Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Paulo Machado

‘Uma ‘grande reportagem’, como o próprio nome diz, indica uma cobertura de fôlego, uma proposta de exaurir um assunto importante em um determinado momento. Como a pretensão é fazer uma cobertura completa, trazendo diversos pontos de vista e mostrando as possíveis divergências de visão, de concepção e de interesses sobre o tema, o risco de não corresponder à dimensão do desafio também é grande.

A redação da Agência Brasil aceitou esse desafio ao pautar o especial ‘Usinas do Rio Madeira: problema ou solução?’ Já no subtítulo do especial está definida a maneira como é abordado o assunto: ‘A construção das hidrelétricas reabre o debate sobre os impactos socioambientais do desenvolvimento’, ou seja, as matérias deveriam reunir informações para o leitor avaliar a construção das hidrelétricas no Rio Madeira sob o ponto de vista do modelo de desenvolvimento adotado pelo governo, indicando também seus possíveis equívocos ou inconsistências segundo os opositores ao projeto. Dentre esses, há que se destacar, além de ambientalistas, os ribeirinhos, cidadãos que moram às margens do rio e dele sobrevivem.

Nas quatro matérias listadas na página eletrônica de abertura do especial são apresentadas opiniões dos principais protagonistas da polêmica: governo federal, ministério público, ambientalistas e governo do estado de Rondônia. No especial é oferecido ao leitor, além dos textos, um passeio por vídeos, áudios, fotos e infográficos. Nele, os recursos da internet, como portadora da convergência das demais mídias, são explorados de maneira a tornar a navegação amigável mesmo para os mais leigos, tecnologicamente falando.

Disponibilizar a informação em diferentes mídias e também reuni-las em um único lugar (internet) faz parte do projeto multimídia da Radiobrás. Quem ganha com ele é o cidadão, que tem acesso à informação pela mídia que lhe convém.

Provavelmente, foi esse passeio integrado pelas diversas mídias reunidas nas páginas da Agência que a leitora Elaine Teixeira dos Santos fez, antes de escrever para a Ouvidoria dizendo: ‘Não pude deixar de admirar esta superapresentação, um presente completo para quem aprecia temas ambientais e excelente fonte de informação. Muito obrigada pelo respeito ao visitante do site Agência Brasil.’ Essa também foi a constatação do júri do Prêmio Caixa de Jornalismo Social, que escolheu a grande reportagem como uma das cinco finalistas na categoria webjornalismo. No ano passado, esse prêmio foi vencido pela Agência Brasil com um trabalho de minha autoria.

Desde a década de 70, o governo brasileiro constrói barragens em nossos rios em nome do ‘desenvolvimento’ sem avaliar completamente os impactos sociais, econômicos e ambientais que elas causam. O custo dessas obras ainda não foi devidamente calculado, principalmente o custo do impacto causado nos ecossistemas atingidos e sua correspondente repercussão na qualidade de vida das pessoas removidas das margens dos rios represados.

Por outro lado, a ausência dessas barragens, ou melhor, da energia que elas produzem, pode comprometer a sustentabilidade energética da economia da nação e do modo de vida de milhões de brasileiros. Essa é uma equação que nunca fecha. As matérias sobre esse debate, mostrando como e por que são tomadas decisões sobre a política energética, dão oportunidade ao cidadão de formar uma opinião sobre o assunto e interferir nessas decisões. Decisões que, se tomadas de forma democrática, contribuem para a formação de uma consciência cidadã sobre os rumos do desenvolvimento.

Ao trazer assunto tão complexo para debate, a Agência dá oportunidade para que os brasileiros reflitam inclusive sobre seus hábitos de consumo nas grandes cidades. Se uma lâmpada é esquecida acesa em São Paulo, uma usina hidrelétrica está funcionando em algum lugar do país para alimentá-la. Esse funcionamento não é inócuo. Se ele traz benefícios aos moradores das metrópoles, ele também provoca danos e desequilíbrios ao meio ambiente em algum outro ponto.

As 71 matérias publicadas entre 4 de junho e 13 de setembro sobre o tema abordam diferentes contradições que refletem inclusive interesses internacionais em torno do projeto, como é o caso da Bolívia, que tem razões tanto para se beneficiar quanto para ser prejudicada, dependendo da maneira como for conduzida a construção das barragens.

O país vizinho protestou sobre o fato de o estudo de impacto ambiental não ter levado em conta as possíveis conseqüências para seu território. A resposta do Itamaraty foi que a decisão compete ao Brasil e que não haverá impacto para a Bolívia. A cobertura não contextualizou essa questão em termos das relações recentes entre os dois paises e rixas antigas sobre a ocupação do Acre. Tampouco procurou saber a posição da organização dos paises da região participantes do Tratado de Cooperação Amazônica após a publicação do estudo de impacto ambiental e dos protestos da Bolívia. A organização havia sido ouvida em maio na matéria Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira preocupa OTCA, diz secretária-geral da organização. As disputas sobre a água devem se tornar cada vez mais importantes nas relações entre os países da região.

O debate sobre o modelo energético brasileiro aparece principalmente em um dos vídeos disponibilizados na página da Agência Brasil. Nele, são analisadas por especialistas as alternativas disponíveis, seus custos e seus benefícios. Mas uma das alternativas não foi lembrada pela reportagem. Segundo o ambientalista Washington Novaes, os Estados Unidos na década de 60 aumentaram em 40% a capacidade de geração de energia sem construir uma única usina hidrelétrica – apenas renovaram o equipamento das já existentes, tornando-as mais eficazes, e melhoraram as linhas de transmissão. A chamada repotencialização das usinas existentes foi tratada nas matérias Especialista recomenda negociação com ambientalistas para viabilizar hidrelétricas do Rio Madeira e Projeto de usinas no Madeira é alvo de outras críticas, além das ambientais, publicadas em fevereiro de 2007. Mas seus endereços não foram anexados às matérias do especial.

Outra polêmica importante refletida nas matérias é a questão da disputa entre as empreiteiras interessadas na obra e os acordos e parcerias entre elas e os fornecedores de equipamentos. Na matéria Quatro grupos empresariais estão interessados em usina no Rio Madeira, publicada em 16 de junho, é citada a exclusão das estatais Furnas e Eletrobrás da concorrência, mas três meses depois a matéria Estatais buscam parceiros para leilão da primeira usina do Rio Madeira, publicada em 10 de setembro, afirma que elas estão no páreo. O que mudou na posição do governo entre junho e setembro não é explicado.

Na matéria Parceria com fornecedores gera divergência entre empresas interessadas em hidrelétricas, publicada em 15 de julho, uma construtora aponta dificuldades para participar da concorrência devido a problemas na definição dos custos dos equipamentos. Uma concorrente, parceira da estatal Furnas, teria ‘fechado’ com fabricantes nacionais o fornecimento. A concorrente fez o estudo de impacto ambiental (EIA) no qual se baseou a licença prévia concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ambas as construtoras são ouvidas na matéria sobre essa polêmica. Todavia, sobre esse assunto, faltou ouvir o governo – que estabelece e deve fiscalizar as regras da licitação.

A questão dos direitos da cidadania permeia toda a reportagem especial da Agência Brasil, que trata tanto dos interesses dos ribeirinhos quanto dos trabalhadores e da população de Rondônia, ouvidos nas matérias. Especialistas manifestam suas opiniões e as autoridades estaduais e federais defendem seus respectivos pontos de vista. As matérias também apontam as perspectivas para o futuro econômico e ambiental da região, que deverão estar sob permanente monitoramento do Ministério Público, de ambientalistas e da população em geral. Ao todo foram ouvidas 103 fontes nas 71 matérias: 57 do governo e do Estado e 46 da sociedade civil. O Poder Legislativo é o grande ausente, com apenas uma fonte: uma deputada federal da região.

A cobertura mostra que, longe de se tratar de um problema simples, com soluções superficiais, o debate sobre o futuro do modelo energético brasileiro entrou para ficar na agenda da cidadania, que pode e deve participar cada vez mais das decisões. Informações para isso não faltam no especial Usinas do Rio Madeira: Problema ou solução?

Até a próxima semana.’