Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Aroma de café em tudo

Pão, leite e café estão entranhados nos usos e costumes brasileiros e é quase impossível imaginar o Brasil sem eles. Começamos o dia com café, em geral acompanhado de leite e pão. É tradicional o trio ‘média, pão e manteiga’.

O café está presente também no imaginário popular, de que são exemplos estes versos:

‘Quem tivé fia bonita/ Não mande apanhá café/ Si fô minina, vem moça/ Si fô moça, vem muié’.

Ou estes:

‘Eu quisera sê penera/ Na coieta do café/ Pra andá dipindurado/ Nas cadera das muié’.

E ainda estes, da dupla Cascatinha e Inhana:

‘Era florada, lindo véu de branca renda/ Se estendeu sobre a fazenda, igual a um manto nupcial/ E de mãos dadas fomos juntos pela estrada/ Toda branca e perfumada, fina flor do cafezal’.

Ana Luiza Martins, doutora em História pela USP, fez em História do Café (Editora Contexto, 316 páginas) o que poucos PhDs conseguem: conciliar o rigor da pesquisa com uma linguagem que pode ser entendida por todos.

Da Turquia para a Europa

Vejamos o que a autora nos ensina. Até hoje, a origem do café é explicada por uma lenda, entretanto com várias versões, como acontece com todas as narrativas que vão passando de geração em geração, oralmente, até se fixarem na escrita.

A do café foi fixada em manuscritos do Iêmen. Corria o ano de 575. Kaldi, um pastor de cabras da Etiópia, no nordeste da África, notou que os animais ficavam mais lépidos e mais resistentes depois de comerem folhas e bagas de um certo arbusto. Ele resolveu mascar aquele alimento dos animais que pastoreava e confirmou suas propriedades estimulantes.

Da Etiópia, o café atravessou o Mar Vermelho e chegou à Península Arábica, de onde foi espalhado pelo mundo inteiro. No começo, bagas e folhas eram apenas mastigadas ou utilizadas em sucos e chás. É por volta do ano 1000 que sua infusão, inicialmente com fins medicinais, conquista a Europa, ganhando força de difusão a partir dos mosteiros, onde monges e dervixes se servem de café para ficar acordados nas longas vigílias.

Foram mercadores de Veneza que trouxeram o café da Turquia para a Europa, na segunda metade do século 16.

‘Uma comoção geral’

Coube à Turquia inaugurar o primeiro café do mundo, estabelecimento que depois ganharia a França, a Itália, a Áustria, a Holanda e a Inglaterra.

No começo do século 18, havia cerca de 3.000 cafés em Londres.

Na Alemanha, a moda do café pegou de tal modo que Johann Sebastian Bach compôs, se bem que muito tarde, em 1732, a Cantata do Café. O italiano já não estava presente apenas nos movimentos musicais, mas também no preparo inovador do café, torrado, moído e servido de um modo que o tornava ainda mais saboroso, na Botteghe del Caffè, em Veneza.

Na França, o café encontrará a pena de Balzac:

‘O café cai-nos no estômago e há imediatamente uma comoção geral. As idéias começam a mover-se como os batalhões do Grande Exército no terreno onde a batalha ocorre. As coisas que recordamos surgem a todo galope, de estandarte ao vento’.

Escrita com clareza

O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire fez, entretanto, severo juízo dos fazendeiros de café. Registra a seguinte observação, que ouviu de um crítico anônimo, talvez ele mesmo:

‘Comem arroz e feijão. Vestuário também lhes custa pouco, nada gastam também com a educação dos filhos que se entorpecem na ignorância, são inteiramente alheios aos prazeres da convivência, mas é o café que lhes traz dinheiro. Não se pode colher café senão com negros; é pois comprando negros que gastam todas as rendas’.

Diz a autora:

‘Pretende-se dar ao café o mesmo tratamento que fabricantes de vinho dispensam ao seu produto. Os vinhos se distinguem uns dos outros e são mais valorizados de acordo com a variedade da uva, a região produtora e especificidades do processamento’.

É raro um scholar escrever com tanta clareza. Vale a pena a leitura deste livro.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação; seu livro mais recente é o romance Goethe e Barrabás (Editora Novo Século); www.deonisio.com.br