Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Estrela Serrano

‘Será que as notícias sobre a actividade política que vão além de discursos e iniciativas publicitadas pelos próprios actores políticos têm, necessariamente, de basear-se em fontes não identificadas? E porque hão-de os leitores acreditar na informação que lhes é fornecida nessa base, se só raramente lhes são apresentadas razões para a não identificação das fontes? Bastará o nome do jornal, ou do jornalista, para garantir ao leitor que a fonte da notícia ou os dados em que ela se baseia são credíveis?

Estas são questões pertinentes, sobretudo quando, como é o caso do jornalismo político, o uso de fontes não identificadas se tornou regra.

O problema abrange, principalmente, a imprensa dita ‘de referência’. As explicações para tal prática residem, do lado dos jornalistas, no facto de eles considerarem que sem o off (informação facultada sob sigilo da fonte) as notícias se tornariam demasiado ‘oficiais’. Do lado das fontes, o uso do anonimato permite-lhes certo tipo de confidências que de outro modo não fariam.

Vejamos essa prática, num caso concreto. Na edição do DN do passado dia 17, a notícia de abertura do noticiário nacional dizia, em título, Durão quer tirar Theias e Figueiredo. Com base em fontes nunca identificadas, o texto afirma que Durão Barroso vai remodelar o Governo logo após as eleições para o Parlamento Europeu e o Euro 2004. Segundo ‘fontes oficiais’ citadas no texto, o ministro Figueiredo Lopes ‘é considerado ‘esgotado’ e ‘sem energia’ e o primeiro-ministro ‘terá já reconhecido’ que o ministro Theias é ‘um erro de casting’’. Ambos estão, pois, ‘com bilhete de saída’.

Sobre eleições europeias, afirma-se que ‘no núcleo duro de Barroso já se admite uma vitória tangencial do PS’ e, quanto às presidenciais, ‘suscitam menos dores de cabeça’ ao PM, dado estar ‘convicto de que Cavaco Silva acabará mesmo por avançar para Belém’. Questionados pela provedora, os autores da notícia – Paula Sá e Pedro Correia – argumentam que ‘os jornalistas que acompanham a actividade política (…) recorrem com frequência a fontes não explicitamente identificadas nos seus textos e que essa é uma prática frequente não só em Portugal mas em qualquer país onde a comunicação social não se circunscreve aos circuitos oficiosos’. Acrescentam que ‘um jornalista que escreve regularmente sobre um determinado tema está habilitado, em certos momentos, a tornar públicas informações não directamente imputáveis a fontes concretas, bastando-lhe dar aos leitores a caução da sua própria assinatura’.

Vejamos melhor. O uso frequente de fontes não identificadas na cobertura da actividade política e governativa não é um exclusivo dos jornalistas portugueses, o que não torna, por isso, essa prática mais aceitável.

Mas o que é notório nos últimos tempos no jornalismo português (o DN não é caso único) é a criação de notícias baseadas em opiniões e palpites de fontes anónimas. Já não se citam, em discurso directo, apenas pessoas não identificadas; citam-se, também, cada vez mais, ‘núcleos duros’, ‘gabinetes’, etc., que opinam para os jornais sobre, por exemplo, intenções do chefe do Governo, como foi o caso desta notícia. Atingiu-se, assim, um novo ‘patamar’ do off.

Afirmam os dois jornalistas que ‘o texto em causa não foi desmentido’ e que, ‘pelo contrário, confrontados na manhã seguinte por dois canais de TV com a notícia do DN’, outros dois ministros ‘contornaram a questão sem esboçarem qualquer desmentido’.
Recordam, também, afirmações da provedora, entre as quais, que ‘os jornalistas precisam de notícias enquanto os políticos precisam dos jornalistas para passarem as suas mensagens’. De facto, essa afirmação aplica-se, perfeitamente, a este caso. A notícia da ‘remodelação governamental’ interessa aos jornalistas, porque é um tema que desperta curiosidade nos leitores. Por outro lado, os jornalistas sabem que só sob anonimato da fonte obtêm esse tipo de informações, correndo, por outro lado, menor risco de serem desmentidos, porque ninguém em concreto é citado. Interessa, por outro lado, aos políticos, dado que através do anonimato põem a circular ideias e cenários que, de outro modo, teriam dificuldade em sustentar mas que são necessários ao cumprimento de determinados objectivos.

Não é, contudo, função dos jornalistas ‘dar a caução da sua assinatura’ a opiniões que lhes são segredadas sob anonimato, para mais publicando-as como factos, o que foi feito, neste caso, no título publicado na 1.ª pág.: Amílcar Theias e Figueiredo Lopes saem depois do Euro 2004.

Acresce que o reconhecimento de que o uso de fontes anónimas constitui uma prática frequente no jornalismo político não legitima essa prática, constituindo, antes, uma razão acrescida para que os jornalistas se interroguem sobre as suas consequências, nomeadamente a capacidade de se autonomizarem face a estratégias alheias à função de informar. O uso de fontes anónimas, sendo uma prerrogativa do jornalista, deveria revestir-se de um carácter excepcional.

Bloco-Notas

A QUALIDADE DAS FONTES – A qualidade do jornalismo não assenta, apenas, no trabalho dos jornalistas. Assenta, também, na possibilidade de acesso a fontes qualificadas. Se os jornalistas verificam que lhes é vedado o acesso a fontes que detêm informação sobre matérias de interesse público, tenderão a procurar outras fontes, eventualmente menos informadas, mas interessadas em divulgar a sua própria versão, geralmente sob anonimato. A generalização do off the record constitui um dos principais entraves ao direito do público a uma informação transparente, favorecendo o jornalismo ‘de recados’. Paul McMasters, ombudsman do First Amendment Center, escreve, no site do citado Centro, que o acesso à informação governamental é um direito fundamental partilhado pela imprensa e pelo público e que o atraso ou a recusa de acesso a essa informação é uma forma de censura, ainda mais insidiosa, porque é uma censura na fonte.

CORRESPONDENTES ESTRANGEIROS – Em Portugal, a dificuldade de acesso, em tempo útil, à chamada ‘informação pública’ afecta não apenas os jornalistas portugueses mas, também, os correspondentes estrangeiros. Numa entrevista ao número de Dezembro de 2003 da revista Meios (AIND), o presidente da Associação de Imprensa Estrangeira (AIEP) afirma que ‘não se compreendem os entraves no acesso às fontes sentidos pelos jornalistas estrangeiros a trabalharem actualmente em Portugal’. O jornalista dá exemplos dessas dificuldades, afirmando que, ‘em Portugal, os jornalistas têm uma primeira barreira que é constituída pelos assessores de imprensa’, quando, em sua opinião, ‘devia ser precisamente o contrário’. Segundo o presidente da AIEP, ‘os assessores, em vez de canalizarem informação e facilitarem os contactos, particularmente difíceis para quem não está no seu país, antes os dificultam’. Em sua opinião, ‘estes atritos (…) não facilitam’ a boa imagem de Portugal na imprensa estrangeira.

FICÇÃO E FACTOS – A competição pelas audiências nos jornais, rádios e televisões é, geralmente, considerada como um dos motivos do desleixo de muitos jornalistas relativamente ao cumprimento das regras mais elementares do jornalismo. Entre elas, conta-se o uso e abuso de fontes anónimas. O director do jornal norte-americano USA Today adiantava, há dias, no site do jornal, uma explicação simples para o que considera ser ‘um dos maiores vícios do jornalismo’: muitas fontes anónimas sabem menos do que pretendem fazer crer aos jornalistas e muitos jornalistas que usam essas fontes escrevem mais do que ouvem, enquanto os editores ‘deixam as coisas andar’. Resultado: ficção mistura-se com factos. Para o citado jornalista, a única maneira de ‘ganhar a batalha’ contra esse vício do jornalismo é banir, a todos os níveis, as fontes anónimas.’