Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um duplo suicídio de amor

André Gorz nasceu Viena (Áustria), em fevereiro de 1923; por sua origem hebraica, durante a Segunda Guerra refugiou-se na Suíça, onde se formou em engenharia química. Nesta atividade não encontrava realização profissional e, alguns anos após a guerra, foi para a França, onde conheceu Jean-Paul Sartre.

Foi o existencialismo que influenciou todo seu pensamento, considerando a autonomia individual como condição indispensável para transformação da sociedade. Suas posições antiestruturalistas e antiautoritárias o levaram ao encontro da atividade ideal, o jornalismo.

Trabalhou durante muitos anos na revista Les Temps Modernes, fundada por Sartre. A amizade com Herbert Marcuse o levou a entender a Escola Frankfurt e com isso desenvolver mais sua atividade jornalística – primeiro no semanário L’Express, e depois no Nouvel Observater, que fundou juntamente com Jean Daniel e onde escrevia sob o pseudônimo de Michel Bosquet. Também escreveu seu primeiro livro, Os Traidores, apadrinhado por Sartre, que lhe redigiu o prefácio e fez com que o trabalho obtivesse um êxito inesperado.

Em todas suas atividades, permaneceu fiel à recusa do capitalismo, à crítica de uma sociedade baseada no consumismo. Em perfeita sintonia com os movimentos de 1968, Gorz, porém, não seria atraído pela ortodoxia e muito menos pelo empenho maoísta, que absorveu grande parte dos esquerdistas franceses, inclusive Sartre. Contudo, não renunciou à crítica da sociedade e publicou textos que se tornaram famosos: Crítica do Capitalismo Quotidiano e Crítica da Divisão do Trabalho.

Fidelidade como ética

Em 1974, ‘separou-se’ dos Temps Modernes e, lentamente, se afastou do marxismo, ao qual se ligara para elaborar uma teoria sobre a ecologia política, que tenta unir a utopia socialista. Seu livro Adeus ao Proletariado (1980) é um verdadeiro libelo contra o marxismo ortodoxo e o culto do proletariado. Uma posição que lhe valeu muitos ataques de seus ex-amigos, os quais ficam surpresos, em 1983, ao vê-lo contestar os movimentos pacifistas. Gorz recusa unir-se ao movimento contra a instalação de euro-mísseis e acusa os pacifistas de ‘terem colocado a vida acima da liberdade’.

André Gorz foi, antes de tudo, um humanista, e na sua visão de socialismo não existia lugar para qualquer totalitarismo a não ser o soviético. Há 23 anos retirou-se para o campo com a mulher, Dorine, de origem inglesa, que continua sendo sua interlocutora fundamental, a primeira a ler seus trabalhos.

Sua relação com a mulher era totalmente diferente daquela de Sartre e Beauvoir, que tinham um sistema de vida que, embora não excluísse, muito pelo contrário, preconizasse as aventuras amorosas, não podia fender a relação fundamental.

André e Dorine, ao contrário, eram um casal constituído sobre o compromisso exclusivo, sobre a fidelidade como ética do amor.

‘Avisem os gendarmes’

Em 2006, publicou o livro Lettre à D: Histoire d’um amour, no qual diz à mulher: ‘Apenas fizeste 82 anos. És sempre bela, elegante e desejável. Já são 58 anos que estamos juntos e te amo mais do que nunca. Recentemente, me enamorei ainda uma vez de ti e levo comigo o vazio devorante que só pode ser preenchido com teu corpo apertado junto ao meu. De noite, algumas vezes, vejo o perfil de um homem numa estrada vazia e uma paisagem deserta, andando atrás de um féretro. Esse homem sou eu. O féretro está te levando.’

Neste dia 24 de setembro, uma amiga encontrou um cartaz pregado na porta de Gorz, no qual se lia simplesmente ‘Avisem os gendarmes’. Dentro de casa, Dorine e André ‘repousavam’ um ao lado do outro; haviam-se suicidado – ela, não suportando mais uma doença que a afligia, e ele, por não querer receber uma urna com as cinzas da cremação da mulher.

Como ainda escreveu André na Lettre a D: ‘Nos dissemos com freqüência que, se por um absurdo tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos’

[Texto de apoio: ‘Gorz, sucídio de um filósofo’, de Giampiero Martinotti, la Repubblica, 25/9/2007]

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Jornalista