Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Suzana Singer

‘O novo caderno de cultura do jornal ainda não fez jus ao superlativo que carrega no nome. No Ilustríssima, nada é novíssimo, nada remete ao ‘jornal do futuro’, atual obsessão da Folha. No afã de mudar, descartou-se uma marca forte -Mais!-, que circulava havia 18 anos, sem se ter clareza do que colocar no lugar.

O suplemento dominical foi anunciado em linhas bem genéricas: narrativa de alta qualidade, desprovida de jargões acadêmicos, textos de ficção, poesia e ensaios, entremeados de cartuns e quadrinhos.

Os órfãos do Mais! reagiram imediatamente, antes mesmo de ver o novo caderno. Temiam o que eles chamam de ‘predomínio da cultura pop’ ou uma ‘simplificação rasa do conteúdo’. Não foi o que aconteceu -para o bem e para o mal.

Os dois primeiros números trouxeram nas capas reportagens longas sobre assuntos que poderiam estar em Cotidiano -crack e hiperatividade em crianças- e que, apesar de bem escritas e amarradas, não traziam nenhuma novidade nem tinham caráter ensaístico.

Apostar em reportagens que mereçam 400 cm de texto implica deixar repórteres meses investindo em apenas um assunto, como faz a revista ‘New Yorker’, uma das publicações que inspiraram o Ilustríssima (as outras são o ‘New York Review of Books’ e o site ‘Arts & Letters Daily’).

A edição de hoje inverte as expectativas e traz, na capa e na contracapa, uma história em quadrinhos futurista. Não é uma ideia propriamente inovadora -só para citar um exemplo memorável, o Mais!, há seis meses, publicou ‘A Origem das Espécies’, de Charles Darwin, em quadrinhos feitos por Fernando Gonsales, o criador do Níquel Náusea, que também é biólogo.

Havia, naquela ocasião, um ‘gancho’, um motivo para o material jornalístico, que eram os 150 anos da obra de Darwin. Por que agora uma São Paulo de 3014? O Ilustríssima não explica.

O novo caderno dispensou colunistas -Jorge Coli, Marcelo Leite e Marcelo Gleiser, este transferido para Ciência- para, segundo a Secretaria de Redação, ‘fazer desse um espaço em constante renovação, em que o leitor seja positivamente surpreendido a cada edição’.

Para dar uma cara a uma proposta tão volátil, investe-se em capas gráficas: xilogravuras para o crack, ilustrações de Guto Lacaz para hiperatividade e, agora, quadrinhos. A aposta é arriscada. Apesar da alta qualidade do que se produziu (a ilustração de Waltercio Caldas, nas páginas centrais de hoje, surpreende), grandes desenhos ‘gelam’ o material -fotografias, ao contrário, tendem a aumentar a temperatura do que se publica.

Não se trata de condenar o recém-nascido caderno nem de enaltecer os mortos -o Mais! poderia estar mesmo com sua fórmula esgotada- , mas de cobrar do Ilustríssima que diga a que veio.

Como bom suplemento cultural, ele deve ‘despertar o desejo de guardá-lo em uma caixa de papelão’, como definiu a leitora Sirlene Bernardo, que tem 300 exemplares do Mais! em sua casa. Ou, como combina mais com o jornal do futuro, transformá-lo em bites e arquivá-lo para sempre em um iPad.

NEUTRALIDADE RADICAL

A Folha foi bem na cobertura do ataque ao navio com manifestantes pró-palestinos. Sem deixar de publicar todas as reações negativas internacionais, Mundo deu voz a diferentes visões israelenses.

Logo no dia seguinte ao incidente, artigo do embaixador de Israel no Brasil trazia a versão oficial e uma reportagem do correspondente descrevia uma manifestação da direita nacionalista. Depois, o escritor Amós Oz exprimiu a frustração dos judeus da chamada esquerda engajada.

O único erro aconteceu na quarta-feira, quando o título principal de Mundo foi ‘Massacre põe em xeque bloqueio em Gaza’. A se considerar o que diz o governo israelense, não dá para chamar o ocorrido de ‘massacre’.

O conflito palestino no Oriente Médio sempre provoca reações iradas de leitores. As posições são tão exacerbadas que mesmo a isenção é vista como suspeita. Todo cuidado é pouco.

O VÍRUS DO DENUNCISMO

Por dois dias, a Folha trouxe problemas da Natura com o fisco. Para o leitor desavisado, ficou a impressão de que a empresa do vice de Marina Silva sonega impostos. Faltou mostrar que toda grande empresa tem passivo tributário e que a lei vigente dá margens a diferentes interpretações.

Na quarta-feira, a reportagem afirmava que, ‘apesar de cultivar a imagem de politicamente correta, a companhia é alvo de ações cíveis e trabalhistas’. Se toda empresa que tiver uma disputa com um ex-empregado for tachada de incorreta, não sobrará uma em pé.

Faz todo sentido investigar a empresa de quem pretende ser vice-presidente do Brasil, mas precisa fazer reportagem de verdade.’