Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Em busca do 1964 perdido

As editoras começam a abastecer as livrarias com obras que retomam e revisam os anos pós-1964. O ano nem bem começou e é certo que novos livros, alguns já anunciados, outros ainda em gestação no prelo e até na cabeça dos autores ainda, estão por vir.

A imprensa saiu na frente, entretanto, e pode dar uma visão prévia do que está por vir. Se como proclamam conhecidos versos cantados por Elis Regina, ‘nossos ídolos ainda são os mesmos’, nossas obsessões também, se não são as mesmas, são muito parecidas com aquelas que sempre assombraram nossos porões e despertaram nossa sede de saber o que se passou.

Decorridos 40 anos do golpe de 1964, que liquidou nossa jovem democracia no esplendor de sua adolescência pós-Estado Novo (1937-1945), pós-Guerra e pós-Constituinte de 1946, a hora é de repor para exame velhos e novos temas, agora mais claros por força das luzes que irromperam com a redemocratização.

Quando empresários e militares unidos coordenaram a derrubada do governo constitucional de João Goulart, vínhamos de uma única gestão normal. E ainda assim non troppo. A de JK, que enfrentara galhardamente algumas tentativas de insurreições de setores, felizmente minoritários, na caserna. Com efeito, Eurico Gaspar Dutra pautara-se pela célebre pergunta (‘Está no livrinho?’) para guiar-se pela Constituição. Mas Getúlio Vargas suicidou-se, Jânio Quadros renunciou, João Goulart foi derrubado pelas armas, Fernando Collor sofreu impeachment constitucional, Itamar Franco levou uma rasteira do ministro a quem fizera presidente e Fernando Henrique Cardoso completou enfim os oitos anos de mandato que queria.

Poder absoluto

O retrospecto é preocupante. Na segunda metade do século republicano, tivemos apenas quatro mandatos presidenciais normais, considerando-se o segundo de FHC, que se estendeu até 2003. E assim mesmo não sem sustos. Inclusive no atual.

As antenas da América Latina já estão captando que o perigo de uma retomada do autoritarismo, se é tênue, não é, contudo, desprezível. Precisamos conjurá-lo. Se esperarmos o que acontece para ver como é que fica, pode acontecer que fique bem diferente do que imaginamos. Aliás, tanto em 1964, quando no recrudescimento do golpe, em 1968, houve gente culta e bem pensante que previu que o golpe seria fugaz e efêmero. Durou 20 anos! E ainda tivemos que suportar a transição de 1985 a 1990, um impeachment e grossas denúncias que enxovalharam a conquista do segundo mandato de FHC.

Os livros que repõem os anos de exceção começam com alguns equívocos conceituais e semânticos, quando não apenas singelos erros de denominação. No Brasil, as práticas democráticas é que são a exceção. Diversos autoritarismos, alguns abraçados paradoxalmente pelo próprio Congresso, reinaram a maioria dos anos do século que deveria ser democrata, passados os 11 anos dos novecentos, suficientes para consolidar a República proclamada quase que simultaneamente com a derrocada da escravidão.

E o que vemos hoje? Ainda discutimos tantas discriminações que até as cotas para negros nas universidades e entre os servidores públicos são temas preferenciais. Sem contar que a saúde pública, a violência, o desemprego e outros velhos males persistem sem que a República trouxesse remédios para eles. Ao contrário, em muitos casos agravou muitos deles. O pobre absoluto no meio urbano é historicamente recente. E se não é nefasta conquista republicana, a República pouco fez para redimi-lo.

Silêncios estranhos

É verdade que os registros da imprensa e as listas dos mais vendidos ensejam olhares embaçados, mas ainda assim alguma coisa é possível discernir de relevante na dieta de leitura dos cidadãos.

A prosa de ficção parece derrotada pelas narrativas documentais. Quais os grandes romances e contos (é também o caso da poesia) que revisitaram os anos pós-1964 e que estão submetidos ao apreço do público na efeméride que contempla os 40 anos do golpe?

Sim, eles existem, e em boa quantidade e qualidade, mas os editores têm-se mostrado incapazes de trazê-los ao proscênio. Continuam conhecidos de poucos. Com exceção daqueles livros que foram transpostos para o cinema e a televisão – de que são exemplos, entre outras, as obras de Erico Verissimo e Josué Guimarães, no Sul; de Jorge Amado e de Dias Gomes, no Nordeste –, grandes livros continuam esquecidos. É certo que, como aconteceu a Graciliano Ramos, Geraldo Ferraz e Mário de Andrade, talvez os autores pós-1964 precisam aguardar um pouco mais. Os prazos literários são mais demorados.

Nas narrativas documentais, entretanto, o interesse do público pode ser medido pelo sucesso de livros como a série As Ilusões Armadas, de Elio Gaspari, principalmente do volume A Ditadura Derrotada, Estação Carandiru, de Drauzio Varella (afinal, a ditadura fez da prisão uma estranha sementeira de crimes e desmandos correlatos) e Yolanda, de Antonio Bivar. Mas os autores documentais estão devendo muito. Quando teremos uma Estação Bangu? E no terreno das biografias, quanto devemos esperar para termos os perfis de conhecidas figuras execráveis nos anos pós-1964, ainda protegidas por estranhos silêncios bibliográficos?

Obras apagadas

A gravidade das matérias com chamadas de capa nas revistas IstoÉ e CartaCapital desta semana podem dar-nos algumas pistas do que ainda anda encoberto. Na primeira, a reportagem anunciada na capa é: ‘O coronel José Brant Teixeira comandou a tortura e a morte de adversários da ditadura militar’. Na segunda, o exclusivo é: ‘Os EUA grampearam o Alvorada. E mais: os Estados Unidos compraram a Polícia Federal’. Como se vê, um festival de antigos espantos ameaça reestréias desconcertantes.

Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar, Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura comparecem na coleção ‘Vozes do Golpe’ (Companhia das Letras). Marco Antonio Villa, uma de nossas mais gratas revelações de talento interpretativo, lança Jango, um perfil (1945-1964),pela Editora Globo. A Contexto apresenta Castello – a marcha para a ditadura, de Lira Neto.

Outros livros, já lançados anteriormente, estão sendo relançados. E talvez não seja demais lembrar que os 40 anos podem receber luzes também de onde menos se espera. Assim, a leitura de A guerra contra os fracos (A Girafa), do jornalista Edwin Black, pode ser útil na compreensão do funcionamento de fábricas que produziram o horror de outros modos, em outros países e contextos diferentes. No caso, quem diria, práticas nazistas que deixariam Hitler muito animado ocorreram nos EUA com a política de uma insólita eugenia contra as ‘raças inferiores’.

Há muito a ler neste ano de 2004 sobre os temas que a efeméride suscita. Que nossa imprensa não seja cúmplice dos habituais acobertamentos e silenciamentos vindos da falta de profissionalismo do mercado editorial brasileiro, ainda vítima de sérios tropeços no trabalho de levar os livros ao conhecimento dos leitores, apesar de ser há alguns anos o segundo mercado editorial das Américas, tendo ultrapassado o Canadá e o México.

Esses 40 anos precisam ser reexaminados. Os livros prestam inestimável ajuda a esta tarefa. Mas os editores precisam romper de uma vez por todas com este círculo vicioso que esconde bons livros de um público leitor ávido por conhecimento e entretenimento. Do contrário, a mídia reinará sempre absoluta, roubando todo o espaço e o tempo dos livros, apagando obras fundamentais, de leitura indispensável, mas infelizmente ainda confinadas a um universo restrito de leitores por força da ditadura das formas escolhidas ou propiciadas pela mídia sem nenhum outro critério que não seja o mercadológico e o das conhecidas confrarias já cristalizadas em nossa vida editorial.