Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Venezuela, e os dois pesos e duas medidas dos EUA

(Foto: Manaure Quintero/REUTERS)

Sorpresa te da la vida, sorpresas...”, disse o cantor. “A razão do mais forte é sempre a melhor”, disse o fabulista. De fato, os últimos eventos na Venezuela convidaram muitos observadores a cantarolar as palavras da canção de sucesso de Rubén Blade e, mais uma vez, validaram a constatação feita por Jean de La Fontaine.

Até o começo de 2022, a mídia europeia e norte-americana vilipendiavam Nicolas Maduro, o chefe de Estado venezuelano. Ele foi acusado de fraude eleitoral, violação de direitos parlamentares, violações dos direitos humanos, crimes contra a humanidade e ameaçado de ser indiciado pelo Tribunal Penal Internacional. As críticas, que se tornaram acusações e condenações sem terem passado por nenhum processo ou qualquer outra forma de julgamento institucional, justificaram a adoção de diversas sanções, todas unilaterais, definidas pelos Estados Unidos e seus aliados na Aliança Atlântica e na América Latina.

A situação no país certamente justificava muitas críticas. Os princípios democráticos foram interpretados de forma unilateral pelo Palácio de Miraflores (o Palácio do Planalto venezuelano). A oposição foi sendo silenciada ao longo dos anos, o Congresso ignorado, o aparato estatal foi amplamente mobilizado pelas autoridades no poder a cada eleição, e os excessos da polícia foram várias vezes registrados. A gestão do país e de sua riqueza petrolífera foi corroída pela incompetência e corrupção. Em 2014, a inflação, o desemprego e a insegurança haviam levado milhares, depois dezenas de milhares de venezuelanos a fugirem de seu país para sobreviverem em outros lugares.

Entretanto, fazer o que fazem sempre os “Ocidentais”, ou seja, sufocar um pouco mais um paciente com coronavírus, em nada ajuda. As sanções econômicas e financeiras secaram a renda das exportações de petróleo. O país já estava muito doente.  Uma vez puxado o tapete dos petrodólares, os venezuelanos tomaram o caminho do exílio econômico não mais às dezenas de milhares, mas às centenas de milhares. Isto criou uma grande desordem humanitária em todos os vizinhos latino-americanos de Caracas, especialmente para a Colômbia, que hoje abriga mais de 1,5 milhões de venezuelanos. As consequências humanitárias deste estrangulamento econômico bem sucedido se tornaram, por essa razão, praticamente insolúveis. De fato, a legitimidade das autoridades venezuelanas lhes foi retirada, após Estados Unidos, Alemanha, Espanha e França, assim como os membros liberais-conservadores latino-americanos do Grupo Lima, romperem efetivamente as relações com a Venezuela. Um presidente de faz de conta, Juan Guaidó, autoproclamado durante uma manifestação, foi endossado pelos Estados Unidos e, por sua vez, por todos os amigos de Washington.

A defesa de direitos e liberdades era justificativa suficiente, mas era preciso mesmo o uso de meios de pressão tão brutais e inadequados? Foi a pergunta que se fez, ao convocar seu embaixador no país para retornar à Europa, o ministro espanhol das Relações Exteriores, José Borrell, em 3 de março de 2019. Como resolver os assuntos em curso entre os dois países, a situação dos residentes espanhóis, o poder real e o controle do território sob a gestão de Nicolas Maduro? A dureza da reação norte-americana, que impediu a negociação de qualquer outra saída, favoreceu opções desestabilizadoras, mesmo à custa da sobrevivência de uma população já maltratada por seu governo.

É preciso se perguntar se esta política sem nenhuma nuance de fato atendeu a sua justificativa, ou seja, a defesa dos direitos humanos. Talvez, em parte. Dito isto, a preocupação de Donald Trump e Joe Biden foi também, mas provavelmente acima de tudo, geopolítica. A presença militar russa, modesta, embora real, estava irritando cada vez mais a Casa Branca, assim como a presença econômica, energética e financeira da China no hemisfério ocidental. Isso foi expresso da seguinte forma por Mike Pompeo, Secretário de Estado de Donald Trump, em 23 de fevereiro de 2019: “Temos uma missão especial de garantir a democracia ao povo venezuelano, que a merece […]. Os cubanos e os russos levaram este país à ruína e não devem mais exercer ali sua autoridade [1]”. A presidência dos EUA havia enviado emissários a governos amigos na América Central e do Sul para dissuadi-los a participar dessa Rota da Seda chinesa e comprar equipamentos Huawei.

Com a Venezuela combinando comércio e declarações dissidentes do eixo de ação americano, Donald Trump e Joe Biden sentiram que Caracas tinha que ser estrangulada economicamente, que era preciso enfraquecer sua legitimidade e isolá-la diplomaticamente. Isto foi aceito sem discussão, a partir de 2017, pelos governos latino-americanos, que eram então predominantemente de direita, e pelos líderes dos principais estados europeus. O chefe de Estado francês sinalizou, por exemplo, em 4 de fevereiro de 2019 que “a França, reconheceu Juan Guaidó como o presidente encarregado” da Venezuela. Um ano depois, em 24 de janeiro de 2020, ele o recebeu no Palácio do Eliseu. Europeus e latino-americanos abriram as portas de seus palácios para o autoproclamado presidente, Juan Guaidó, aceitando a unilateralidade norte-americana.

Isto permaneceu válido até 24 de fevereiro de 2022. Desde a invasão russa da Ucrânia, temos assistido uma, no mínimo engraçada, reviravolta diplomática. Como por magia, ostracizado até 23 de fevereiro de 2022, Nicolas Maduro torna-se, desde 5 de março, alguém a quem se pode visitar. Num passe de mágica, foram esquecidas as violações de direitos e liberdades, o processo no Tribunal Penal Internacional… e a legitimidade do presidente biônico Juan Guaidó. Até então engrandecido pelos Estados Unidos, o presidente biônico “no comando” perdeu toda sua aura justo quando Washington decidiu tomar um rumo diferente. Em 5 de março de 2022, uma delegação da Casa Branca foi recebida no Palácio Miraflores.

Em 26 de novembro de 2022, sob o patrocínio dos Estados Unidos, o impossível se tornou realidade, pois a oposição aceitou o diálogo com Nicolas Maduro. Como um apêndice ou cereja em cima do primeiro compromisso negociado, a empresa petrolífera norte-americana Chevron foi autorizada a retomar suas atividades na Venezuela. Este novo vento rapidamente jogou por terra as interdições europeias. Em Paris, Emmanuel Macron tinha organizado publicamente um mano a mano com venezuelanos, oportunamente convidados para uma festa diplomática, em 11 de novembro de 2022. Em Madri, o Ministro das Relações Exteriores, José Manuel Albares, observou de repente, em 26 de novembro de 2022, que as coisas estavam indo na direção democrática correta e que a Espanha iria enviar novamente seu embaixador para a Venezuela [2].

Esse fôlego concedido ao paciente sem ar não se baseia mais nas mesmas razões. Não se trata mais de defesa de direitos humanos, apesar das declarações ocasionais a esse respeito feitas de Washington a Madri, passando por Paris. Parafraseando Bill Clinton, “é a guerra, estúpido”, a guerra russo-ucraniana, que mudou as prioridades. Moscou e Washington renovaram sua luta de braço de ferro. Com as sanções mútuas de petróleo e gás, sua adrenalina criou uma seca de energia. Como detentora das maiores reservas mundiais de petróleo e geograficamente próxima dos EUA, a Venezuela recuperou imediatamente seu lugar na sociedade: 24 de fevereiro começou o conflito armado; 5 de março chegaram em Caracas os enviados especiais do Presidente Biden. Os europeus seguiram mais uma vez os passos dos norte-americanos. Os latino-americanos, e em particular os colombianos, agora com governos progressistas, aproveitaram a oportunidade para enterrar o Grupo Lima e retomar uma relação pacífica com a Venezuela. O México, historicamente contrário a qualquer forma de interferência, tem estado em uma posição de mediação há vários meses, sediando as conversações entre os EUA, a Europa e a Venezuela.

Este xadrez de direitos, de interesses e da política real é rico em lições. Aqui novamente, o direito tem sido usado para defender os interesses dos mais poderosos, os Estados Unidos. Basta uma convulsão geopolítica, que afete o distribuidor de regras e sanções mundiais, neste caso Washington, que isso legitima a inversão de prioridades, tanto morais quanto materiais, quase imediatamente. É o que vemos hoje em relação à Venezuela, antes interditada, agora frequentável. Tal como aconteceu com Mohammed ben Salmane, o príncipe herdeiro e primeiro-ministro da Arábia, o segundo maior exportador mundial de petróleo, que foi proibido de entrar nos Estados Unidos antes da guerra russo-ucraniana e agora é bem-vindo. O mesmo vale para o tratamento preferencial dado aos migrantes ucranianos nos postos de fronteira com o México ou com a União Europeia.  Eles se beneficiam de um direito derrogatório, ao contrário dos centro-americanos, haitianos e mexicanos, afegãos, africanos ou do Oriente Médio. Sem mencionar, como lembrou o presidente argentino, Alberto Fernandez, em uma cúpula do Mercosul, o argumento ambiental, a proteção da Amazônia. Esse argumento é lembrado pelos europeus, que usam e abusam dele para justificar o seu protecionismo agrícola e com isso adiar a ratificação do acordo comercial União Europeia/Mercado Comum do Sul, assinado em 2019. “Pedimos à Europa”, declarou Fernandez em 6 de dezembro em Montevidéu, “que pare de mentir a esse respeito”.

Notas

Texto publicado originalmente em francês, em 10 de dezembro de 2022, no site IRIS – Institut de Relations Internationales et Stratégiques, Paris/França, com o título original “Venezuela en double morale”. Disponível em aqui. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

[1] Em “El Nacional”, Caracas, 23 de fevereiro de 2019.

[2] Entrevista em ‘El País’, Madri, 26 de novembro de 2022.

 

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.