Monday, 20 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

A pressão contra a TV Cultura e os serviços públicos de comunicação na Europa e nos Estados Unidos

(Imagem divulgação)

Uma sequência de ofensivas do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) e aliados contra a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, ocupou o noticiário nas últimas semanas. Tentar enfraquecer a principal TV pública do país, no entanto, contraria as tendências apontadas por pesquisadores internacionais para o papel dos serviços públicos de comunicação na era digital. 

Em abril, o vice-líder do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo, deputado estadual Guto Zacarias (União Brasil), reuniu assinaturas para instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a gestão da Fundação Padre Anchieta. O deputado acusa a fundação de suspeita de mau uso do dinheiro público e irregularidade na eleição do Conselho Curador da entidade. 

A CPI não foi instalada e não há detalhes sobre as supostas suspeitas. Os balanços financeiros da Fundação Padre Anchieta são publicados anualmente no portal da Fundação e são abertos para leitura do público

A gestão do governador pressiona ainda a instituição com corte de recursos. A Secretaria da Cultura de São Paulo anunciou o contingenciamento de R$ 12,9 milhões dos recursos destinados à fundação para 2024. O orçamento da Fundação Padre Anchieta é formado por repasses do governo do estado e por receitas próprias provenientes da veiculação de apoios culturais e da renda com produções. 

O presidente do Conselho Curador da Fundação Fábio Magalhães e o diretor-presidente José Roberto Maluf enviaram carta aos deputados estaduais em que contestaram a acusação de excesso de gastos e também refutam quaisquer irregularidades na eleição de novos conselheiros realizada em março. As regras para a formação e a eleição de membros do Conselho Curador da TV Cultura estão estabelecidas no Estatuto Social da Fundação. 

É fato que as empresas de serviço público em vários lugares do mundo têm sofrido pressão por corte de gastos diante do aumento da inflação, especialmente na Europa. As cifras que estão em jogo, no entanto, não se compararam ao orçamento da TV Cultura, que aprendeu a fazer muito com um orçamento baixo mesmo nos bons tempos de crescimento da economia no Brasil. A programação orçamentária de despesas da Fundação para 2024 é de R$ 208,5 milhões. 

Os serviços públicos de comunicação são sustentados por taxas pagas pelos cidadãos no Reino Unido, na Alemanha e em vários outros países europeus. O valor arrecadado com a taxa de licença (license fee) para a British Broadcasting Corporation (BBC) alcançou 3,74 bilhões de libras em 2023. Isso representou cerca de 65% do total de receitas que foi de 5,73 bilhões de libras (cerca de R$ 37 bilhões) no ano passado. Parte dos recursos da BBC vem de ações comerciais como a venda e a licença de programas internacionalmente. Os programas da BBC não transmitem propaganda dentro do Reino Unido [1].

O orçamento da Rádio e Televisão de Portugal (RTP) provém de uma contribuição audiovisual cobrada na conta de energia dos portugueses e de atividades comerciais com a venda de espaços de propaganda e recursos obtidos com direitos de exibição de programas. Em 2023, o total arrecadado com a contribuição audiovisual em Portugal alcançou 190,5 milhões de euros (cerca de R$ 1,06 bilhão). Isso corresponde a cerca de 81% das receitas da RTP. Os outros 19% vêm da comercialização de programas, recursos obtidos pelos direitos de exibição, e da venda de espaços de publicidade. A principal emissora de tevê, a RTP1 tem um limite de seis minutos de propaganda por hora.

Nos Estados Unidos, a forma de financiamento é mais complexa. Os recursos das redes públicas de rádio National Public Radio (NPR) e de televisão Public Broadcasting Service (PBS) vêm de taxas pagas pelas estações que compõem a rede e de doações de ouvintes e empresas. Na fórmula norte-americana de financiamento, os recursos passados pelo governo federal são parte essencial para a manutenção das emissoras públicas [2]. 

Estações locais públicas dos Estados Unidos recebem subsídios da Corporation for Public Broadcasting (CPB), corporação sem fins lucrativos criada em 1967 e totalmente financiada pelo governo federal norte-americano. Em 2024, a dotação orçamentária do governo federal para a CPB alcança 525 milhões de dólares (cerca de R$ 2,7 bilhões) que serão repassados para emissoras públicas locais de rádio e de televisão. 

Apesar de o contexto do modelo de exploração da radiodifusão ser diferente na Europa e nos Estados Unidos, a existência do serviço público de comunicação se baseia no mesmo princípio de que é necessário informar o cidadão para que ele possa exercer a cidadania e garantir espaço para a pluralidade de vozes da sociedade na esfera pública democrática. 

Livre de influência do mercado e de interferência política, o serviço público deve informar o cidadão mesmo que o assunto ainda não tenha ganhado espaço na mídia. Os editores escolhem as pautas que serão tema de reportagens ou ganharão espaço nos programas sem se preocupar se a notícia vai render audiência para resultar em mais faturamento com anúncios e sem a imposição de censura ou autocensura caso o conteúdo possa eventualmente incomodar governantes ou figuras públicas. A ética e a apuração precisa são os valores centrais nessas instituições. 

Com o avanço da digitalização sob a tecnologia de radiodifusão (a transmissão de sinal de rádio e televisão em ondas eletromagnéticas), o Comitê de Ministros do Conselho Europeu elaborou uma recomendação para que as organizações de serviços públicos dos países membros da União Europeia desempenhassem a missão que cumpriam também através de diversas plataformas digitais para oferta de serviços. 

O texto publicado em 2007 afirma que “a missão do serviço público é ainda mais relevante na sociedade da informação”. A recomendação diz ainda que a mudança de tecnologia resulta no surgimento da expressão public service media, em português geralmente traduzido como serviço público de comunicação. O termo “media” substituía a palavra “broadcasting” (radiodifusão) anteriormente empregada [3]. 

Atualmente, as principais organizações de serviço público de comunicação no mundo oferecerem serviços digitais online em ambientes multiplataformas. Estão neste grupo a britânica BBC, a portuguesa RTP, a espanhola RTVE e várias outras. Também as redes públicas norte-americanas PBS e NPR têm forte presença no mundo digital e oferecem seus próprios aplicativos de conteúdo. 

Uma pesquisa elaborada pelo Instituto Reuters e pela Universidade de Oxford mostrou que o serviço público de comunicação ainda é muitas vezes a principal referência para todas as faixas etárias ao procurar notícias confiáveis. Em quase todos os países pesquisados, a maioria das pessoas respondeu que considera o serviço público importante para elas pessoalmente [4].  

A pesquisa mostrou ainda que pessoas que se identificam politicamente com a direita, ainda assim, tendem a valorizar o serviço público de comunicação quando o utilizam [5]. A percepção da relevância do serviço público no contexto do mundo digital e da circulação de desinformação nas redes também aparece na literatura acadêmica. 

Professora da Vrije Universiteit Brussel na Bélgica, Karen Donders argumenta que os serviços públicos de comunicação serão mais necessários no século 21 do que as emissoras públicas de radiodifusão foram no passado. Num livro publicado em 2021, a autora argumenta que o principal objetivo do serviço público de comunicação é “contribuir para o bem-estar das pessoas, da sociedade e da democracia em geral” [6]. 

Outros pesquisadores têm indicado o mesmo caminho e contestado um argumento surgindo no início dos anos 2000 de que as novas tecnologias, pressões políticas e econômicas poderiam colocar fim ao serviço público de radiodifusão. Um dos autores que defendeu esse ponto de vista foi Michael Tracey, em um texto de 1998 [7]. 

O professor da University of Sussex, no Reino Unido, David Hendy cita nominalmente Tracey em um livro publicado uma década depois para dizer que o colega foi demasiadamente pessimista e que o fim do serviço público de comunicação representaria uma crise real e profunda na democracia liberal. Para Hendy, o serviço público importa mais intensamente agora do que nunca [8]. 

Diante do aumento da circulação de discursos de polarização pela mídia na Europa, o serviço público de comunicação pode ser o “antídoto” para a “poluição informativa” e a desinformação, argumentou a professora da University of Warsaw, na Polônia, Alicja Jaskiernia ao comentar o livro da pesquisadora Donders [9].  

Em um artigo publicado no fim de março, o diretor-geral da BBC Tim Davie afirma que o papel da instituição aumenta com os novos desafios que a sociedade enfrenta. Ele diz que é justo que a contribuição da BBC deve mudar à medida que o mundo se transforma. Davie acredita ser possível “fazer mais para responder diretamente às necessidades da sociedade atual e aos desafios compartilhados que enfrentamos”[10].

Notas

[1] BBC TV License Fee: How much is it and what does it pay for?. Disponível em: https://www.bbc.com/news/explainers-51376255. Acesso 30 abr. 2024. 

[2] No original: “Federal funding is essential to public radio’s service to the American public and its continuation is critical for both stations and program producers, including NPR.” NPR Public Radio: Finances. Disponível em: https://www.npr.org/about-npr/178660742/public-radio-finances. Acesso 30 abr. 2024. 

[3] No original: “Convinced therefore that the public service remit is all the more relevant in the information society and that it can be discharged by public service organisations via diverse platforms and an offer of various services, resulting in the emergence of public service media (…).”. Recommendation CM/Rec(2007)3 of the Committee of Ministers to member states on the remit of public service media in the information society. Council of Europe: https://search.coe.int/cm/Pages/result_details.aspx?ObjectID=09000016805d6bc5. Acesso 1 maio 2024.

[4] No original: “Independent public media are still often the first port of call for all age groups when looking for reliable news around stories such as the Ukraine conflict or COVID-19 (…)”. In almost every country covered, more people say public service media are important than unimportant [for them personally].” In: NEWMAN, Nic; FLETCHER, Richard; EDDY, Kirsten; ROBERTSON, Craig T.; NIELSEN, Rasmus Kleis. Digital News Report 2023. Disponível em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/digital-news-report/2023. Acesso 30 abr. 2024. p. 26. 

[5] Do orirignal: “Those with limited levels of formal education and those who are politically on the right (or disconnected) still tend to value public service if they use it, and across all groups, a belief in the importance of public service media news services often goes hand in hand with use of other sources of news in our analysis of newspaper brands (whether offline or online).” In: NEWMAN, Nic; FLETCHER, Richard; EDDY, Kirsten; ROBERTSON, Craig T.; NIELSEN, Rasmus Kleis. Digital News Report 2023. Disponível em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/digital-news-report/2023. Acesso 30 abr. 2024. p. 47. 

[6] No original: “The main objective of Public Service Media is thus to contribute to the well-being of people, society and democracy at large”. In: DONDERS, Karen. Public Service Media in Europe: Law, Theory and Practice. London: Routledge, 2021. p. 63. 

[7] TRACEY, Michael. Decline and Fall of Public Service Broadcasting. New York: Oxford Clarendon, 1998. 

[8] No original: “[P]ublic service broadcasting metters now more acutely than ever. (…) I would certainly agree that its disappearance would represent a real and deep-seated crisis within liberal democracy.” In: HENDY, David. Public service broadcasting. London: Palgrave Macmillan, 2013. p. 3.

[9] No original: “In the choir of increasingly polarized media in Europe, the PSM’s voice is not only still important, but can be an antidote to the “information smog” and desinformation.” JASKIERNIA, Alicja. Editor’s Review. In: DONDERS, Karen. Public Service Media in Europe: Law, Theory and Practice. London: Routledge, 2021. p. (i).  

[10] No original: “In the choir of increasingly polarized media in Europe, the PSM’s voice is not only still important, but can be an antidote to the “information smog” and desinformation.” JASKIERNIA, Alicja. Editor’s Review. In: DONDERS, Karen. Public Service Media in Europe: Law, Theory and Practice. London: Routledge, 2021. p. (i).  

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Gislene Nogueira Lima é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Mestre em Relações Internacionais. Bacharel em Jornalismo pela Fundação Cásper Líbero. Integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL).