Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Que venha a concertação

O ministro Tarso Genro trouxe para a ordem do dia a palavra ‘concertação’, ainda ausente dos dicionários como verbete, mas de presença virtual em nossa língua. Provavelmente por sutis complexidades de sua aproximação com o espanhol, como homem do Brasil meridional, e conscientes ou inconscientes influências das leituras que faz dos vizinhos da América Latina, o ministro revelou, como de outras vezes, a sua face de intelectual sabedor do poder das palavras. Não se vive e não luta sem elas, que são armas poderosas. As palavras desembainham os sabres, transformam força de trabalho em braço armado e vice-versa. E são a ferramenta principal das democracias.

Nos albores da ditadura militar, o povo precisou aprender novas palavras: subversão, subversivo, cassar (que conhecia mais como caçar), ato institucional etc. Veio o governo Geisel, que deu início à ‘distensão’, acrescida de três adjetivos: ‘lenta’, ‘segura’ e ‘gradual’.

O brasileiro médio conhecia ‘distensão’ do futebol. Sendo ‘lenta’, ‘segura’ e ‘gradual’ deveria doer ainda mais, semelhando suplício da Inquisição, que distendia com segurança, gradualmente e devagarinho os condenados sobre os cavaletes da tortura para que eles sofressem ainda mais.

Outra palavra, tortura, passou a integrar o estranho séqüito das palavras da nova ordem do dia, no caso designando práticas condenáveis por todos os povos civilizados, mas por eles adotados como formas de luta, de que são contundentes os exemplos da guerra que os franceses travaram contra os argelinos, o modus operandi dos EUA no Iraque e nas prisões de Guantánamo. E infelizmente o caso do Brasil em vários períodos históricos, sendo o mais recente o pós-1964.

Concessões generosas

À ‘distensão’ do governo Ernesto Geisel seguiu a ‘abertura’ do governo João Figueiredo, o último do recente ciclo militar (Castello Branco, Costa e Silva, Junta Militar, Emílio Médici, Geisel e Figueiredo).

Agora, nos finais do primeiro governo Lula, depois de o Brasil ter consolidado a democracia com a realização de eleições diretas (Collor, FHC, Lula), surgem palavras emblemáticas, como o adjetivo ‘republicano’ e o substantivo ‘concertação’. O primeiro, para justificar práticas que seriam inerentes à República, como a investigação de crimes políticos e de seus demorados ritos de apuração e punição. Mais do que uma figura palaciana chegou a aludir ao fato de não haver mais tortura para justificar a demora de certos esclarecimentos. Trata-se de gafe horrorosa, mesmo quando feita com aquelas boas intenções de que São Bernardo disse que o Inferno está cheio, por deixar implícito que – Deus nos livre! – ela poderia a ser usada.

Concertação não é palavra estranha ao português, como não eram todas as outras, trazidas para a ribalta para designar novas realidades. Mas o que quer designar esta ação de concertar, e não consertar? Os dois verbos tiveram o mesmo significado ou significados muitos semelhantes durante cinco séculos. Com efeito, ‘concertar’ e ‘consertar’ estão em nossa língua desde o século 14. Por influências hispano-americanas, eis que ‘concertar’, o verbo, ensejou o substantivo ‘concertação’, alterando antigos significados, pois até as primeiras décadas do século 19, concertar era apenas variante de consertar. Como se sabe, o som de ‘s’ é escrito de muitas maneiras, de que são exemplos em ‘s’ (sapato), ‘ss'(cassar), ‘c’, (cidade), ‘ç’, (peça), ‘xc’ (exceção) e ‘z’ (feliz).

Mas Machado de Assis – sempre ele! – dá a ‘concertar’ o significado a que agora o ministro Tarso Genro alude. Para este artigo, melhor que a botânica, que explicaria a origem, eis a jardinagem do escritor com este verbo, no conto A Igreja do Diabo, reunido em Histórias sem Data, narrando as peripécias de Joaquim Fidélis, deputado que não consegue se reeleger e abandona a vida pública, admitindo a muito custo que era um ‘conservador’, preferindo ‘saquarema’, substantivo e adjetivo em nossa língua, depois que a cidade fluminense de Saquarema se tornou o berço de importantes políticos conservadores do Brasil de Pedro II.

O deputado é assim visto por nosso, mais que gênio, oxigênio literário:

‘Tão amado que ele era, com os modos bonitos que tinha, sabendo conversar com toda a gente, instruído com os instruídos, ignorante com os ignorantes, rapaz com os rapazes, e até moça com as moças. E depois, muito serviçal, pronto a escrever cartas, a falar a amigos, a concertar brigas’.

Continua Machado:

‘Era rico e letrado. Formara-se em direito no ano de 1842. Agora não fazia nada e lia muito. Não tinha mulheres em casa. Viúvo desde a primeira invasão da febre amarela, recusou contrair segundas núpcias, com grande mágoa de três ou quatro damas, que nutriram essa esperança durante algum tempo. Uma delas chegou a prorrogar perfidamente os seus belos cachos de 1845 até meados do segundo neto; outra, mais moça e também viúva, pensou retê-lo com algumas concessões, tão generosas quão irreparáveis. `Minha querida Leocádia´, dizia ele nas ocasiões em que ela insinuava a solução conjugal, `por que não continuaremos assim mesmo? O mistério é o encanto da vida´.’

Critério da verdade

Nosso maior escritor trouxe ‘concertar’ para revelar aos leitores o perfil de um político do Segundo Império. O ministro Tarso Genro acena para os vencidos com o entendimento, gesto de grandeza. Na língua portuguesa, concertar e consertar requerem luta, como indicam até mesmo os étimos latinos dos dois verbos.

Consertar veio do latim vulgar consertare, que no latim culto era conserere, ambos com o significado de ligar, atar, juntar.

Concertar nasceu igualmente do latim, mas de palavra diversa: concertare, com os significados de lutar, combater, argumentar, discutir. A raiz remota é o verbo certare, lutar, de onde veio certame, disputa, que foi originalmente esportiva, nos campos de batalha ou na arena do Coliseu, mas que migrou para os debates políticos da antiga Roma.

Em resumo, mutandis mutandis ou chutatis chutandis, o certo é que a proposta do ministro Tarso Genro traz um convite para elevação do debate político entre nós. A sociedade e a mídia, porém, têm motivos para desconfiar de que esta não seja a posição dominante no governo. Ela pode ser tomada apenas como variante de ‘pacto’, outra palavra que não deu em nada em passado recente. Falava-se em pacto, mas vinham bordoadas de todos os lados. Inclusive nos contracheques, os nichos preferenciais dos impostos.

A ‘concertação’ bem que poderia começar redefinindo outros conceitos: ‘salário’ (originalmente salarium, sal ou dinheiro para comprar sal), quando insuficiente para atender às necessidades de alimentação, moradia, segurança, saúde, transporte e estudo, não pode continuar sendo definido como ‘renda'( originalmente rendita, lucro obtido depois de descontadas todas as despesas) e ser o ervanário principal para manter ‘bondades’ como o Bolsa Família, ainda indispensável, mas que pode ser financiada de outro modo. Com os juros, por exemplo, entre os mais altos do mundo.

Tomara que a prática, o critério da verdade, nos livre da maldição de São Bernardo (lembremos: ‘de boa intenções, o Inferno está cheio’), padroeiro do município onde o presidente Lula surgiu como liderança nacional.

Que venha a ‘concertação’!

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br