Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O livro de Jobs

O jornalista e biógrafo Leander Kahney faz Jony Ive parecer um oráculo, ao usar as palavras deste como epígrafe do capítulo sobre o iPhone de seu recém-lançado livro sobre o mago da Apple: “Nesses primeiros estágios de design (…) sempre conversamos sobre a história do produto –falamos de percepção. Falamos daquilo que você sente sobre o produto, não num sentido físico, mas perceptivo”.

Ao longo de toda a biografia que escreveu sobre o responsável há duas décadas pelo design da Apple, “Jony Ive – O Gênio por trás dos Grandes Produtos da Apple” [trad. André Fontenelle, Portfolio-Penguin/Companhia das Letras, R$ 44,90, 328 págs.], Kahney toca várias vezes na noção formulada por Ive da “narrativa” de um produto, e essa formulação nos leva perto do metafísico, sugerindo, talvez, que iMacs, PowerBooks, iPods e iPads concebidos pelo designer britânico devam ser considerados não como meros fenômenos, mas como verdadeiros númenos.

O que mais ele quer dizer com “perceptivo”–diferente de “físico”– se não a ideia do iPhone em si mesmo, livre do toque capacitador de nossos dedos?

Você pode achar tudo isso muita piração a respeito de um celular –ou de um laptop, ou de um tablet–, mas quando se trata da Apple e de seus produtos, o céu é o limite: em 2012, a companhia atingiu US$ 660 bilhões (cerca de R$ 1,5 trilhão) de capitalização de mercado, superando o recorde estabelecido pela Microsoft em 1999 e transformando a empresa na mais valiosa companhia de capital aberto de todos os tempos.

É sobre essa percepção (e uso aqui o termo no sentido da linguagem comum, não no sentido de Ive) que a Apple acumula a montanha de sua riqueza, não apenas comercializando dispositivos eletrônicos inteligentes, mas alterando de alguma forma a consciência global: aí é que a identidade própria da companhia encontra sua mais plena expressão.

Outros gigantes da tecnologia podem ter suas gracinhas –a Microsoft é brilhante e esperta, o Google é carinhoso e simpático, o Facebook é impetuoso e juvenil–, mas só a Apple pode afirmar que elevou sua estratégia de mercado ao status de estética transcendental.

Mas antes de examinar essa afirmação em maiores detalhes –e vocês podem se surpreender com o fato de que eu concorde em grande parte com a avaliação que a Apple faz de si mesma– permitam que faça minha própria narrativa sobre a Apple.

Baixo custo 

Em 1989, eu comandava uma pequena editora de publicações comerciais de baixo custo, como revistas internas de empresas e folhetos de promoções. Quando fui contratado, a firma consistia de duas porcarias de PCs da marca Amstrad e dois clientes tão porcarias quanto.

O encarregado anterior realizava todo o trabalho sozinho: produzia o texto, tirava as fotos e fazia as marcações para as máquinas de composição e escaneamento. Depois cortava e colava um layout para reprodução.

Esses termos –”cortar” e “colar”– exigem hoje maior esclarecimento. Falo do ato físico de cortar com a tesoura e colar com cola. Ao assumir o trabalho, passei a aprender esses laboriosos processos na base da improvisação, embora já tivesse consciência de que o vento da mudança estava soprando com força na indústria gráfica.

Dezoito meses depois, eu havia contratado um designer que dominava a nova tecnologia e o escritório tinha uma equipe de quatro pessoas trabalhando com três Mac Classics e um Mac II, todos rodando os softwares PageMaker e QuarkXPress.

Eu ainda tinha de ir pessoalmente ao supermercado Safeway, em St. Andrews, para entrevistar o gerente sobre as gôndolas de congelados, fazer a foto dele cercado por sua equipe com cachecóis de neve, mas entregava o material para o designer num disquete e ele podia pegar as fotografias, passar para o computador, cortar e ampliar, organizar tudo na tela, depois imprimir os arquivos digitais.

Às vezes, eu mesmo fazia a diagramação e essa compressão de diversas profissões especializadas de antigamente em uma única caixinha plástica bege operada por um amador me parecia a própria miniaturização da mudança de era.

Os Macs da Apple estavam profundamente equipados: a interface de software WYS/WYG (What You See Is What You Get [o que está na tela é o aspecto final]) removia as diferenças entre o que se via na tela e o resultado impresso: o real e o virtual se fundiam.

Não importava mais que conceitualmente não entendêssemos de computação –o que constituía uma barreira quando era preciso se comunicar com a máquina–, pois estava claro que ela nos entendia, intuindo tranquilamente como conduzíamos as coisas em nosso estranho mundo de fenômenos quadridimensionais.

O antropomorfismo do Mac Classic ajudou também: sua tela é um olho monocular de Deus; a fenda frontal, uma boca pela qual ele regurgita nossas oferendas em disquete.

Escritor de ficção frustrado na época, eu acredito que foi o trabalho com os Macs na produção de publicações que me ajudou a perceber meu potencial criativo: ou, se você prefere uma formulação mais sofisticada, o Macintosh foi parte de minha enteléquia.

Você pode pensar que depois de ser tocado pelo computador Mac eu morderia a Apple para sempre, mas nem de longe. Na verdade, eu só comprei dois produtos da Apple nos últimos 24 anos: um iPod em 2007 e um iPhone em 2012.

Quando o Amstrad que herdei de minha mãe finalmente pifou em meados dos anos 90, o amigo de um amigo a quem pedi ajuda informática descartou o Apple dizendo que suas máquinas e softwares não eram imediatamente compatíveis com o Windows da Microsoft, que na época dominava o mundo, nem seu programa de processador de texto se equiparava ao Word.

É resultado dessa decisão que, quase duas décadas depois, estou digitando este artigo em um PC genericamente sem graça e não num transcendental MacBook Air.

Mito 

Só me dou ao trabalho de contar essa história porque ela parece voar na face de alumínio anodizado do mito Apple. Cito o jornal “Evening Standard” do recente 1º de novembro: “Dezenas de fãs da Apple chegaram a acampar nas ruas de Londres durante 24 horas para serem os primeiros na Grã- Bretanha a pôr as mãos no novo iPad Air. O primeiro da fila na loja de Covent Garden era Constantin Zabrotskiy, 29, que veio da Rússia na quarta-feira e ia voltar no início da madrugada, depois de pagar 399 libras pelo aparelho”.

Claro que existem muitos outros produtos além dos da Apple que provocam esse frenesi de consumismo, mas poucos recebem a reverência prestada igualmente por mídia e consumidores. A fotografia de Zabrotskiy com seu novo iPad produz uma sensação icônica: a peregrinação transcontinental terminou bem, com a relíquia saída do forno erguida para um beijo.

Só consultei uma pequena parte da crescente literatura sobre a Apple para escrever este artigo. O livro de Kahney; mais um folheto modesto chamado “What Would Apple Do?” (o que a Apple faria?), com o subtítulo otimista de “Como Aprender com a Apple e Ganhar Dinheiro” [Biteback, US$ 10, 208 págs.], e “Dogfight”, de Fred Vogelstein, com um subtítulo ainda mais animador: “Como Apple e Google Entraram em Guerra e Deram Início a uma Revolução” [Sarah Crichton Books, US$ 16, 272 págs.].

Em todos, reluz a mesma história bíblica: como a Apple nasceu numa manjedoura; como seu messias, Steve Jobs, fundou a religião da computação pessoal; como as manobras de gabinete dos fariseus o exilaram para o deserto da NeXT e da Pixar; como ele voltou com as tábuas da lei ofuscantes de tão simples (“Deverá haver apenas quatro produtos Apple básicos: dois laptops e dois desktops”); e como, apesar da praga devastadora do Windows 95, ele e seu João Batista –Jony Ive– lançaram uma cruzada para converter todo o planeta gentio à sua fé de que na simplicidade reside a máxima sofisticação.

Acredito que a metáfora sacerdotal não seja exagerada. Com seu colorido “acid-pastel” de contracultura e o budismo declarado, Jobs levou à criação de aparelhos uma inversão peculiarmente autoilusória das práticas empresariais convencionais. Em vez de produzir as coisas que os consumidores queriam, os designers e engenheiros de produtos da Apple iriam articular seus próprios desejos íntimos.

Em vez de meramente perseguir os dólares, o objetivo da Apple seria, nas palavras de Ive, “absolutamente não fazer dinheiro”; as vendas viriam quando as sensações perceptuais da multidão fossem estimuladas por esses belos objetos desejados por seus próprios criadores.

A comprovação disso revela, a meu ver, o feliz alinhamento entre avanço tecnológico e uma fase messiânica do capitalismo recente, mais do que qualquer presciência sobrenatural da parte de Jobs e Ive. Não há dúvida de que Ive é um designer fantástico e Jobs foi um vendedor e empreendedor inspirado, mas é totalmente possível imaginar uma linha do tempo “steampunk” em que a Apple não fosse o demiurgo do digital.

Afinal, mesmo sendo de conhecimento geral que a interface WYS/WYG surgiu na Apple e foi impiedosamente copiada pela Microsoft, não há dúvida de que alguém teria chegado à mesma coisa mais cedo e não mais tarde –assim como alguém (ou possivelmente a Samsung) teria chegado ao celular-com-computador sensível ao toque.

Existem alguns donos da verdade que dizem que a nêmese da Apple está em sua recusa de adotar tecnologia de código aberto (open source). É verdade que a Apple tem uma postura curiosamente totalitária para uma companhia fundada por um ex-hippie: os designers do iPhone tiveram de assinar acordos de confidencialidade e declarações juramentas comprovando o que haviam assinado; precisavam de nada menos que quatro senhas eletrônicas para entrar ou sair de seu minimalista ateliê.

Outros dizem que todo o problema da Apple está em seu sucesso na década em que o iPhone grudou na orelha de milhões de pessoas –que uma vez tendo se transformado na nova normalidade, mais que acessório favorito de vítimas do estilo, a marca perdeu sua alma proverbial.

No livro de Kahney ficamos sabendo de um fato que, se não fosse verdade, seria preciso inventar: um grande problema com o primeiro protótipo do iPhone foi que os fios de barba dos designers ficavam presos entre o vidro e a borda.

Mas mesmo barbudos, Ive e seu time continuam sendo operadores muito firmes quando se trata de prever a demanda do consumidor.

O grande sucesso da Apple está na epifania que foi para mim o Classic tantos anos atrás: as tecnologias deslocaram o ponto da produção criativa dos especialistas para os amadores. A mídia digital bidirecional transforma qualquer um em seu próprio fotógrafo, locutor, câmera, cantor, casamenteiro e agente funerário.

Do berço ao túmulo, a única interface de que alguém precisa agora com o mundo global é formada pelo vidro reforçado de um iIsto ou iAquilo; sem dúvida, era isso que Jony Ive estava buscando quando falou da “sensação” de seus produtos num “sentido perceptual”: o mundo virtual está se transformando em nosso mundo fenomenológico, na medida em que Ive deu corpo a objetos físicos que tornam possível essa transubstanciação de formas adequadamente seráficas.

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Will Self, 52, é escritor e jornalista britânico. Foi finalista do Booker Prize de 2012.