reflexões. Primeiro, e antes de tudo: os jornais e os jornalistas adoram relatórios e números. Se chegam, então, de agências internacionais, nem se dão ao trabalho de checá-los. Foi o que aconteceu nesse caso. Pesquisas, relatórios e estatísticas são grandes aliados do jornalismo. Ajudam a tirá-lo do impressionismo e do achismo. Mas devem ser usados com parcimônia e critérios senão causam indigestão.

Há um excesso de pesquisas e relatórios nos jornais. Poucas vezes esses informes são tratados com o cuidado que exigem. Deveriam ser vistos como matéria-prima a ser burilada, mas freqüentemente vão para as páginas como chegam.

Contei, de domingo até sexta, 27 reportagens na Folha baseadas em pesquisas ou relatórios. Alguns foram manchetes, como a de domingo passado que dizia que ‘25% dos filhos da elite bebem demais’. Não relacionei nesta contagem os indicadores econômicos diários.

A ânsia por números também fica evidente em grandes coberturas de multidões. Como o jornal já não dispõe, como em outras épocas, do serviço de aferição do Datafolha, fica sujeito a cálculos imprecisos, mas que mesmo assim usa com destaque.

Foi o caso da Parada Gay, em São Paulo, que teria juntado 1,5 milhão de participantes segundo a PM. Como ela chegou a esse cálculo, ninguém sabe. Todos os jornais reproduzem e ponto. Minha opinião é que são chutes. Assim como são chutes várias estimativas que engordam os relatórios que consumimos. O problema não são os relatórios, mas nós, jornalistas, que não sabemos questioná-los e usá-los.

Nesta semana, a Folha publicou outro relatório que me chamou a atenção. Assinado pelo Departamento de Estado americano, dizia que o Brasil não pune tráfico humano, o que é uma verdade. Mas trazia alguns números questionáveis. Segundo o relatório, 75 mil mulheres e adolescentes brasileiras atuam em redes de prostituição na Europa e 5.000 na América Latina.

Onde encontraram esses números? Como o relatório não dizia, pedi ajuda ao correspondente em Washington, Fernando Canzian, que recebeu os dados. Segundo o Departamento de Estado dos EUA, o número de prostitutas brasileiras na Europa é da ONU e do International Helsinki Federation for Human Rights. E o das prostitutas na América Latina, do Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes), de Brasília.

Depoimento da coordenadora do Cecria, Neide Castanha: ‘Gostaríamos muito de ter uma quantificação. Infelizmente, não temos. Não trabalhamos com números, nem sequer com estimativas. Jamais quantificamos’.

E agora?’

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‘‘Não temos dados oficiais’’, copyright Folha de S. Paulo, 20/6/04

‘Leila Paiva é advogada e coordena o Programa Global de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos do Ministério da Justiça.

Ombudsman – Os EUA divulgaram nesta semana relatório em que estimam que 75 mil mulheres e adolescentes brasileiras atuam em redes de prostituição na Europa e 5.000 na América Latina. Esse é um dado oficial?

Leila Paiva Não, não é. Nós não temos dados oficiais dos brasileiros, por isso estamos desenvolvendo um sistema de informação, é um dos projetos do meu programa.

Ombudsman – Você acha que são números confiáveis?

Paiva – Acho um número muito alto, mas como não temos dados precisos, até pode ser que sejam maiores. Não sei se todas as mulheres estão fazendo prostituição. Quando estive lá fora, observei muitas mulheres que podem até terem sido convidadas por rede de trafico, mas que acabam se inserindo no mercado de trabalho. Os números devem ser estimativas, porque muitas dessas pessoas ficam clandestinas.

Sabemos que existe um grande número de mulheres que vão e ficam reféns das redes de prostituição. Isso é verdade, mas não temos como confirmar.

Ombudsman – O relatório estima em 25 mil o número de brasileiros em trabalho forçado no campo. É isso?

Paiva – Nesse caso, então, o Brasil não tem número nenhum. Nós não temos nem esse crime previsto em lei. Queremos que nossa legislação, por conta do protocolo de Palermo, consiga que tráfico para fins de trabalho escravo seja crime. Então nós vamos ter os números.’