Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo e teoria da conspiração

Há dois anos na capital paulista, percorri redações onde vi coisas de arrepiar. Lendo sobre a demissão do Gabriel Priolli da direção de Jornalismo da TV Cultura, lembrei-me da experiência que tive com o novo diretor de Conteúdo da Cultura, Fernando Vieira de Melo. Em primeiro lugar, a TV Cultura deveria ser considerada um patrimônio cultural de São Paulo, mas vem sendo tratada como se fosse um braço político do PSDB. A pergunta de Heródoto Barbeiro a José Serra sobre o preço dos pedágios – apropriada, aliás – teve uma resposta arrogante e duvidosa, características do ex-governador e candidato a presidente. Por isso, o jornalista foi destituído da bancada do Roda Viva.


Heródoto não foi o primeiro a sofrer este tipo de retaliação na Cultura: Walter ‘Pica-Pau’ Silva, um dos maiores jornalistas, radialistas e produtores musicais deste país – que lançou, entre outros, Elis Regina – foi demitido da rádio até hoje não se sabe por quê. O programa dele simplesmente explicava a MPB, com detalhes de quem conheceu, ajudou e lançou Chico Buarque, Renato Teixeira e Gilberto Gil. Foi a maior inteligência musical que conheci na vida, além de ter sido um homem digno, decente e honesto. Walter foi o responsável por uma das maiores audiências da rádio Bandeirantes nos anos 1960 com o programa ‘Pick-Up do Pica-Pau’.


Cara feia


Passei pelo mesmo problema na TV Bandeirantes paulista, onde editava o Jornal da Band no início do ano passado. Lá, Fernando Vieira de Melo era o editor-executivo de Fernando Mitre, diretor de Jornalismo. Minha função era a de editar as matérias de Brasília. Na Band, cada regional tem um diretor com áreas de interesse diferentes das do diretor-geral. Daí a enorme confusão política que se cria na hora de escrever e editar uma matéria considerada importante para a emissora.


No meu segundo dia como editor, assisti à uma cena lamentável: Vieira de Melo, insatisfeito com uma decisão da reportagem, começou a xingar a chefe dos repórteres, aos berros, descontroladamente, com palavrões. Um péssimo exemplo, um comportamento no mínimo arbitrário de tratar os profissionais e de demiti-los sempre aos berros.


Uma das primeiras matérias que peguei de Brasília para editar era sobre o MST. O editor de Brasília na época havia me dito que a política da casa era a de defenestrar o MST a qualquer custo. Não acreditei e pedi ao repórter para ouvir o movimento. Chamei o Mitre para ver a matéria editada. Senti que ele não gostou do resultado. Não falou nada, mas a partir deste momento começou a implicar com qualquer coisa que eu fizesse. Nesse meio tempo, fiquei sabendo que o dono da Band era fazendeiro – fiz o link e concluí: a Band era (e me parece que ainda é) um reduto da oposição ao governo Lula disfarçado. Seria melhor que assumisse logo ao invés de continuar tentando enganar o telespectador.


Fiquei lá quatro meses, aguentando xingamentos e caras feias. Mas fiquei apenas pelo salário – tinha 60 anos, idade de que o mercado não gosta, primeiro pela experiência acumulada, e depois pela sabedoria (no meu caso, pouca) que o sujeito adquire com os anos, principalmente na hora de avaliar o comportamento dos patrões. Sabedoria que, certamente, levou à demissão de João Bussab (23 anos de casa) e de Raul Varassin do SBT em junho deste ano.


Onde o corpo?


Voltando à Band, depois de quatro meses recebi outra matéria de Brasília sobre o MST. A reportagem tinha as imagens daquele trator destruindo uns laranjais (até hoje ninguém explicou a origem daquelas imagens, e tampouco mostrou entrevista com o tratorista), entrevistas com os senadores de sempre da oposição, descendo o cacete no movimento, e nenhuma entrevista da entidade se defendendo das acusações. A matéria chegou tarde, porque eu pedi que se entrevistasse o MST. O Jornal da Band já estava no ar, Vieira de Melo viu a matéria e, de repente, na minha frente, de costas para a bancada do Ricardo Boechat, começou a me xingar. Fiquei olhando para ele, dentro dos olhos dele, e com vontade de rir. Mas fiquei sério. Em outros tempos, quando era mais jovem, certamente o rapaz teria de ir a um cirurgião-dentista para refazer plasticamente a bocarra. Fui demitido. É engraçado que Cultura o tenha chamado para ser um de seus diretores. É o fim dos tempos.


É verdade que o jornalismo mudou – com a internet ficou mais ágil, mas ao mesmo tempo mais burro. Estava lendo o Chicago Tribune de sábado (10/7). A manchete principal era sobre um assalto a uma loja com o saldo de um morto; a segunda manchete (com foto) era a de um acidente com três mortos. O jornal listava o nome dos mortos e dava todas as informações necessárias para que o leitor entendesse a notícia. Os portais brasileiros mais conhecidos não têm essa preocupação – o que importa são as imagens, de preferência aquelas chocantes, sanguinárias.


Iguais às matérias da TV Record feitas no interior de São Paulo – nunca se ouve pelo menos os dois lados da notícia, as imagens quase nunca têm a ver com o texto e o que interessa é o sangue escorrido dos acidentes, assaltos e estupros.


A sensacionalização das notícias policiais nos meios de comunicação hoje, algumas ao feitio das novelas, serve somente para dar à chamada elite uma folga para que as notícias que realmente interessam não cheguem ao público, principalmente em época eleitoral, quando os patrões da mídia já têm interesses comuns acertados e definidos com o candidato do neoliberalismo.


Um exemplo disto é o caso Bruno, que está cada vez mais engraçado: ele está preso por ter mandado matar um espírito, e não um corpo, que até o momento não apareceu. E até agora não prestou depoimento – e se o fez, está correndo em segredo de justiça, o que é ilegal.


Falta reação


Por isto tudo fica difícil o cidadão que não tem computador no Brasil se informar sobre aquilo que realmente deve ajudar a formar opinião política. A CartaCapital e o Observatório da Imprensa são jóias raras nesse contexto – são duas das poucas vias dignas de respeito à notícia, à verdade dos fatos. O que me lembra aquela história do Getúlio Vargas, que sofria um processo muito parecido com o do Lula. As elites dos meios de comunicação detestavam o Getúlio, que deu início à socialização do lucro criando garantias de emprego e a Petrobras; e detestam o Lula, talvez pelo fato de ele ter sido operário e sindicalista antes de se tornar um dos presidentes mais aplaudidos e competentes da História da humanidade.


Dizem que Getúlio, assediado ostensivamente pela imprensa, pediu ao Samuel Wainer para fundar a Última Hora e fazer do jornal um meio democrático de divulgação de notícias e de opiniões. E nessa esteira nasceram jornalistas admiráveis. Jornalistas como aqueles ainda existem, muitos, mas infelizmente não exercem mais cargos de chefia – estão escondidos, alguns calados, outros fingindo que estão vivos, a maioria demitida.


Falta uma reação, não sei como poderia se dar, mas falta. Talvez o alento que tanto a gente deseja esteja ainda em nossos sonhos, e sonhar ainda não foi proibido pelos especialistas da Globo. Por isso, por ainda ser permitido, sonho em ver um dia o José Hamilton Ribeiro assumindo a direção da TV Globo em São Paulo.

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Jornalista