Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Vera Guimarães Martins

Ok, os tempos são algo irracionais, mas, pelo menos em nome da gravidade da crise, deveria haver um limite para teorias conspiratórias.

“Por favor, comente o horóscopo de hoje (13), que pede a todos os signos que fiquem em casa, busquem a natureza ou se resguardem. Já passou da hora de a Folha assumir que é um jornal de esquerda, socialista e que tem lado, não acha? Ao menos seria decente”, escreveu um leitor que havia lido a “denúncia” da suposta mensagem subliminar contra a manifestação de domingo passado em rede social.

É uma triste condição destes tempos que esse tipo de teoria nasça e procrie na internet. Surpreendente é que tenha sido endossada por um site de notícias de grande audiência, que reclamou do “horóscopo aparelhado” da Folha. Sério?

Qualquer pessoa que, por curiosidade ou profissionalismo, se desse ao trabalho básico de checar os horóscopos dominicais anteriores, disponíveis no site do jornal, perceberia neles a predominância do mesmo tipo de conselho: fique em casa, curta a família, descanse, viaje, encontre seu amor, pratique esportes, saia com amigos. Até os astros sabem que domingo é dia de relax.

Ironia: em 2014, ano eleitoral, a seção foi acusada de viés oposto, o de conspirar contra a eleição de Dilma.

A situação política no Brasil está muito cínica, diria Adoniran Barbosa, mas fica pior quando profissionais abdicam de fazer o que sabem para surfar em ondas fáceis.

Há alguns dias, o decano Janio de Freitas, um dos colunistas mais antigos e identificados com o nome do jornal, noticiou em sua coluna a existência de um plano obscuro destinado a prender o ex-presidente Lula quando de sua condução coercitiva para depor. Um câmera havia “ouvido algo” e estranhou um jatinho com a porta aberta, parado próximo à área VIP de Congonhas, ao lado de um carro da Polícia Federal. O colunista não sabia por que não havia dado certo, mas estava convicto da culpa do juiz Sergio Moro e dos legionários da Lava Jato.

Também aqui caberiam algumas perguntas básicas: jatinhos são presença estranha na área VIP do aeroporto? O carro da PF não integrava o comboio que levou Lula para depor? A imprensa estava toda lá, informa o autor: ninguém mais foi capaz de perceber o golpe engendrado ou eram todos cúmplices?

Impossível saber, porque o colunista não voltou ao assunto. Em compensação, seu texto foi reproduzido pelos veículos pró-governo, inclusive o site desconhecido que deu a história primeiro –agora com foto de Janio e de sua coluna. A grife do autor e o peso da Folha deram fumos de legitimidade a uma teoria que, até que algum indício a comprove, soou e soa estapafúrdia.

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Nesta semana, os lances inesperados (desesperados?) do xadrez entre Lula & Moro elevaram a polarização ao paroxismo. Leitores qualificaram como inaceitável o editorial de sexta (18), que fez reparos à decisão de divulgar grampos do petista na véspera de este se abrigar no foro privilegiado do ministério. “Reconheço que Moro aplicou alguns golpes abaixo da cintura, mas, diante do adversário, o povo releva”, resumiu um leitor. Não deveria.

Não há dúvida do papel de Moro e da Lava Jato no combate à corrupção e na tentativa de redesenhar o país com traços mais republicanos. O juiz conquistou o respeito nacional também pela habilidade de tomar decisões jurídicas amplamente aprovadas. Era “o cara” certo, fazendo a coisa certa na hora certa.

É inegável que essa aprovação quase unânime foi fracionada na última semana. Mesmo na sua legião de admiradores surgiram dúvidas sobre a natureza da decisão –e é ótimo e saudável que assim seja.

Pobre da Lava Jato se sua sobrevivência depender da abdicação do exercício da crítica. Pobre da democracia se, em nome da causa, ninguém puder questionar o método. Questionar não é conspirar contra o sucesso de sua empreitada. Seres humanos são complexos, o direito não é ciência exata, e o mundo não tem só dois lados, felizmente.