Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

‘Mini-auschwitzes espalhadas pelo território nacional’

O professor Renato Janine Ribeiro teve, penso, intuição certeira ao concluir seu artigo no caderno Mais! da Folha de S. Paulo de domingo (18/2) com a seguinte frase: ‘Dizem uns que o Brasil está como o Iraque. Parece, pior que isso, que temos algumas mini-auschwitzes espalhadas pelo território nacional’. Explico em seguida por que isso me parece fazer sentido.


Em novembro passado li um livro que, embora publicado originalmente em 1948, ainda não foi traduzido para o português: This Way For The Gas, Ladies And Gentlemen, de Tadeusz Borowski, polonês prisioneiro em Auschwitz. Perto do final, Borowski reproduz uma discussão amarga (em tradução livre):


O mundo todo é realmente como o campo de concentração; os fracos trabalham para os fortes, e se eles não têm força ou vontade de trabalhar, deixemos que eles roubem, ou que eles morram‘.


Li em seguida Cobras e Lagartos – A vida íntima e perversa nas prisões brasileiras. Quem manda e quem obedece no partido do crime, de Josmar Jozino. Imediatamente fiz a conexão com a leitura anterior. Entre outras passagens, destaco:


Caveirinha fez um levantamento sobre os assassinatos cometidos por presos na Detenção, no período de janeiro de 1999 a agosto de 2000. Os dados foram publicados nas edições de 20 e 21 de agosto de 2000 do Diário Popular. Foram registrados cinqüenta assassinatos de detentos durante esse período na Casa de Detenção, sendo que a maioria morreu degolada nas brigas entre facções‘ (pág. 115).


Em CV_PCC – A Irmandade do Crime, Carlos Amorim remete a vinte e poucos anos antes:


As grades têm a ferrugem de décadas. E muitos lugares ainda exibem cicatrizes das incontáveis rebeliões e incêndios. O Cândido Mendes tem segredos: mortes violentas, estupros, o preso contra o preso, a guarda contra todos. Porque essa é uma cadeia de muitos horrores. É a mais pobre de todo o sistema carcerário do estado do Rio.


Faltam comida, colchões, uniformes para os presos, cobertores para um inverno de ventos frios que vêm do mar. Faltam armas e munições para os soldados – e é comum que eles mesmos as comprem em caráter particular. Papel higiênico, aqui, é coisa de que nunca se ouviu falar.


A cadeia, construída para abrigar 540 presos, está superlotada. Os 1.284 homens encarcerados ali, no ano de 1979, se vestem como mendigos. Lutam por um prato extra de comida. Disputam a facadas um maço de cigarros ou uma ´bagana´ de maconha. Cocaína e  armas de fogo podem ser razões para um motim. Eles compram e vendem as ´moças´ como mercadorias de câmbio alto. É fácil identificá-los na prisão: os homossexuais – muitas vezes subjugados pela força – raspam as sobrancelhas e os pêlos das pernas, dos braços, do peito. As ´moças´sempre têm dono. Por ´elas´muita gente já matou e já morreu.


É preciso coragem para andar sozinho e desarmado nesses corredores. A multidão de presidiários está condenada a penas tão longas que seria preciso inventar um novo calendário para somar todas elas‘ (sétima edição, 2006, págs. 50/1).


No coração do comando, Júlio Ludemir, 2002:


Na verdade, essa era a razão de ser do próprio Comando, que se formou dentro da Ilha Grande para dar uma ordem àquele mundo caótico, onde os presos viviam sendo roubados, esculachados, currados, esmerdalhados‘ (pág. 95).


Sindicato do Crime, Percival de Souza, 2006:


A antropofagia foi uma das derivações do ódio acumulado com acertos de contas entre bandidos rivais ou disputa de lideranças. Tanto que nas rebeliões orquestradas passaram a ser vistas cabeças cortadas exibidas como se fossem troféus. Cabeça jogada sobre uma juíza de  Direito na cidade de Taubaté, cuja presença num presídio conhecido como Piranhão era exigência dos rebeldes. A mulher ficou em estado de choque e precisou licenciar-se para tratamento médico.  Cabeças espetadas em pontas de ferro nas lajes de presídio. Corações arrancados do peito, fritos e comidos pelos principais inimigos no interior de São Paulo. Olhos extirpados, forçando-se  o novo cego a comê-los para, em seguida, decepar-lhe a cabeça e atravessá-la por uma corda fina, entrando por um ouvido e saindo pelo outro, a fim de exibi-la para presos e reféns apavorados‘ (págs. 38/9).


Todos os autores citados acima são jornalistas. Um ex-detento, Jocenir, publicou em 2001 Diário de um detento: o livro. No primeiro capítulo, chamado Inferno, ele escreve:


‘A privação da liberdade, retirar o condenado do convívio social, não representa o maior sofrimento do homem que passa a fazer parte da realidade carcerária do país. A hipocrisia da elite, bem como das instituições públicas, não admite que esta idéia seja propagada: os distritos policiais, cadeias públicas e alguns presídios, antes de restringir a liberdade de um indivíduo, tirá-lo de circulação, são campos de concentração, senão piores, iguais aos que os nazistas usaram para massacrar os judeus na Segunda Guerra Mundial. São verdadeiros depósitos de seres humanos, tratados como animais‘.


E adiante:


A fisionomia dos presos é atormentada, faz parte do cenário, não poderia ser diferente. Homens com roupas gastas e bem surradas, despenteados, desdentados ou com dentes em péssimo estado, pálidos em razão da má alimentação e do elevado consumo de drogas e álcool. É triste e degradada a quase totalidade da população carcerária. Tudo o que se possa julgar sobre uma prisão não pode ser fundamentado nos princípios morais, éticos e religiosos da sociedade dos homens livres. Nela os princípios são outros, escritos pelo sofrimento e pela delinqüência do mundo marginal.


Violência física, violência moral, humilhações, extorsões fazem parte do dia-a-dia de um encarcerado, especialmente  nos distritos policiais e nas cadeias públicas, onde a superlotação e o consumo exagerado de drogas potencializam a desumanidade.


É pesaroso admitir, mas a verdade é que a grande maioria das pessoas presas é composta de jovens primários viciados no crack. Isso torna tudo muito pior, e dilacerante. O perfil do usuário de crack, ou da pedra, como chamam os presos, é o do garoto com pouco desenvolvimento intelectual, sem base familiaar, sem formação religiosa ou moral. O fim da pírâmide social, gente estragada pela miséria e pela fome. O comportamento desses rapazes é imprevisível, num instante proferem um elogio, em seguida podem desferir uma facada pelas costas. A droga corrói o pouco de humanidade que esses jovens trazem ao chegar da rua. Vendem suas próprias vestes, seus  bens de uso pessoal, roubam tudo o que podem, em alguns casos chegam a oferecer a esposa, a mãe e as irmãs para fazer sexo com outros presos com a finalidade de obter dinheiro para pagar o traficante‘ (págs. 17 a 20).


Fico por aqui. Outros capítulos desses livros e de mais alguns, bem nutridos de informações estarrecedoras, tratam do comportamento de policiais, de agentes carcerários e de outras autoridades. Em alguns casos, comportamento correto. Em muitos, terrível. Todos esses atores sociais fazem parte de um mesmo sistema de ‘mini-auschwitzes espalhadas pelo território nacional’, como escreveu Janine Ribeiro.


[Nota em 24 de fevereiro. O professor Renato Lessa publicou no site Gramsci e o Brasil artigo em que critica o texto de Renato Janine. Uma das falhas do texto acima, assinado por mim, foi não ter manifestado minhas divergências em relação a uma série de aspectos do texto de Janine. Disso já me tinha dado conta dias atrás. Outro problema é o paralelo com o horror nazista, que não tem paralelo. Foi feito, é bom que se destaque, para tirar conclusões de modo geral opostas às que Renato Janine sugere poder aceitar. Mas isso não foi dito, portanto é uma démarche prejudicada. Do texto de Renato Lessa, ‘Contra Renato Janine Ribeiro’, destaco um parágrafo:


E o que dizer da banalização de Auschwitz? O filósofo vê a imagem do horror por toda parte e a ele atribui um plural de péssimo gosto estilístico: ´auschwitzes´. No mínimo esquecido que o cenário original do campo de extermínio foi propiciado por um Estado que legalizou a tortura e a pena de morte‘.


Leia aqui o texto de Renato Lessa.]