Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Sai o poeta e entra o jornalista

Segundo um clichê histórico, nossos portos foram abertos às “nações amigas” em 1808. Cem anos depois, o Rio de Janeiro festejou a data com uma suntuosa Exposição Nacional, inaugurada em janeiro de 1908.

Se, no século 19, a abertura se dera mais por causa de injunções da reconfiguração napoleônica da Europa que por generosidade do rei, no século 20, a motivação era interna: a capital federal queria mostrar um Brasil viável aos estrangeiros, depois que fora inteiramente repaginada e saneada pelos governos de Rodrigues Alves (1902-1906) e de Afonso Pena (1906-1909). Mais remotamente, queríamos exibir também nossa República moderna e a abolição do trabalho escravo.

Dessa Exposição Nacional, montada no locus amenus da Praia Vermelha na Urca, pouca documentação restou e o pouco que restou carece ainda de exploração histórica extensa e mais significativa.

Nas duas maiores revistas ilustradas desse período – Kosmos (1904-1909) e Renascença (1904-1908) – a cobertura fotográfica, maior na primeira que na segunda, é ampla, mas a textual é modesta e laudatória, como não poderia deixar de ser. Examinar de perto esse material ou outros artigos que nada têm a ver com a Exposição revela-se hipótese sedutora e se constitui exercício analítico convidativo, porque neles se manifesta a mentalidade que presidia essas comemorações, norteadas sempre para a glorificação de um país em busca de sua afirmação continental. No conjunto de artigos, mesmo que de qualidade discrepante entre si, pululam referências concretas e nítidas que sinalizam, de forma inequívoca, os padrões externos que orientavam nossa ambição rotineira de inserção ocidental. Numa página, é Buenos Aires, que surge como miragem invejável de civilização e de requinte; em outra, é o apelo da Exposição Universal de Saint Louis de 1904, que comemorou a enorme incorporação da Louisiana aos Estados Unidos; em outra ainda, é a 3ª Conferência Americana, que reunira diplomatas na cidade, um pouco antes, em 1906. Fosse como afirmação de nossa viabilidade comercial, fosse como demonstração de nossa maturidade política, uma vez que abolíramos a escravidão e alcançáramos a República, não há dúvida de que a Exposição Nacional pretendia lançar-nos no mainstream da circulação americana e europeia.

Febre amarela, varíola e peste bubônica

Uma crônica despretensiosa de Mário Pederneiras, na Kosmos de janeiro de 1908, sumaria bem, e de forma involuntária, esse gesto de desvendamento, de externalização; de rejeição ao casulo e à caipirice. Em “O quintal e a porta”. a civilização carioca comprime o espaço íntimo do quintal e alarga, por outro lado, o da porta que dá para a rua. Seus dois personagens, em noite abafada, confrontam a porta da rua e o quintal como intervalo de desafogo e como índice de urbanização crescente. Da conversa entre Márcio e o narrador depreende-se que a sociabilidade propiciada por uma e por outra é diferente, mesmo que a família finque-se como instituição a ser preservada a todo custo em qualquer uma delas. No quintal protegido, folga-se sem preocupação; na porta, de onde se assiste à movimentação urbana, convém a cautela.

No Rio de então, os cinematógrafos, os bares, o automóvel, a calçada larga da Avenida Central, ornada de edifícios atraentes, fascinaram e puxaram o cidadão para a rua. A duras penas, a cidade perdia seu acanhamento, sua placenta lusitana e pelejava para alcançar estatuto mais alto. Se não cosmopolita, pelo menos, urbano, despindo-se, pois, do traçado colonial. O Rio civiliza-se era o refrão do momento.

Em livro dos mais imponentes, como documento bibliográfico, arquitetônico e histórico, sobre essa enorme transformação urbana, Marc Ferrez conta-nos que, antes dessa reforma iniciada pelo prefeito Pereira Passos em 1904, “o Rio de Janeiro era ainda uma cidade acanhada, de ruas estreitas e casas insalubres, apertadas entre os morros do Castelo, Santo Antonio, São Bento e Conceição. Estava sujeita, todos os verões, a perigosos surtos de febre amarela, de varíola e de peste bubônica. Não tinha água nem iluminação a gás suficiente e suas ruas eram mal pavimentadas”(O Álbum da Avenida Central. São Paulo: João Fortes Engenharia/Editora Ex Libris, 1982. p. 13).

Um porta-voz arrebatado

Como epicentro dessa enorme transformação urbana, inaugurada em novembro de 1905, adornou-se a Avenida Central de edifícios majestosos, sob inspiração francesa. De olho em Paris e em Buenos Aires, o poder público e o privado deram-se as mãos no sentido de dotar nossa capital do país de um mínimo de urbanidade. Nas laterais da larga Avenida ergueram-se, assim, prédios particulares ou públicos que corroeram o prestígio da estreita Rua do Ouvidor, abafando-a, deslocando-a e esvaziando-a de sua prioridade como ponto social. Como já dissemos em outra ocasião, pela Avenida Central, “por aquela passarela galante, o carioca flanava sua elegância e bom gosto, copiados do figurino francês, e, por causa dela, a estreita e imperial Rua do Ouvidor perdeu sua hegemonia, cedendo lugar a uma artéria republicana mais espaçosa, arejada e convidativa”.

Pelas datas e pelos edifícios, percebe-se que se tratava de projeto sistemático, conduzido em razoável sintonia. Em torno da atual Cinelândia carioca, ponto de referência daquele novo traçado urbano, ergueu-se, em 1906, o Palácio Monroe, derrubado pelo governo militar em 1976; de 1908 é a Escola Nacional de Belas Artes; de 1909 é o Teatro Municipal; em 1910, inaugurou-se a Biblioteca Nacional.

Desse clima de bota-abaixo, designação sugestiva para o ímpeto reformista de então, foram muitos os jornais e revistas que participaram, sobretudo a Kosmos e a Gazeta de Notícias. Em suas edições mensais, recheadas de farta cobertura fotográfica, a Kosmos acompanhou de perto a movimentação e a ela emprestou sua voz autorizada Olavo Bilac, porta-voz arrebatado das novas medidas municipais. Pelas crônicas mensais da revista elegante, Bilac atuou como editorialista e chancelou a novidade; pelas crônicas semanais da Gazeta de Notícias manteve-se atento ao fato, mas evitando a repetição e o enfado. Apenas atento.

“Inaugurou-se a Avenida! Parece um sonho…”

Talvez porque se dirigissem – revista e jornal – a públicos distintos, talvez porque sua periodicidade fosse outra, o fato é que varia o tom da animada campanha bilaquiana a favor da Avenida. Pelas páginas de Kosmos, Bilac é menos imediatista, mais abrangente, mas sempre eufórico, tanto na revista, quanto no jornal. Basta lermos o que escreveu o cronista em Kosmos, no momento da abertura e no da inauguração dos trabalhos de remodelação viária. Nas duas ocasiões, sobrepõe-se o poeta ao jornalista, mas ambos convocam a solidariedade do leitor contra o passado. O Bilac de março de 1904 contrapõe sons – o festivo contra o soturno – como forma de abafar o tempo e a História. O de novembro de 1905 contrapõe luzes – a clara contra a escura – como recurso para desencravar do espaço velho e da Geografia o tempo novo.

Em março, escreve ele: “Há poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciaram os trabalhos da construção da Avenida Central, pondo abaixo as primeiras casas condenadas. […] No aluir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia um longo gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbrio. A cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, estava soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esse protesto impotente.”

Meses depois, em novembro do ano seguinte, a figuração é ainda antitética, mas alimentada por contraponto visual e não mais sonoro: “Inaugurou-se a Avenida! Parece um sonho… Onde estás tu metido, Carrancismo ignóbil, que por tanto tempo nos oprimiste e desonraste? Em que furna lôbrega, em que socavão escuro te foste esconder envergonhados? Em vão te procurei, nestes últimos dias e nestas últimas noites de Novembro, pela radiante extensão da Avenida formosa: não vi, em parte alguma, o teu olhar sinistro em que a má vontade reluz perpétua, a tua boca franzida num eterno sorriso de sarcasmo, a tua fronte envergada numa perene contenção de birra e malevolência… Andas, com certeza, homiziado nos becos sujos, em que se mantém ainda a tradição do mau gosto e da imundície: afugentou-te a luz da Avenida, horrorizou-te a alegria do povo, fulminou-te o despeito!”

Uma pauta ética

Ficaria na mera retórica o nosso grande poeta parnasiano não fosse sua ação incansável como jornalista e cronista de seu tempo. Não fosse sua atuação pelos jornais durante largos anos, sua memória literária ficaria circunscrita à atividade poética, que tanto alimenta ainda a apreciação apressada, desdenhosa de um inegável domínio do verso e da língua portuguesa.

Escorado pelo jornalismo, Bilac atravessou o verso e o salão para ganhar a prosa e a rua. Mantiveram-no refém daquele espaço privado os que se contentaram com a tradição e nela se enclausuraram.

É desse Bilac callejero que Marta Scherer, com pertinácia e pesquisa, trata nas próximas páginas deste Imprensa e Belle Époque: Olavo Bilac, as redações e suas histórias, mestrado defendido na Universidade Federal de Santa Catarina em 2008.

De um Bilac que conciliou a rotina jornalística com a poética e que nessas duas atividades deixou sua marca como artista antenado e jornalista atualizado, sempre disposto a opinar sobre sua circunstância urbana, destroçando a mitologia da alienação parnasiana, de olho apenas em helenices.

O que temos nesta versão bilaquiana de Marta Scherer é a do jornalista que se voltou para o próprio ofício, disposto a formular, na prática, uma pauta ética que orientasse uma profissão que mal nascia e que se via às voltas com seus próprios limites. Como/quando/se/onde ultrapassá-los?

Reconhecimento e agradecimento

No arrebatamento da modernização a seu redor, escolheu Bilac bem mais que a simples transformação material da cidade, onde encontrou motivos frequentes para opinar sobre os temas mais diversos, quase todos ainda aguardando estudo minucioso. Cabia um pouco de tudo nas caixas desse bufarinheiro assumido: indumentária inadequada, infância ao léu, espectadores mal educados, festas populares, liberdade de culto, resíduos escravagistas, vida literária, nacionalismo linguístico, comportamento juvenil, transporte público, saneamento urbano, querelas políticas, política imigratória e o que mais comportasse o mosaico urbano em expansão.

Entre tantas alternativas, Marta recortou uma que ficasse restrita à profissão de jornalista, elo entre o objeto e quem o estudou. Dessa escolha, Marta extraiu tópicos que muito colaboram para a constituição da história do nosso jornalismo, numa perspectiva mais crítica e mais acadêmica, a despeito do menosprezo que ronda o último termo. Com trabalhos como este, encorpa-se a bibliografia da área, porque em Imprensa e Belle Époque abre-se espaço para avaliar a diferença entre linguagem jornalística e linguagem literária; a função da fotografia na imprensa; as relações internas de uma redação; a distância entre o informativo e o opinativo; as tecnologias que condicionam a tarefa de informar; o anonimato da fonte; o espaço, físico e financeiro, da publicidade; a tensão entre o visual e o verbal; a agilidade da notícia; o conflito de interesses entre imprensa e governo; o uso de pseudônimos; a opinião do leitor; a aposentadoria dos profissionais; a disputa entre o capital e o trabalho; a discrição na cobertura do ato criminoso etc.

São tantos os temas, como se vê, que seu tratamento extenso não cabe nos limites destas páginas. E se isto poderia parecer defeito a algum guloso que clame pela totalidade, a ponderação retruca que é virtude. Porque além de se sobressair como indicação analítica de temas específicos, este ensaiocomporta ainda o dom generoso de sugerir novos caminhos de investigação acadêmica aos nossos estudantes de Jornalismo e de Letras, hoje um tanto acomodados na mesmice da produção sem pesquisa de fontes. Em país onde elas abundam soterradas em arquivos mal cuidados ou emperrados pela burocratite, o desafio que Marta Scherer encarou não merece senão nosso reconhecimento e nosso agradecimento.

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[Antonio Dimas é professor livre docente da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas daUSP]

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Apresentação

Crônicas, jornalismo, transformações. Essas são as palavras chaves deste livro, que apresenta um estudo sobre a imprensa brasileira do virar dos séculos 19 pra o 20 através dos olhos de Olavo Bilac, que aqui aparece não como o grande poeta parnasiano, mas sim como o jornalista de texto magistral e testemunha de um momento de grande efervescência cultural e política no país. Ao realizar uma inserção na vasta produção jornalística de Bilac, é possível compreender transformações significativas na imprensa brasileira daquele período.

Em seus textos sobre imprensa, o cronista explicou e explicitou o funcionamento e a importâncias dos veículos de comunicação no momento mesmo que se firmavam como símbolo da vida urbana. Com sua escrita metalinguística, o cronista ofereceu ao público a possibilidade de conhecer os bastidores da vida de imprensa no período conhecido como Belle Époque, com todos seus meandros.

O livro está dividido em três capítulos.No início, é apresentada a carreira jornalística de Olavo Bilac, assim como um breve panorama da sociedade carioca de então, com todas as mudanças que ocorreram no período. As transformações da imprensa foram demonstradas no segundo capítulo, fragmentado entre as partes editorial, gráfica e comercial, tal qual se dá dentro de um veículo impresso de comunicação. No terceiro capítulo é a atividade dos jornalistas que se apresenta, não mais a das empresas. A intenção é relatar a vida dos homens que faziam da imprensa seu palco e ganha-pão, saber como se relacionavam e, sobretudo, como era o exercício da profissão em clima de Belle Époque.

Ao compor esses quadros, o livro tem como objetivo recuperar uma parte pequena, porém significativa, da história da imprensa brasileira, resgatando memórias de um passado que não acabou, pois que nos constitui ainda como herdeiros desta imprensa, sejamos escritores, jornalistas ou leitores. Crônicas, jornalismo, transformações – são essas as palavras. (Marta E. G. Scherer)

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Sobre a autora

Marta Scherer é jornalistaformadaUniversidade Federal de Santa Catarina. Em 2008 defendeu seu mestrado em literatura brasileira com a dissertação Bilac – sem poesia, que recebeu o Premio Adelmo Genro Filho de Melhor Dissertação, concedido pela Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo, e deu origem ao livro Imprensa e Belle Époque.Atualmente, a autora é bolsista CNPq do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, onde dá continuidade à pesquisana área de história da imprensa e literatura brasileira. De 2000 a 2009 foi professora titular do Curso de Comunicação Social da Universidade do Sul de Santa Catarina.