Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Paulo Machado

‘O leitor e médico, Dr. Bruno, escreveu para esta Ouvidoria: ‘Considerando que a função da mídia é esclarecer a população, e considerando também o imaginário do público leigo em geral, gostaria que parassem de usar o termo ‘superbactéria’ para a KPC (klebsiela produtora de carbapenemase). Sou médico intensivista, e nos últimos anos tem aumentado os casos de bactérias multirresistentes (resistentes aos antibióticos usualmente utilizados), dentre elas as KPC. Vendo a repercussão nos leigos em geral, o termo dá a entender que é uma bactéria ‘nova’ e que está se disseminando, quando na verdade o número de casos encontra-se dentro do esperado e a bactéria encontra-se presente nos hospitais há algum tempo. É bom também enfatizar que as infecções adquiridas na comunidade (em pacientes que não estavam internados) continua sendo associada a bactérias que usualmente respondem aos esquemas antibióticos utilizados. Portanto, para não causar pânico desnecessário, esclareçam adequadamente a população (obviamente já faço a minha parte, mas seria importante que a mídia também fizesse a dela).’


Fizemos uma análise das 19 matérias publicadas pela ABr sobre o assunto, entre os dias 8 e 25 de outubro. Verificamos que a cobertura ‘não causa pânico desnecessário’ e vem ‘esclarecendo adequadamente a população’, fazendo a parte que lhe cabe.


É claro que a mídia e as autoridades em geral tem tentado reduzir a discussão a seus aspectos mais simples, não aprofundando devidamente a questão. Há muitas abordagens possíveis e necessárias para os leitores entenderem a complexidade e a gravidade do que está ocorrendo. Nesse aspecto, apesar da cobertura da ABr ser bastante abrangente, faltou aprofundar a apuração em algumas questões que suas fontes tentaram minimizar, provavelmente preocupados, como o Dr. Bruno, em não causar pânico na população.


Uma dessas questões refere-se à qualidade das políticas públicas no controle, fiscalização e notificação das infecções hospitalares, admitida em várias das matérias por autoridades sanitárias, entre elas, pelo diretor executivo da Anvisa, Dirceu Barbano: ‘Barbano reconhece que nem todos os estados fornecem as informações com regularidade, provocando discrepâncias entre os números e levando à ausência de um mapeamento nacional. ‘Nós estaríamos em uma situação mais segura para a tomada de decisões se pudéssemos conviver em um ambiente com notificações mais consistentes. O máximo que podemos fazer é cobrar a responsabilidade das pessoas. Não temos mecanismo de punição. Não temos condições de colher os dados nos hospitais. Esperamos que esses alertas mobilizem essas autoridades para que cumpram suas responsabilidades’, declarou na matéria Anvisa prepara nota técnica orientando secretarias a registrarem casos de contaminação pela KPC, publicada dia 22/10.


O mesmo ocorre em relação à prescrição, publicidade e venda dos antibióticos. A fonte da Anvisa declarou na matéria Anvisa vai tornar mais rígida norma de venda de antibióticos para conter superbactéria, publicada dia 20/10, que; ‘Atualmente, o paciente precisa apenas de uma receita simples para comprar antibiótico. No entanto, a maioria das farmácias descumpre a norma e não exige a prescrição médica. O estabelecimento que desobedecer a legislação fica sujeito à aplicação de multa até fechamento do local. ‘Se fôssemos aplicar as penalidades, não haveria farmácia aberta no país. É sabido que as farmácias recorrem a esse sistema’


Mas a aplicação descontrolada de antibióticos na forma de tratamento contra determinadas infecções, utilizada tanto por médicos que os receitam, quanto pela população que se automedica, é só uma das pontas de um imenso iceberg.


O ser humano está no ápice de uma extensa cadeia alimentar e tudo que acontece no decorrer da produção de seus alimentos chegará a ele, de maneira direta ou indireta. As bactérias estão presentes em todas as etapas dessa produção. Se utilizamos antibióticos em qualquer escala, em qualquer ponto dessa cadeia, eles acabarão chegando até nós, junto com as bactérias que tiveram tempo suficiente para se acostumar a eles e desenvolver mutações que as defendam do ‘remédio’.


Na matéria ‘Medidas simples podem evitar contaminação por superbactérias, diz pesquisadora’, publicada dia 23 de outubro, a bióloga Ana Paula Carvalho Assef, do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), declara: ‘ Outro problema […] é o excesso de antibióticos utilizados na criação de animais de corte, que acabam sendo ingeridos pelos seres humanos no consumo de carnes, ovos e leite. Além disso, há o problema dos antibióticos jogados no esgoto pelos hospitais e nos lixões, que contaminam o meio ambiente. ‘Tudo isso junto faz com que as bactérias resistentes sejam selecionadas e vai aumentando cada vez mais a multirresistência’.


Os antibióticos que consumimos, provavelmente em doses cavalares, por meio dos produtos animais (carnes de aves, peixes, suínos e bovinos, ovos, leite e seus derivados) provavelmente em doses cavalares, são também só mais uma ponta do iceberg. O que precisamos nos perguntar, e a ciência investigar para a mídia divulgar, é para onde vão as milhões de toneladas dos dejetos desses animais. Todos sabemos que eles são utilizados em larga escala como fertilizantes ‘orgânicos’ no cultivo de cerais, frutas, legumes e hortaliças que consumimos, quando não são despejados diretamente na natureza, contaminando o solo e a água e outras espécies de animais, dentre elas – as bactérias que se tornam cada vez mais superresistentes.


No final dos anos 90 começou a ser escrito o roteiro do filme ao qual estamos assistindo. O Comitê Especial de Investigação em Ciência e Tecnologia da Câmara dos Lordes, da Grã-Bretanha, fazia um grave alerta: ‘a resistência aos antibióticos está-se espalhando rapidamente por toda a parte’. Dentre as diversas causas citavam:’a prescrição excessiva de antibióticos pelos médicos; o uso de antibióticos nas granjas de aves e suínos; a redução de verbas do Serviço Nacional de Saúde, estão transformando os hospitais em depósitos de bactérias resistentes a antibióticos’.


‘Entre as recomendações do comitê está a de que o uso de antibióticos em granjas seja controlado. No mínimo, deveria ser impedido o uso em animais dos mesmos antibióticos aplicados em seres humanos, para que não se desenvolvam naqueles variedades de bactérias super-resistentes, que depois não se possam controlar nas pessoas. A médio prazo, o uso em granjas deveria ser proibido, tal como já ocorre na Suécia. Um dos argumentos em favor dessa posição está nas pesquisas que mostraram que o número de amostras de Staphylococcus aureus resistentes a antibióticos passou, em cinco anos, de 1,5% para mais de 20% dos casos analisados. O temor maior dos cientistas é o desenvolvimento de bactérias que tenham criado mecanismos capazes de expulsar de seu organismo qualquer tipo de antibiótico.’, escreveu o jornalista Washington Novaes, em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na sexta-feira, 5 de junho de 1998. (*)


No mesmo artigo, é citado: ‘Esses mesmos cientistas prevêem que nos primeiros anos do próximo século [portanto, hoje] surgirão muitos outros microorganismos resistentes. E vários sistemas nacionais de saúde estarão absolutamente despreparados para a emergência. Na Inglaterra, por exemplo, o relatório da Câmara dos Lordes lembra que a redução de custos promovida levou à redução dos níveis de higiene, à superpopulação nas enfermarias, à extinção das câmaras de isolamento de pacientes portadores de doenças contagiosas graves. E tudo isso tem contribuído fortemente para disseminar as infecções hospitalares.’


Não será esse o filme ao qual assistimos agora? O que mais consta em seu roteiro original que ainda não sabemos? Uma das coisas é que as bactérias existem desde muito antes da humanidade e certamente, não só sobreviverão à ela e seus antibióticos como sairão muito fortalecidas dessa guerra. Assim funciona a seleção natural.


A informação vem de recentes pesquisas que mostraram bactérias super-resistentes sobreviventes de viagens pelo espaço, agarradas a minúsculos fragmentos de poeira cósmica, que entram e saem de nosso planeta, em milhares de toneladas, todos os dias. No artigo ‘Seres do espaço: Bactérias super-resistentes poderiam viver fora da Terra’, publicado na revista científica da Fapesp, são descritas as condições em que essas bactérias provavelmente foram criadas no universo, muito antes de nossa Terra existir enquanto planeta.


Quando os cientistas resolveram decretar guerra às bactérias com a descoberta dos antibióticos em meados do século passado provavelmente não tinham idéia do quão poderosas elas eram. Mas hoje, com as informações de que dispomos, graças às pesquisas científicas e à mídia que as dissemina, continuar a enfrentá-las da mesma forma pode ser igual a tentar enxugar o gelo com pano seco – não seria esta uma guerra perdida? Por isso tudo e pelo atual estágio em que se encontra o conhecimento humano, poderíamos começar a pensar formas mais inteligentes de convivermos com aquelas que talvez não sejam nossas inimigas. Tentar eliminá-las pode resultar na nossa própria eliminação. Mudar seu nome, amenizar artificialmente seus efeitos, camuflar a gravidade da situação, tampouco ajuda a resolver o impasse em que nos metemos.


Até a próxima semana.’