Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quem é o sujeito oculto?

Quando a ombudsman da Folha de S. Paulo alertou, no domingo (10/11), para a malícia presente na manchete do mesmo jornal, na sexta-feira anterior (8), ela estava se referindo a um caso específico, mas também abrindo a possibilidade de o leitor atento observar como a imprensa atua na manipulação da opinião do público.

“Prefeito sabia de tudo, diz fiscal preso, em gravação” – essa era a manchete criticada pela ombudsman, anotando que o prefeito de São Paulo chama-se Fernando Haddad e o personagem da notícia era o ex-prefeito Gilberto Kassab.

O fiscal em questão foi subsecretário da Receita do município durante a gestão de Kassab, e está envolvido em um esquema que pode ter desviado pelo menos R$ 500 milhões de reais. A quantia pode ser ainda maior, se considerada a suspeita de que o grupo vinha atuando desde 2002, quando Marta Suplicy era a prefeita.

O título na primeira página do jornal paulista foi visto pela ombudsman como um erro, nascido da disposição dos editores de transcrever na íntegra a declaração do personagem. “O jornal foi mais realista que o rei, numa cobertura bem delicada”, diz a defensora dos leitores.

Acontece que sempre há um dia depois do outro, caso contrário não haveria jornais. E a sequência dos dias induz o leitor e a leitora atentos a desconfiarem de que houve mais malícia do que realismo naquela escolha da sexta-feira.

Na verdade, não apenas a Folha mas os outros jornais e o noticiário da televisão estão divulgando uma versão diferente daquela que se pode ouvir claramente nas conversas entre supostos membros da quadrilha. Em telefonema gravado no dia 18 de setembro e incluído no inquérito, com autorização judicial, um dos envolvidos fala claramente, logo após o trecho que foi destacado pela manchete da Folha: “Chama o secretário e os prefeitos com quem trabalhei. Eles tinham ciência de tudo”.

O teor da declaração pode ser conferido no arquivo do Jornal Nacional, da TV Globo, edição do dia 7 de novembro (ver aqui), com a amplificação do áudio.

Na conversa com outra funcionária da Prefeitura, o auditor fiscal Ronilson Bezerra Rodrigues, acusado de chefiar a máfia da propina, se refere ao secretário e aos “prefeitos” com quem havia trabalhado, ou seja, insinua que o esquema começou antes do mandato de Gilberto Kassab.

Por que razão os jornais insistem em que ele se referiu apenas a um dos prefeitos com quem havia trabalhado? E qual seria o interesse da Folha em envolver o atual prefeito, que está patrocinando a investigação?

Picotando o noticiário

Os personagens do esquema eram ligados à Secretaria de Finanças do Município, cujos chefes foram herdados por Kassab da gestão anterior, do ex-prefeito José Serra. A rotina do grupo era abater impostos de grandes construtoras e quitar débitos com a Prefeitura, mediante pagamento de propina. A prática minou a capacidade de investimento do município.

Entre outras suspeitas, por exemplo, os jornais poderiam investigar o destino do processo envolvendo diretores da CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, que tinha reflexos nas finanças da capital paulista. Por outro lado, a curiosidade jornalística deveria induzir os editores a buscar conexões entre esse escândalo e o caso de superfaturamento nas obras do metrô e do sistema de trens metropolitanos, porque a lógica dos crimes é a mesma.

Mas o interesse da Folha de S. Paulo não parece ser o de esclarecer os fatos de uma forma ampla. Na edição de terça-feira (12/11), por exemplo, a manchete do jornal outra vez ignora os indícios de que a quadrilha atuava ainda antes da posse de Gilberto Kassab e anuncia: “Fiscal suspeito foi da equipe de secretário de Haddad”.

Se um dos acusados afirma ter documentos “desde 2002”, e ameaça delatar todo o grupo, causando um megaprocesso, “igual ao da máfia italiana na década de 90”, por que razão a Folha foge da grande história e tenta a qualquer custo envolver o atual prefeito, que criou a Corregedoria do Município e resolveu quebrar a quadrilha?

A cobertura do Estado de S. Paulo limita o período de atuação da quadrilha aos dois mandatos de Kassab (2006-2012) e ainda se concentra nos conteúdos das gravações, o que produz um noticiário fragmentado e induz o leitor a imaginar que se trata de um caso eventual de corrupção.

O Globo, que se baseia em informações do Ministério Público do Estado, oferece aos seus leitores um quadro mais amplo, com dados sobre os grandes valores desviados para contas no exterior e informando mais sobre a sofisticação do esquema.

Quem a Folha de S. Paulo estaria tentando proteger?

Parodiando a ombudsman do jornal, quem seria o “sujeito oculto”?