Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Direitos humanos na caverna

Durante muito tempo, a imprensa internacional usou a palavra ‘caverna’ como lugar real e como imagem para o esconderijo de Osama bin Laden. Mas ela é também uma boa metáfora para o lado sombrio, tanto do líder terrorista quanto de seus executores.

Findo o impacto inicial da notícia, a mídia começa a esquadrinhar os aspectos, digamos, ‘cavernosos’ da operação militar. No jargão das narrativas de espionagem, tratou-se mesmo de uma wet operation, ‘molhada’ ao pé da letra, porque seu objetivo é a produção de sangue do inimigo (aliás, o noticiário menciona a existência de baldes de sangue no quarto do terrorista). Os assassinatos comandados pelas agências secretas de segurança americanas são wet operations, identificadas por um codinome, ao qual se cola a sigla EKC (enemy killed in combat).

Toda essa terminologia é familiar aos leitores desse gênero ficcional que, exageros de James Bond à parte, não é tão fictício assim, quando se sabe que muitos de seus autores são ex-agentes das ‘cavernas’ da inteligência armada. Familiar também é a cena em que o presidente americano acompanha à distância o desenrolar da ação. Em séries televisivas ou em livros, não raro o chefe da nação é conotado como um chefe de polícia, ou seja, como alguém habilitado a comandar ações repressivas. Apesar da baixa qualidade literária da maioria dos textos desse gênero, as narrativas deixam entrever outro lado, sócio-antropologicamente importante, que ancora diretamente no imaginário do império americano, com todas as pretensões hegemônicas e as fobias correspondentes ao subconsciente coletivo de xerife do planeta.

Poderes parapsíquicos

Nunca, porém, havia aparecido na imprensa a imagem do presidente dos EUA e sua equipe acompanhando por monitores de tevê uma ‘operação molhada’. Até então, essa cena era apenas um suposto, algo que certamente acontecia, mas longe da representação pública. O famoso Salão Oval converteu-se, assim, em ‘caverna’ operacional como manda o figurino tecnológico do terceiro milênio: imagens de ação em tempo real e, certamente, todo o ‘molhado’ em vivas cores. Como diante de um thriller, a secretária de estado Hillary Clinton tapava a boca com a mão. Há quem tenha esse gesto por empolgação, mas também quem vomite frente a muito sangue.

Há, claro, a explicação política: uma reeleição presidencial no horizonte, em princípio garantida pela execução do terrorista e por sua cena. Mas há ao mesmo tempo a reiteração daquela obscenidade apontada por Jean Baudrillard em América:

‘Milagre da obscenidade, propriamente americano: da disponibilidade total, da transparência de todas as funções no espaço, que contudo permanece insolúvel em sua extensão e só pode ser conjurado pela velocidade. Milagre italiano: a cena. Milagre americano: o do obsceno. A luxúria do sentido contra os desertos da insignificância’.

A morte de Bin Laden ao vivo, pela televisão para o reduzido público da cúpula imperial é obscena e grotesca enquanto índice de um poder de império, que admite a prática da tortura e se lixa para as fronteiras territoriais. Nada de hegemonia ao modo de Antonio Gramsci, mas um poder de cowboys: Bill Clinton já havia grotescamente sugerido, durante a cúpula econômica de Denver em 1997, que os delegados estrangeiros comparecessem ao banquete de abertura vestidos de cowboys americanos.

Além do riso nervoso, o grotesco pode suscitar um mal-estar não inteiramente perceptível. No episódio da morte de Bin Laden, além de todos os aspectos imperiais debatidos na mídia, já é objeto de protestos o codinome da caçada ao terrorista: ‘Geronimo’. Este é o nome do chefe indígena (1829-1909) que durante muitos anos enfrentou com sucesso as tropas mexicanas e americanas até se render em fins do século 19 (por meio de um acordo, depois desrespeitado) e permanecer 20 anos como cativo numa reserva. Como bem se sabe, a nação americana é cimentada pelo liberalismo e pelo sangue das populações indígenas (também verdadeiras nações) massacradas. Os que sobreviveram foram confinados em reservas.

A biografia de Goyaalé (seu verdadeiro nome na língua dos apaches chiricauas) é notável: além de extraordinário estrategista militar, era conhecido por seus poderes parapsíquicos, que hoje os especialistas descriminam como telepatia, telequinésia etc. Um dos filhos do grande chefe apache foi herói na batalha de Omaha, na Segunda Guerra Mundial. Seu filho, que combateu no Vietnã, é quem agora protesta contra a associação do nome do avô ao de Bin Laden.

O sorriso e a carranca

Por que Geronimo? Possivelmente porque, a exemplo de Bin Laden, ele driblou durante muitos anos o poder militar americano. Na realidade, porém, porque no imaginário cowboy, toda diferença cultural ou étnica, fora da reserva guetificada, é uma ameaça virtual. Da exploração dessa ameaça vivem os best-sellers e os blockbusters, que instilam e administram narrativamente o medo coletivo, sobre um fundo ideológico de isolacionismo, contraditório (mas apenas na aparência) num país de imigrantes.

Enquanto se trata de literatura e cinema, não há motivo para alarme. O problema é que, com a mesma obscena desfaçatez contida nas revelações da tortura continuada junto aos prisioneiros em Guantánamo, o Império não esconde que mobiliza 12 mil pessoas em operações (‘molhadas’ ou ‘enxutas’?) de suas forças especiais em cerca de 75 países. A informação parte do próprio chefe do Comando de Operações Especiais dos EUA, almirante Eric T. Olson. Três unidades permanentes no Comando Sul, sediado na Flórida, realizam em média 42 missões secretas em 26 países da América Latina. O orçamento para tudo isso, que era de 2,1 bilhões de dólares em 2001, subiu para 9,8 bilhões em 2011 e deverá aumentar para 10,5 bilhões no ano que vem.

Em poucas palavras, ‘eles’ – a turma que tortura e mata, desrespeitando fronteiras nacionais – estão entre nós, fazendo exatamente o quê, não se sabe. A justificativa pública para a tortura de prisioneiros já é um balde d’água sobre a pira acesa dos direitos humanos. Mas a presença ativa daqueles personagens encarnados nas telas por Stallone, Steven Segal, todos os velozes e furiosos, é francamente inquietante.

Foi simpática a conversa de Obama no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando de sua visita ao Brasil, mas há também aquela história do policial bonzinho e do mauzinho na hora do interrogatório, o lado sorriso e o lado carranca: na verdade, a cara é a mesma. Entre o Teatro e o Salão Oval, os direitos humanos perigam entrar na caverna.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro