Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A razão do silêncio

Em relação ao texto de Daniella Wagner, ‘O silêncio da TV Globo’, publicado no último Observatório [remissão abaixo], esclareço o seguinte:

.1.

De fato, o programa Direito em debate, da TVE, exibido na quinta-feira, 17 de junho, tratou do brutal assassinato de nosso saudoso Tim Lopes. Não foi um programa qualquer. Havia até uma atriz, recitando críticas à TV Globo, que, em nenhum momento, foi chamada a participar do programa. Tudo se transformou numa tribuna para ataques à emissora e seus jornalistas, sem a menor preocupação com a apresentação de provas. Apenas ataques infundados. Já estávamos preparando a resposta, quando a produção do programa nos mandou um e-mail lamentando-se, reconhecendo o desequilíbrio e abrindo espaço para que a TV Globo se pronunciasse. No mesmo instante, enviamos à TVE um longo texto, rebatendo item por item. O e-mail da TVE é o seguinte:

‘Ao jornalista Ali Kamel

‘No programa ‘Direito em Debate’, exibido ao vivo pela TVE Brasil na última quinta-feira (17 de junho), com o tema ‘Os Dois Anos da Morte do Jornalista Tim Lopes’, constatamos um desequilíbrio na abordagem do assunto, já que alguns convidados atacaram por diversas vezes a Rede Globo de televisão, citando inclusive nomes de profissionais da emissora. Lamentamos o fato de o programa ter tomado um rumo inesperado, já que em nenhum momento tivemos a intenção de denegrir a imagem da emissora.

‘Pautamos o programa com a intenção de falar da importância de Tim Lopes como um símbolo de justiça social, com o objetivo de avaliar também a situação de outros profissionais, não apenas jornalistas, que trabalham em situações de risco, e, ainda, saber em que pé estava o andamento do processo dos acusados pela morte de Tim Lopes.

‘Em resumo, a idéia era fazer o programa com a isenção de sempre, com a mesma imparcialidade que o tema foi tratado pelo ‘Direito em Debate’ dois anos antes, logo após a morte do jornalista. Desta forma, vimos pelo presente, e em nome da direção do programa, manifestar nosso compromisso com a justiça e a ética. Colocamos o próximo ‘Direito em Debate’ do dia 24 de junho à disposição da TV Globo para que a emissora possa apresentar o seu posicionamento, restabelecendo assim o princípio do contraditório, sempre presente em todos os nossos programas nestes seis anos de existência. Estamos enviando à Rede Globo, aos seus cuidados, cópia do programa apresentado.

Atenciosamente

Márcia Jakubiak, diretora do programa Direito em Debate,

José Fernandes Júnior, apresentador e coordenador de Conteúdo’

Após ler a longa e detalhada resposta que enviamos, recebi da produção do programa a informação que haveria uma retratação no programa que seria exibido na quinta-feira, 24 de junho, o que de fato aconteceu. No programa, a apresentadora Christianne Vianna, disse o seguinte:

‘Boa noite. Na semana passada apresentamos aqui no programa, o tema ‘Os dois anos da morte de Tim Lopes’. Nosso objetivo foi lembrar o assassinato do jornalista que se tornou um verdadeiro símbolo de justiça social, analisar casos, não apenas da imprensa, mas de outros profissionais que também trabalham em situações de risco e saber ainda, em que pé está a tramitação do processo dos acusados pela morte de Tim Lopes. No decorrer do programa, que como todos sabem, é ao vivo, para todo o Brasil, convidados presentes ao debate apresentaram acusações à Rede Globo de Televisão, a profissionais da emissora e a Fenaj, Federação Nacional dos Jornalistas. Os citados não estavam representados no debate e portanto sem chance de exercer o seu legítimo direito de defesa. De acordo com o nosso compromisso de ética e isenção, demonstrados nestes seis anos de existência do ‘Direito em debate’, abrimos hoje espaço para que os que se sentiram de alguma forma atacados pelas declarações feitas por alguns convidados durante o programa possam aqui expressar suas opiniões. Esta é a nossa posição bem como a da OAB, seção Rio de Janeiro’.

Christiane passou então a palavra a José Fernandes, que, além de também apresentar o programa, é o seu coordenador de conteúdo. Ele disse:

‘Boa noite. Pois é, Christiane, nós recebemos uma extensa carta da Rede Globo de Televisão, assinada pelo diretor-executivo de jornalismo da emissora Ali Kamel. Nela, ele esclareceu detalhada e satisfatoriamente [destaque meu] todos os pontos abordados no programa. A emissora também colocou à disposição do ‘Direito em debate’ todos os documentos necessários sobre o assunto.Entre os principais pontos citados na carta destacamos: a Rede Globo esclarece que tipo de reportagem Tim Lopes fazia na Vila Cruzeiro no dia em que acabou assassinado; apresenta a política de segurança da empresa, descrevendo as ações adotadas, não apenas em relação aos jornalistas, mas a todos os funcionários da empresa; a Rede Globo se posiciona sobre os casos citados no programa referentes a ex- funcionários da emissora.

‘A carta destaca também, que toda a imprensa, mesmo empresas concorrentes às Organizações Globo, cobriram de perto, cada momento do episódio, com acesso a todas as informações. A carta encerra com o seguinte trecho: ‘Tim foi um mártir na estrita acepção da palavra. Um mártir da busca da verdade, da busca da informação correta. Foi por isso que buscamos ser detalhistas. Mesmo à custa de repetir informações já conhecidas por muitos. Em respeito aos telespectadores da TVE, certamente, mas fundamentalmente, em respeito a Tim, a quem nunca deixaremos de prestar as nossas homenagens’.

‘A carta na íntegra pode ser acessada no site da TVE Brasil na página do programa ‘Direito em Debate’ [www.redebrasil.tv.br/direitoemdebate].’

A palavra voltou a Christianne, que disse:

‘Por telefone, o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, Nacif Elias Hidd Sobrinho, manifestou sua indignação pelo tratamento que um dos convidados do programa dedicou a toda classe jornalística na cobertura do trágico episódio da morte de Tim Lopes.’

Foi sem dúvida uma bela prova de que a TVE faz jornalismo de qualidade. E de que, às vezes, é mais do que necessário ser detalhista. Como pretendo ser aqui.

.2.

O conteúdo do programa era mais ou menos o do texto de Daniella e, por isso, dou os mesmos esclarecimentos. Tim Lopes, como toda a imprensa pôde comprovar, estava na Vila Cruzeiro para registrar um baile funk em que menores de idade eram explorados sexualmente. O baile chegava a reunir três mil pessoas. Havia, na entrada, brinquedos de um parque de diversões, barracas vendendo bebidas e comidas, justamente para atrair o maior números de pessoas. Não se tratava de um baile num canto escuro de uma favela perdida, mas de um baile realizado na entrada urbanizada de uma comunidade carente, com pontos de táxi e lanchonetes à disposição. Moradores decentes, incomodados com o assédio a suas filhas, e cansados de esperar a ação da polícia, pediram ajuda a Tim. Depois do brutal assassinato, o baile foi proibido pela polícia.

No inquérito policial, embora obviamente neguem as irregularidades, os organizadores do baile prestaram longo depoimento. Negar a existência do baile chega a ser ridículo. Eu me lembro de que os jornalistas da comissão que acompanhou as investigações sobre o assassinato do Tim tiveram de pressionar a polícia para que não deixasse o baile se repetir. A própria viúva de Tim, Alessandra Wagner, no depoimento que prestou ao delegado Carlos Henrique, no dia 26/06/2002, atesta o que soube através do próprio Tim. O oficial do cartório Luiz André anotou:

‘Inquirida, disse que a declarante vem a ser companheira há cerca de dez anos do repórter da TV Globo Arcanjo Antonio Lopes do Nascimento, conhecido como Tim Lopes, que desapareceu dia 02/06/2002 quando se encontrava fazendo uma reportagem no interior da Favela Vila Cruzeiro; que a declarante tinha conhecimento que seu marido estava fazendo um trabalho de reportagem objetivando denunciar a existência de um baile funk na localidade onde desapareceu, onde ocorreria a prática de sexo explícito além da livre circulação de elementos fortemente armados componente do tráfico de entorpecentes’.

João Batista de Freitas, responsável pela associação de moradores da Vila Cruzeiro, e José Gomes Pimenta, seu auxiliar, também prestaram depoimento à polícia em que alegaram não serem os responsáveis pelos bailes funks, admitindo, porém, a força do tráfico na localidade imposta pelos traficantes comandados por Elias Maluco. Basta ler os depoimentos.

.3.

O relatório do inspetor Daniel Gomes foi um verdadeiro insulto à memória de Tim. Gomes disse: ‘No afã de efetuar melhores imagens dos traficantes, se colocou muito perto do perigo, não vislumbrando a diferença da emoção para a razão, fato que ocasionou sua detenção e morte’. Que isso não tenha ofendido Daniella é algo que não me cabe julgar. Mas a nós, jornalistas da Globo e colegas de praticamente todas as redações, a declaração era inaceitável. Tim era um profissional dedicado, experimentado, não um foca a confundir razão com emoção. Daniella, no texto publicado no Observatório, vai além. Acusa a imprensa de divulgar falsamente a versão de que o relatório de Daniel com ofensas ao Tim e acusações à Globo foi recusado. E diz que, dois dias depois, o Ministério Público ofereceu denúncia contra os acusados, ‘com base no relatório, considerando que havia provas técnicas suficientes, junto com confissões, para denunciar os indiciados’. Nada mais capcioso. Daniella se esquece de dizer que as provas se referiam a Elias Maluco e seu bando, autores do crime. O Ministério Público ofereceu denúncia contra eles, mas toda a parte ofensiva a Tim e com acusações à TV Globo, presente no relatório de Daniel, foi rejeitada. Não há no relatório do MP nada da lavra de Daniel contra Tim ou contra a TV Globo. Basta ler o relatório.

.4.

Sentindo-se ofendido pela matéria que a TV Globo exibiu no dia da divulgação do seu relatório insultuoso à memória de Tim, o inspetor Daniel Gomes moveu ação contra a emissora, pedindo indenização por danos morais. No dia 06/04/2004, foi proferida a sentença. O juízo da 27ª Vara Cível do Rio de Janeiro deu ganho de causa à TV Globo. Na sentença, está dito:

‘O autor [Daniel Gomes] efetivamente realizou o relatório nos autos do inquérito policial que apurou o delito [o assassinato de Tim]. No bojo do relatório, emitiu juízo subjetivo sobre o procedimento adotado pela vítima. Em tal ponto, reside o cerne da questão a ser decidida. A forma com que o autor elaborou o relatório foi alvo de crítica por parte de inúmeras autoridades públicas, merecendo ainda censura por parte de representantes da sociedade civil. Constaram das matérias jornalísticas tais depoimento censurando o relatório elaborado pelo autor. Revela-se inequívoco que a parte ré agiu de forma legítima noticiando o fato e colhendo inúmeros depoimentos insuspeitos. Nas matérias exibidas nesta data, não se constata qualquer cunho depreciativo da pessoa do autor. Ao contrário, o fato é apresentado na forma como ocorreu. O autor teve a oportunidade para se pronunciar, tendo sido ouvido’.

E o juiz conclui, adiante:

‘Em tal contexto, depreende-se que inexistem danos morais a serem reparados. Isto posto, julgo improcedente o pedido, extinguindo o processo com análise de mérito, na forma disposta pelo artigo 269, I do CPC’.

.5.

Todos os pertences de Tim Lopes foram encaminhados à viúva, tão logo recuperados. O telefone celular, o caderno de telefone e o bloco de anotações foram encaminhados à polícia, e não à viúva, porque assim foi exigido. O inspetor anunciou em seu relatório que faria uma perícia no aparelho de telefone e Daniella diz que tal fato teria deixado a TV Globo ‘em polvorosa’. Não faz sentido: a TV Globo contribuiu zelosamente com a polícia nas investigações. E, mesmo que a TV Globo não tivesse sido capaz de encontrar o aparelho de telefone, todos sabem que os telefonemas dados e recebidos ficam registrados nas companhias telefônicas. Nessa hipótese, o aparelho seria peça de pouca valia.

.6.

Daniella diz também que a reportagem na Vila Cruzeiro teria sido a primeira realizada com o conhecimento de pessoas da comunidade. Não posso imaginar de onde Daniella tirou isso. A verdade sempre foi dita: Tim foi à favela atendendo a chamado de moradores, aflitos e angustiados porque suas filhas estavam sendo obrigadas pelos traficantes a participar dos bailes. Dissemos e repetimos isso à exaustão. Todo jornalista sabe que quase cem por cento das pautas acontecem assim: alguém passa a informação, dá os detalhes, conta o que está acontecendo. Nós, jornalistas, não temos bola de cristal. Quase toda matéria tem fontes. Ou alguém imagina que a reportagem ‘Feirão das drogas’, que deu a Tim e a outros colegas um Prêmio Esso, saiu do nada? Ela foi também fruto do apelo desesperado de pais de família, cansados de ver um pregão de drogas em frente às escolas de seus filhos, em frente às padarias e pequenos mercados. Ou alguém imagina que Tim se internou em uma clínica de dependentes para denunciar descaso, maus tratos e cárcere privado, porque teve um insight? É evidente que Tim se pôs novamente atrás de uma denúncia, feita por pessoas que vêem na imprensa a última possibilidade de justiça.

.7.

Daniella acusa a imprensa de ter prometido concluir o trabalho que Tim estava fazendo e não cumprir. Como assim? Toda a imprensa passou três meses investigando o caso diariamente, com páginas e páginas escritas, minutos e mais minutos de rádio e, no caso da Globo, com mais de 17 horas de reportagens postas no ar em seus telejornais. A imprensa não descansou nem mesmo quando todos os culpados pelo assassinato de Tim foram identificados e presos. O combate ao tráfico de drogas nunca mais saiu de nossas pautas. Todo jornal, toda revista, toda emissora de rádio e televisão têm feito o seu papel, denunciando o tráfico, cobrando da polícia, das autoridades e da sociedade o fim do poder paralelo dos traficantes. Não há um minuto de trégua. E nem haverá. Inspirando cada reportagem sobre o assunto está o Tim, o exemplo do seu martírio. Digo isso com toda convicção. Hoje, Daniella parece não enxergar isso. Mas chegará o dia em que ela se dará conta de que é plenamente possível lutar judicialmente para atingir os objetivos dela, sem que para isso seja necessário diminuir, mesmo de forma não intencional, a grandeza do trabalho que Tim realizava, e que deixou em todos nós a convicção de que é imprescindível prosseguir com o mesmo empenho.

É por acreditar que este dia está perto que, muitas vezes, diante de acusações infundadas dirigidas à Globo, mas também a toda a imprensa, nós nos calamos. Nosso silêncio talvez venha daí. Do revolta diante de inverdades; mas também da esperança de que esse dia chegue logo.

***

PS: Não fiz menção aqui ao caso de Cristina Guimarães e do tal turista de Cuiabá, porque já tinha dados os esclarecimentos no artigo em que respondi a Mario Augusto Jakobskind [remissão abaixo]. Depois dos esclarecimentos de hoje, voltarei ao silêncio. Em respeito ao Tim.

******

Diretor-executivo de jornalismo da TV Globo