Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma bandeira a ser empunhada

Há uma antiga anedota – por sinal ainda bastante atual – que alude a um possível privilégio do Brasil no plano geral da criação, como sendo um país abençoado por estar livre de calamidades, rigores climáticos, convulsões sociais e outros infortúnios comuns a maioria dos povos. Na resposta lacônica que a piada atribui ao Criador, qual seja, que a nossa cota de desgraça ficaria por conta do caráter dissoluto dos próprios nativos, seria cômico se não fosse trágico constatar que além de fazer jus à fama, nossa gente não só se habituou a assimilar como de certa forma, a compactuar com a mentalidade delituosa que impera no país, a rigor, desde os alvores da pátria mãe tão distraída, como fala Chico Buarque de Holanda em seu belíssimo samba enredo “Vai Passar”, composto há mais de 30 anos, mas ainda fresco como a relva da manhã. E que me permitam lembrar um trechinho:

“Num tempo
Página infeliz de nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos
Erravam cegos pelo continente…”, e ainda por diante.

Em suma, um histórico de trambicagem que vem desde o descobrimento, quando patrícios espertinhos (os espertalhões viriam bem mais tarde) já engabelavam nossos índios trocando quinquilharias por ouro, pedras preciosas, especiarias ou simplesmente para levá-los no bico, e ganhar tempo para botá-los no cabresto.

E nem poderia ser diferente, afinal, pelo que consta nos alfarrábios, nossa colonização ficou a cargo da chamada escória de uma já não muito respeitável corte portuguesa, de degredados que vinham cumprir pena por estas bandas. Sem falar da leva de desbravadores facínoras que protagonizaram os primeiros genocídios em terras que nunca conseguiram se livrar desta herança maldita. Estigma que a Anistia Internacional acaba de ratificar em seu relatório anual sobre direitos humanos, no qual o Brasil tem lugar cativo como um dos países mais violentos do mundo, com a impressionante marca de mais de 50 mil assassinatos por ano, e o que é mais grave, com menos de 10% de casos desvendados. O que confirma outra fama triste e vergonhosa: a de campeão da impunidade.

Isonomia do mal

Ora, de volta aos dias de hoje, é claro que nem a ignorância e a alienação ainda predominantes no país podem servir de desculpa para essa convivência e tolerância com o secular descaso de governantes e autoridades para com os mais elementares direitos da população. Descaso diretamente vinculado a corrupção que, endemicamente, viceja nas promíscuas esferas do poder. Discretamente no passado, escrachadamente na governança petista. Afinal, denúncias e apurações das falcatruas não têm faltando, não obstante o papel subalterno que sobrou para a imprensa, ofuscada e desbancada dos centros de decisão pelo marketing jihadista que tem feito a diferença nas eleições.

De sorte que se ainda há quem prefira relevar e até mesmo defender um partido que, segundo as detalhadas revelações dos principais operadores do esquema, montou e tem se beneficiado de um vasto e nefasto plano para perpetuar o PT no poder, é porque o Brasil inzoneiro (malandro, mentiroso, sonso) descrito há décadas por outro Buarque de Holanda não menos notável, o historiador Sérgio, ainda prevalece, ainda fala mais alto.

O que configura um enrosco e tanto, um nó górdio que não se consegue desatar, representado por um inarredável estado de prostração e pasmaceira que a própria imprensa não tem sido capaz de reverter. Ela própria refém de incômodos rótulos e conflitos de interesses que a colocam sob permanente suspeição, e neutralizam seus esforços para ser levada a sério. Mesmo quando mandando bem. Como na massiva cobertura do escândalo do petrolão, cujo tom e teor de justificada exacerbação, manjados serviçais governistas tentam desqualificar apelando, entre outras chicanas, para uma espécie de isonomia do mal, ou seja, atribuindo a paternidade das bandalheiras de grive petista a governos anteriores.

Milonga que até faz sentido dentro desse longevo e malévolo legado, em que doidivanas governistas e da própria mídia tentam contextualizar a roubalheira, a ponto de retratá-la como café pequeno diante do que já teria sido surrupiado no passado. Mas como águas passadas não movem moinhos, a realidade nua e crua é que as tetas fartas daquela que até pouco tempo foi a maior empresa brasileira, e a quinta do mundo no setor, de tão sugadas e franqueadas à companheirada e amigos da casa, repentinamente murcharam, se exauriram, levando a vaca petrolífica e a própria economia literalmente para o brejo. Não sem deixar um colossal prejuízo ainda sequer contabilizado, nas costas dos contribuintes, que como se sabe, bancam as farra e estrepolias que governantes de todos os matizes e patentes não se cansam de promover.

O menor dos castigos

No verdadeiro samba do crioulo doido que ressoa como tema de abertura do segundo mandato de Dilma, chega a ser patético o esforço de manjados setores midiáticos no afã de minimizar ou desviar o foco do cerco que se fecha contra o governo. Com direito a manifestações de solidariedade aos executivos detidos pela operação Lava Jato e tudo, por conta das condições desumanas que estariam enfrentando na carceragem na Polícia Federal em Curitiba. Condições de fato degradantes, conforme relatado na coluna de Mônica Bergamo na Folha de S.Paulo (22/2), mas que mesmo longe de causarem espanto, sabendo-se da precariedade de nosso sistema penitenciário, não deixam de ser o menor dos castigos que a corja que por tantos anos vem roubando o país, faz por merecer. Vamos combinar, se há algo a lamentar é que os verdadeiros mentores da coisa não estejam lá.

Não se trata de tripudiar da desgraça alheia, embora uns e outros até façam por merecer. O que não soa bem, foge do contexto de racionalidade e bom senso que o exercício da critica exige, é levantar uma questão tão ampla e complexa como a premência de uma revisão no sistema penitenciário a partir das privações experimentadas pelos réus do petrolão.

Ainda mais quando se tenta impingir ao público a sensação de arbitrariedade, de abuso de poder por parte do juiz Sérgio Moro. Ora, se o objetivo do relato minucioso e cortante da colunista era destacar a determinação da justiça de não facilitar a vida dos réus ou se denunciar uma possível ação coercitiva, uma forma dissimulada de tortura para obter as esperadas confissões, só ela pode dizer. Como o texto é propositadamente ambíguo, é natural que cada um puxe a brasa para sua sardinha. O que no frigir dos ovos encerra uma lição frequentemente desprezada no jornalismo: de que não vale a pena gastar vela com mau defunto.

Premissa que em todo caso, parece ser o grande e talvez único motivo da até então, surpreendente cautela e relutância com que a demonizada imprensa hegemônica vem tratado o movimento em prol do impeachment de Dilma, cujo brado retumbante está programado para o próximo dia 15. Que pelo menos até aqui, prega obediência e observância aos preceitos legais, do que manda a Constituição – exceção, como de hábito, do tradicional sectarismo da revista Veja.

Uma postura baseada não exatamente – há que se reconhecer – por algum assomo de benevolência ou contrição em meio ao cenário apocalíptico que cerca o segundo mandato de Dilma, mas, provavelmente, por compartilhar com a percepção geral de que uma eventual troca pelo vice Michel Temer (que herdaria o cargo), está longe animar, de surgir como a salvação da lavoura. Não só por Temer corresponder ao modelo de político que incorpora os piores defeitos, como por fazer parte do partido que não tem feito outra coisa senão chantagear e sabotar a, por si só, já precária administração Dilma.

Guinada ao parlamentarismo

De fato, diante de credenciais que não sensibilizam nem nossa imensa prole de Hermenegildos e Eremildos – os famosos idiotas consagrados por dois ilustres representantes das duas correntes antagônicas que racham nosso jornalismo, o governista Mino Carta e o conservador Elio Gaspari –, seria o fim da picada se a imprensa apoiasse o que não deixa de ser um casuísmo, e o que é pior: sem as mínimas garantias de que as coisas mudariam para melhor. Mudariam as moscas mas o país continuaria encalacrado, sem perspectivas, e daí a pior.

Sem falar que um governo forrado de marreteiros, do partido que mais foi comtemplado pela rapinagem na Petrobrás – mas que por um desses absurdos vai comandar a CPI na Câmara –, seria uma mão na roda para quem sonha com a volta de um regime mais duro, perspectiva até recentemente inconcebível mas que ganha corpo com a ladroeira institucionalizada que campeia hoje em dia. Uma alternativa radical, de qualquer forma, tão ou mais equivocada quanto a disposição de apear Dilma do poder – que a menos que provas cabais e irrefutáveis de participação na corrupção da Petrobras, tem o amparo legal conferido pelas urnas.

Movimentos estes, pra variar, ensejadas por estouros da manada na direção errada. O tal efeito manada que dá sustentação a balelas que agora mostram a verdadeira cara, como a outrora propalada seriedade do PT; a enaltecida competência administrativa de Dilma; a excelência de uma política econômica que prometia conciliar crescimento com inclusão social; as estimativas mirabolantes em torno do pré-sal, e outras papagaiadas que tão caro estão custando ao país, à população. Que mais do que nunca se ressente de algum direcionamento certo, pra variar.

Como parece ser o caminho timidamente apontado por algumas vozes mais lúcidas da imprensa, e de nossa embotada intelectualidade: o da premência de uma mudança de regime político. Uma conversão ao parlamentarismo, vigente e aprovado há décadas na comunidade europeia, com as devidas adaptações a nossa realidade, é claro. Seria bom demais, numa só cajadada, depurar o quadro político e simplificar o ritual democrático, com a eliminação do entulho institucional criado para a preservação das regalias da classe política. O que dá uma ideia dos entraves que teriam que ser superados para viabilizar tal guinada.

Mas é ou não é uma bandeira que vale a pena ser empunhada? A recôndita e inencontrável agulha no palheiro? A luz no fim do túnel, que não a do infalível e soturno trem que continua vindo, levando de roldão nossas esperanças, nossos sonhos de um país melhor para deixar de legado a nossos filhos…

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Ivan Berger é jornalista