Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

“Twitter” chinês e dominação étnica

Em 24 de abril de 2011, a senhora Liu Yandong, integrante do Politburo do Partido Comunista chinês, saiu a inspecionar a estatal de tecnologias de informação Tencent com uma delegação do partido que incluía o ministro das Ciências e outras autoridades estatais. Ela foi cobrar lealdade e cooperação da empresa, além de compromisso com as metas do governo do secretário Hu Jintao de “fortalecimento das marcas nacionais, novas glórias para a prosperidade da pátria mãe, o progresso da sociedade e a revitalização da nação chinesa” – de acordo com o ufanista e burocrático discurso da comissária chinesa. A assessoria de imprensa da companhia publicou a manifestação da enviada de Pequim.

A Tencent, seu portal na internet e o Twitter estão na “mira” do governo desde 2009. A empresa chinesa é um enorme conglomerado estatal de tecnologias de informação e tem como meta aumentar o valor agregado disponível ao cidadão chinês em tecnologias digitais. Recentemente, seus controladores tiveram a ideia de “criar” um microblog quase igual ao Twitter, o Meibo.

O momento talvez não tenha sido o melhor: a revolta árabe, as marchas cidadãs contra o sistema financeiro mundial e a corrupção horrorizam as autoridades chinesas. O governo do país, extremamente vulnerável a questões nacionalistas locais que envolvam conflitos étnicos, exigiu a “lealdade” da empresa censurando todos os temas políticos “delicados”, como as manifestações ocorridas no Sinkiang (ou Turquestão Oriental) em 2009, que levaram o governo, naquele ano, a censurar tanto o Twitter quanto a sua nova cópia chinesa, em outubro de 2011, quando sua interface em inglês foi apresentada. As manifestações de protesto da outrora maioria absoluta de povos de origem turca uigur, da Ásia Central, trouxeram de volta a fúria de Pequim, que censurou a rede nascente. A visita do comitê do partido assinala a preocupação do governo central com ideias “subversivas” que se espalham pela web.

Aumento forçado

A região sempre foi hostil à dominação chinesa. É predominantemente muçulmana desde a batalha do Rio Talas, no ano de 751, quando árabes e turcos unidos impuseram um súbito e violento fim às pretensões hegemônicas chinesas da dinastia Tang na Ásia Central. Graças a esta derrota chinesa, até hoje a população ainda é majoritariamente muçulmana. Mas a diferença na composição demográfica da população vem se modificando intensamente desde 1949, em favor de colonos de origem chinesa.

Naquele ano, o mundo assistiu em silêncio à ocupação desta região e do Tibete pelo governo totalitário da China de Mao. Os chineses, que eram minoria, a partir de então começaram a crescer em número na região. Antes de 1949, a população muçulmana representava 94% do total; hoje, são pouco mais da metade dos habitantes.

A ocupação gradual das terras por chineses pobres enviados pelo governo central tem levado a uma fricção constante e penosa entre as duas etnias: os uigures turcomanos da Ásia Central e os chineses mongólicos orientais, os Han, que formam a maioria dominante na China. Nos últimos sessenta anos, o governo provocou o aumento forçado da população chinesa na província por meio da discriminação aberta aos muçulmanos na região. A questão foi bem explicada no artigo publicado pelo periódico mensal Le Monde diplomatique, edição de fevereiro de 2002, intitulado “Assimilação pela força no Sinkiang”, de Ilara Maria Sala.

Cairo começa no quintal deles

Esta é a grande questão histórica e política por trás das notícias publicadas sobre a ideia chinesa nada original de copiar o Twitter: o crescimento da população chinesa em território de maioria muçulmana. A precariedade nas relações entre os dois grupos principais, numa região historicamente dominada por muçulmanos, implicou a censura ao microblog chinês. A permeabilidade das populações locais, que aprenderam a ler e escrever em árabe, as ideias e acontecimentos do mundo árabe e muçulmano apavoram as autoridades chinesas. Mas as reportagens superficiais da mídia digital (que vêm caindo de qualidade vertiginosamente) perderam a questão de vista. Falharam em aprofundar os conteúdos. Com a notável exceção do Monde diplomatique (que cede alguns artigos de graça, mas não todo o conteúdo) e mais alguns poucos periódicos, as publicações virtuais estão se tornando mais superficiais e o nível das matérias vem caindo muito.

A revista americana Networkworld comentou de passagem o antigo conflito, que é de tremenda importância estratégica: em 1949, a China ampliou seu território e sua área de influência no planeta por meio da anexação dessas duas grandes regiões: Sinkiang e Tibete. O resto do mundo assistiu impassível à China ocupar os dois enormes territórios sem nenhuma reação ou protesto. Sem essas duas regiões, o oeste da China não passaria de uma estreita faixa que liga o país ao centro da Ásia. O território chinês não seria tão grande e a China certamente não seria o que é hoje.

O pavor de uma “primavera árabe” no Sinkiang vem tirando o sono dos dirigentes do Partido Comunista chinês. A palavra “Egito” foi censurada no Meibo, o “Twitter” clonado por eles. Os líderes chineses sabem que o Cairo começa bem ali, no quintal deles, numa região árida e inóspita de fronteiras regionais e nacionais. No Sinkiang muçulmano e em pé de guerra.

A China que se cuide

O diário britânico The Guardian (15/7) comentou o “novo” microblog chinês, mas não fez consideração alguma sobre a censura do governo. Preferiu discutir estatísticas comparativas de tráfego e número de usuários. A revista PC World (11/10) comentou a criação da interface em inglês, mas também foi pontual quanto ao conflito que levou a China a censurar a nova rede social copiada do Twitter. Mais uma cobertura fraca a não informar muita coisa.

Na realidade, não importa realmente saber se os chineses vão ter ou não um Twitter clonado. Importa compreender as atrevidas pretensões chinesas de criação e expansão artificial do bem-estar de população por intermédio da supressão do direito das nacionalidades de tibetanos e turcomanos, ou uigures. São populações relativamente pequenas e o mundo pouco sabe delas.

É função da mídia informar sobre questões como essa. Os chineses não vão fazê-lo. E estão abertamente dispostos a enganar o resto do mundo, fazendo-se passar por economia de mercado, censurando a mídia e controlando a economia com engenheiros leais ao Partidão chinês, reprimindo minorias e suprimindo a liberdade de imprensa.

Por diversas vezes na História a China este país já teve suas pretensões negadas de forma súbita e violenta. Como naquele dia, às margens do Rio Talas, no ano de 751, quando turcos e árabes se juntaram e liquidaram seus sonhos de expansão em direção ao Ocidente.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]