Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

As bombas do jornalista calejado

O jornalista Augusto Nunes não precisa de ninguém que o apresente.

Autor e editor dependem do público leitor, o supremo tribunal de suas obras. É ele quem julga os três, como o eleitor julga o candidato. É a ele que devemos satisfações, é para ele que escrevemos.

Augusto Nunes segue neste livro o exemplo de Suetônio que, ao biografar Júlio César e os 11 imperadores, revela uma Roma onipotente e corrupta. Seu livro-referência, De Vita Caesarum (A vida dos Césares, no Brasil sempre publicado com o título mudado para A vida dos doze Césares), mostra o ambiente de decadência moral e política dos líderes que mandavam e desmandavam na sociedade romana.

Tibério manda para o exílio um pobre escriba chamado Zênon. Seu crime: dominava com extrema perfeição a língua em que se expressava, considerada ‘dialeto enfadonho’ pelo soberano que tudo podia. Áulicos informaram ao grande César que o gramático Seleuco perguntava aos domésticos o que o imperador estava lendo, com o fim de preparar-se para as questões que ele fazia à mesa. O soberano apreciava confundir os intelectuais. Quem podia preparar-se era ele, não os convidados. Submetido a reiteradas exclusões, vítima das engrenagens assustadoramente poderosas do maior império da Terra, o pobre Seleuco achou melhor suicidar-se.

Quando Tibério deixou o poder, Suetônio informa o que aconteceu: ‘A notícia de sua morte foi causa de grande alegria no seio do povo’.

Disciplina, disciplina

Nas democracias contemporâneas, não é preciso aguardar a morte de quem está no poder para livrar-se de malfeitores. Os eleitos sabem que os eleitores, se decepcionados, cassam-lhes os mandatos, se sobreviverem aos processos parlamentares, como CPIs e similares.

Mas para isso o eleitor precisa informar-se. Esta função da imprensa é temida. Leitores são eleitores! E ampliam consideravelmente o que lêem nas conversas à beira de pratos, copos, rostos, compondo o que se define por ‘voz rouca das ruas’. Por isso, políticos corruptos e mal intencionados receiam tanto a imprensa e querem controlá-la, submetê-la, assustar aqueles que escrevem e também aqueles que os editam. Claro que, de quebra, amedrontam também a quem os lê.

Os textos de Augusto Nunes fazem uma história clandestina das coisas da política por um motivo duplamente óbvio: os poderosos esperam que os intelectuais sejam sempre linhas auxiliares e aceitem as gorjetas de praxe na forma de louvores untuosos, que já fizeram tanta gente boa escorregar. À falta desse recurso, às vezes não vacilam em utilizar os trinta dinheiros eternamente alocados para comprar traidores. Sim, depois eles se enforcam, mas o mal que causaram já foi feito, e a missão, cumprida. E o público leitor ainda é uma avis rara no Brasil. A população voa em outros bandos, que dependem muito do canto de outros pássaros, em minoria nos céus. A rigor, no Brasil todo texto é clandestino, muito embora o de jornais e revistas seja menos do que o de livros.

Sobre o caso Celso Daniel, o jornalista transcreve a declaração insuspeita de Hélio Bicudo, dada à revista Veja em setembro de 2005: ‘A direção [do PT] queria caracterizar o assassinato como crime comum, do que eu discordo. O que houve foi a eliminação do Celso, ou porque ele não concordava com a corrupção ou porque quis interromper o processo num determinado ponto’. (p.115). É preciso dizer mais?

Além do Ministério Público, os leitores de jornais e revistas há anos tentam entender a versão oficial do acontecido com o prefeito de Santo André, na grande São Paulo. Continuam desconfiados das versões até agora apresentadas, mais para entender o que houve do que para punir os responsáveis, pois esta não é tarefa dos leitores. O público leitor não é movido pelo desejo de punir. É movido pelo desejo de entender. Ronald Biggs viveu muito tempo no Brasil, mas todos os leitores sabiam que ele era um ladrão, não estava travestido de parlamentar ou chefe de governo.

Esta é a grande confusão dos dias que correm e Augusto Nunes soube lancetar o tumor com o talento que Deus lhe deu, acrescido da disciplina indispensável. Ronald Biggs era ladrão assumido, não nos representava, não estava no governo. Mas o que fazemos com aqueles que, em nome de valores que mais alto devem ser alevantados, chegaram ao poder pelo voto de milhões de eleitores e roubam a sociedade brasileira, escondendo dólares até nas cuecas?

Olhares oblíquos

Os leitores têm o que comemorar. É indispensável ler esses artigos antológicos ou a reler com menos pressa, agora que seus temas solares vão recebendo todo dia – na internet, toda hora – iluminações que transfiguram seus contornos.

Foram escolhidos da perspectiva de um leitor: que textos, lidos no jornal, mereceriam ser eternamente guardados no santuário de um livro? Augusto Nunes, ao publicar esta seleção de artigos, inspirou-se na resposta que o escritor italiano Giovanni Papini quando organizou antologia de autores representativos da Itália e foi cobrado por dezenas de escritores que ficaram de fora: ‘Minha antologia não é dormitório público’. Aqui estão apenas os textos nota dez.

Ele sabe que é seu ofício editar e escrever textos efêmeros. À tarde, o jornal do dia é folha caída, despetalada, sem o viço que lhe dava aparência de eternidade pela manhã. Escreveu, porém, artigos que diligentes leitores recortavam e guardavam, endossando-os em numerosas mensagens e cartas enviadas à redação do Jornal do Brasil, onde a maioria deles foi originalmente publicada. Pois agora eles estão aqui, reunidos, ao alcance da mão, pelo preço dos jornais dos sete dias da semana.

Seu tema preferencial é a vida de certos políticos que prometeram uma coisa e estão fazendo outra.

Ele nos ajuda a desvendar a trapaça de que a sociedade brasileira, incluindo instâncias tão acatadas como o Jornalismo, a Publicidade e a Propaganda, foi vítima e cúmplice ao organizar o engano.

Já havia sinais indeléveis em várias biografias, entretanto desprezados como insignificâncias, de que é exemplo o texto intitulado A Vez de Pedro Caroço (págs. 45-46), comentando o disfarce de que se servira o futuro ministro-chefe do Gabinete Civil do presidente Lula para esconder-se, nos anos 1970, no interior do Paraná, onde desposou a moça mais bonita da cidade de Cruzeiro do Sul, com ela teve um filho e dos dois escondeu sua verdadeira identidade: ‘Assim se chamava o personagem popularizado pela letra de ‘Severina Xique-Xique’, sucesso musical da época, que estava sempre ‘de olho na butique dela’’.

O leitor já perdera por pontos há algum tempo, mas o nocaute demorou bem mais. Augusto cita algumas linhas do livro Fama & Anonimato (Editora Companhia das Letras), do jornalista americano Gay Talese, para iluminar este outro nocaute de se saber que a pessoa, que dizia ser uma, era outra. Vem exemplificado na comovente e insólita confidência do pugilista Floyd Patterson, derrotado por Sonny Liston:

‘Quando você é nocauteado, a sensação não é ruim, é até boa. Você não sente dor. Só se sente fortemente inebriado, como se flutuasse. Não vê anjos nem estrelas, apenas é envolvido por uma névoa agradável. Depois daquele soco de Liston, imaginei que toda a platéia havia subido ao ringue e me rodeava carinhosamente, como uma grande família’. (pág. 39).

Depois é que tudo pode desabar. Nós estamos numa fase misteriosa, repleta de sutis complexidades. Ainda não sabemos o que haverá depois, não do primeiro nocaute produzido pelo cruzado de Roberto Jefferson em quem tinha queixo de vidro, o até então todo-poderoso ministro José Dirceu, mas depois dos sucessivos nocautes que vão derrubando um a um os impostores que vieram para o maior baile de máscaras que esta República já organizou. O desmanche do governo atual não começou com a cassação do deputado José Dirceu, mas teve ali o seu ponto mais alto.

Muitos já saltaram do governo do presidente Lula, entre os quais Frei Betto, assessor especial, que promete um livro esclarecedor para 2006. Alguns nem precisaram saltar, pois tomaram o cuidado de não embarcar, desconfiados da súbita e surpreendente afluência de passageiros a quem, no mínimo, passaram a dedicar olhares oblíquos, bemóis nas falas, sustenidos na hora de ouvi-los. E, principalmente, olho armado na hora de ler o que diziam, logo desmentido pelo que faziam.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social