Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Jornalismo e o sopro da utopia

Democracia de massas: cidadania e informação é um livro com um propósito básico: contribuir para a fundamentação de uma teoria do Jornalismo. E este objetivo é atingido, o que dá a este trabalho o status de uma obra, de agora em diante necessária a todos aqueles que se dedicam aos estudos do Jornalismo enquanto campo acadêmico e científico. Compreender o Jornalismo como recorte epistemológico e como objeto de ciência é tarefa para poucos. Para alguns, como o prócer alemão, Otto Groth, representou uma vida. Para outros, como foi o caso do brasileiro Adelmo Genro Filho, a obra-prima. Para Victor Gentilli, um mestrado e um doutorado defendidos na USP, com todas as honras e méritos, dedicados às questões básicas do Jornalismo. O título que aqui se apresenta corresponde à atualização de sua dissertação de mestrado (em Ciências), com base em pesquisa orientada pela professora Dra. Alice Mitika Koshiama.

O Jornalismo não é uma ciência

Uma infinidade de livros de Jornalismo, sobre Jornalismo e em prol do Jornalismo têm sido publicados, ora puros e simples roteiros de procedimentos técnicos; ora o segmento das lamentações em torno dos erros e abusos da imprensa; ora a institucionalização do tema por parte de organizações especializadas: associações, federações, sindicatos e outras entidades corporativas, ou, em alguns casos, dossiês que desnudam os bastidores das relações entre a imprensa e a política. Investigar a natureza do Jornalismo como teoria social, como campo de conhecimento (o Jornalismo enquanto modelo cognitivo) e o Jornalismo como campo institucional inerente da modernidade e da democracia (esta é a inserção de Victor Gentilli) é um percurso que exige certa coragem, densidade e profundidade, a começar pela releitura dos clássicos que servem de fundamentação à matéria (e que não foram jornalistas nem escreveram diretamente sobre Jornalismo, como é o caso de Hannah Arendt, Norberto Bobbio e Jürgen Habermas) e ir ainda mais além: aventurar-se por categorias conceituais capazes de construir e constituir o Jornalismo enquanto objeto teórico específico.

Nem mesmo um século de abordagens teóricas foi capaz de estabelecer a Comunicação, como um todo, e o Jornalismo, em particular, como ciências dotadas de categorias próprias. Em geral, tais abordagens vêm de fora para dentro, quase sempre a partir de matrizes sociológicas antitéticas, de um lado, as teorias empiricistas e funcionalistas; de outro, as teorias críticas e, em alguns casos, as vertentes que se utilizam da análise do discurso, mas, quase sempre, com um viés da análise do discurso literário. O Jornalismo tem sido um campo muito fértil enquanto objeto empírico das Ciências Sociais Aplicadas. Uma coisa, no entanto, é servir-se das bases clássicas da Sociologia e da Ciência Política para compreender o Jornalismo enquanto um campo dotado de características próprias; outra, é servir-se do Jornalismo como fenômeno meramente ilustrador das categorias sociológicas e políticas. Gentilli está no primeiro caso. Ele recorre a autores que pensaram a sociedade, a política e a democracia; procura estabelecer a dimensão que compete ao Jornalismo como campo de mediação dos espaços social, político e democrático e vai mais além, sonda o que há de específico do Jornalismo, algo que somente o Jornalismo é capaz de oferecer como modelo de percepção da realidade social, política e democrática. É como se a informação, ingrediente constitutivo da sociedade, da política e da democracia, encontrasse no Jornalismo o enquadramento metodológico capaz de redimensionar o papel da informação. Talvez seja, então, possível afirmar que somente o Jornalismo é capaz de ler a realidade a partir dos fatos que emergem da superfície do cotidiano, de modo a retirá-los do simples patamar do senso comum, para recolocá-los no plano da análise e, conseqüentemente, transformá-los em matéria prima da história e da ciência. O Jornalismo não é uma ciência enquanto aparato, estrutura, objetos, métodos, experimentação e validação de resultados. Mas pode-se dizer que o Jornalismo é, sim, este campo de mediação que é capaz de oferecer aos historiadores e aos cientistas uma produção, cuja singularidade visivelmente descolou-se do banal, para constituir-se em significância, no mínimo, signos indiciais, vetores apontando para algo que o simples senso comum não é capaz de perceber, ou se percebe, necessita de um segundo plano de significação, aquele do enquadramento da realidade enquanto notícia.

O método genuíno e genial do Jornalismo

Neste trabalho, Victor Gentilli empreende com segurança a análise de como o Jornalismo foi capaz de realizar duas grandes ultrapassagens históricas, a primeira, deixando para trás os rudimentos de uma opinião pública burguesa, que marcou os primórdios da existência de uma esfera pública; e, a segunda, quando o Jornalismo supera a mercadoria, típica da sociedade de massa e da indústria cultural, para criar uma relação intrínseca com o desenvolvimento da cidadania. Ora, é precisamente esta força do Jornalismo que faz dele uma categoria social, tão importante e tão elevada quanto a arte, a literatura, o cinema. Este último, a despeito de todas as mercantilizações – e olhe que Hollywood é insuperável nesse aspecto –, e de todas as fetichizações de que a cultura de massa é capaz, não deixou de ser arte, exatamente por ter uma natureza que resiste reduzir-se completamente ao dinheiro e ao poder, ao mercado e à política. Nem Hollywood nem Gobbles foram capazes de estreitar uma Sétima Arte aos seus desígnios e impérios. Houve, e sempre haverá, arte e artistas capazes de dignificar, por exemplo, o cinema, sendo-lhe fiel e entendendo a sua alma, por mais que o produto tenha de se render ao mercado, ter de ser apresentado com a roupagem da mercadoria, ter de pagar um pedágio expresso em preço para obter circulação.

O Jornalismo foi e sempre será uma atividade de lucro, mas, se sua finalidade for unicamente esta, perderá a sua alma, render-se-á inteiramente à sua face mais barata e, quando se der por si, já não será Jornalismo, mas um simples fantoche. Entregue um noticiário aos ditames de um magnata, de um déspota, ou de um credo carismático, e, em pouco tempo, algo apodrecerá. Não estou considerando, como já foi vaticinado – possivelmente em termos de desrecalque –, que ‘Jornalismo é oposição e o resto, secos e molhados’. Tenho dúvidas se a consistência do Jornalismo assegura-se tão somente neste recurso. Sinceramente, não estou seguro de que a contestação por si só seja o cerne, a consistência da natureza jornalística. Victor Gentilli aposta que a informação é que é o ingrediente matriz e motriz, o DNA do Jornalismo, mas, se cumpre numa sociedade o papel de servir à construção da cidadania, caso contrário, perderá o seu sentido próprio. Não se trata de bom-mocismo; de benemerência; de cidadania outorgada; mas de uma lógica operacional, de uma dialética sem a qual as democracias perdem a sua vitalidade. Ou seja, não é a oposição pela oposição, mas o instinto básico que orienta o repórter a pular imediatamente para o lado antitético da vida e, de lá, formular as suas perguntas. Desconstruir para reconstituir, este seria o método genuíno e genial do Jornalismo, aplicável em qualquer contexto – econômico, político, religioso etc –, daí, ser o jornalista o elemento incômodo, perturbador. Haverá, é claro, as rabugices de sempre, o lugar comum de se achar que a imprensa é bisbilhoteira, encrenqueira, desagregadora, desconfortável, em síntese. Mas, é esta pedra no sapato que tornará sempre vigilante a Democracia em seu caminho. Caso contrário, ela pisará fácil o terreno das seduções, os encantos de sereia, as enrolações do Poder e do Dinheiro. Se o Jornalismo ceder e conceder à Economia e à Política, será bichinho dócil, cachorrinho de estimação, cavalinho comendo milho na mão do mestre. Não é preciso afrontar, pois nem o Jornalismo e nem os jornalistas têm tal fortaleza. Não é o destemor fanfarrão nem o destempero que farão do Jornalismo e dos jornalistas os paladinos das boas histórias em que o bem vence o mal. É tão simplesmente com o fermento da contradição.

Recarga nas baterias da esperança: o Jornalismo não acabou.

Há um provérbio muito citado entre os norte-americanos: aquele segundo o qual o papel do Jornalismo é afligir os acomodados e consolar os aflitos. Segundo Victor Gentilli, ‘a necessidade da informação produz a necessidade do jornalismo’. Entretanto, nem tudo são flores e perfeição. Há limites, é claro. E Victor está atento a esses constrangimentos e possibilidades, mas, sempre atento à sua convicção – hipótese de trabalho –, de que a informação pode ser pensada na perspectiva da construção da cidadania, melhor dizendo, a informação jornalística é indispensável para a construção de sociedades modernas, com elevado grau de visibilidade e, conseqüentemente, com altos níveis de realização em matéria de direitos humanos, sociais, civis e políticos.

Um aspecto de lucidez a destacar no trabalho de Victor Gentilli é o fato de não se ter sucumbido, não se ter deixado seduzir pelo maneirismo fácil do paradigma ideológico, segundo o qual tudo pode ser explicado e reduzido ao contexto da luta de classes. Tampouco renuncia à possibilidade de que o Jornalismo se constitua enquanto práxis. Esta renúncia faz com que certos veículos, embora digam que ter ‘o rabo preso com o leitor’ (não deveria ser com o cidadão?), assumidamente encaram o Jornalismo como atividade econômica e o fazer jornalístico como marketing puro, sob pena de os negócios irem ao fracasso, pois, afinal nenhum empreendimento vive só de idealismo. O negócio do Jornalismo não seria justamente esse, o de que a cidadania é um bom negócio, e com lucros para todos? Apostar na cidadania seria, então, um bom negócio, investimento garantido. Caso contrário, bastaria entregar o Jornalismo e as redações a bons negociantes e bons vendedores, nada de repórteres com idealismos e outros maus hábitos.

Apresentar alternativas, não o destino. Possivelmente, este é o negócio do Jornalismo, o papel da informação jornalística numa sociedade em que as pessoas possam emergir da massa para agir como cidadãs. Ou seja, o papel do Jornalismo no mundo contemporâneo é fornecer subsídios para decisões, mas não decisões apenas econômicas, mas, sobretudo, civis. Direitos civis e direitos políticos, portanto, não aparecem, assim, miraculosamente, sem suor e sem conflito, às vezes, até com sangue. Não são direitos tácitos. Liberdade, igualdade e fraternidade não são uma metafísica, em si, não se garantem apenas por se estar no paradigma dos direitos. Dependem tanto do que Gramsci chamou de um Estado-ético (o contrário do Estado-coerção), quanto dependem dos próprios cidadãos, ou seja, das pessoas comuns capazes de argumentarem e agir como ‘sujeitos do direito’. O Jornalismo seria, então, a categoria social por excelência com a missão de estar atenta aos movimentos e contramovimentos, aos poderes e contrapoderes de uma vida civil, capaz de trafegar sem servilismos, pois este é o seu segredo, a sua inteligência.

O trabalho aqui apresentado – Democracia de massas: cidadania e informação –, tem o peso da jornada enfadonha, mas a leveza do sopro de utopia. É uma recarga nas baterias da esperança. Quando muitos já atiraram a toalha, aquela de que ‘já não existe Quarto Poder’, ‘tá tudo dominado’, Gentilli encontra força teórica para soerguer o que já se aparentava esvaído, esgotado. O Jornalismo não acabou. E talvez seja por isto que, após contemplar o fruto do seu esforço, o próprio Victor se denuncia na sua atitude de reencantamento, mas, não o faz ingenuamente, e sim, consciente de que também o Jornalismo é um processo construtivista:

‘Portanto, não se faz aqui o elogio de qualquer jornalismo ou do jornalismo como é feito correntemente. Nem de um jornalismo produzido sem medidas, sem critérios, sem ética, sem compromissos. Mas, sobretudo, de um jornalismo produzido e pensado, conscientemente, para oferecer um mínimo de cognoscibilidade ao mundo contemporâneo, um jornalismo que ofereça aquelas informações que o cidadão tem o direito de receber para que possa exercer plenamente todos os seus direitos. Um direito sem o qual o exercício de outros direitos fica prejudicado.’

Este livro foi escrito mediante alguns pressupostos básicos, um deles, o de que há uma relação intrínseca e constitutiva entre Democracia e Cidadania e, por extensão, entre Jornalismo e Cidadania, tanto com relação à construção da cidadania, quanto em relação à ampliação da cidadania. O acesso à informação é, portanto, condição sine qua non, para que se dê esse construcionismo, tanto democrático quanto cidadão. E este é o motivo pelo qual o autor trata o acesso à informação como um Direito e o Jornalismo como a categoria institucional capaz de prover aos cidadãos a matéria-prima para o exercício de seus direitos, no plural, face o Poder Público. Não se trata, portanto, apenas de uma tácita esfera pública aonde as informações circulam e até têm preço. O direito à informação funcionaria – esta é uma das hipóteses da dissertação –, como um direito que abre portas para os demais direitos, o Jornalismo sendo, portanto, um campo mediador de todos os campos numa ‘sociedade dos cidadãos’, definida por Bobbio (um dos autores mais citados) como ‘a democracia do poder visível’, ou ‘o governo do poder público em público’, no qual ‘aquilo que não é privado não é secreto’.

Dedicação ao Jornalismo como tema, pesquisa e saber acadêmico

Em alguns países, como é o caso dos Estados Unidos, com as suas sunshine laws, e mesmo do Brasil, onde alguns dispositivos constitucionais asseguram o acesso à informação de caráter público, supostamente as informações percorrem o seu destino natural que a sociedade, o cidadão como destinatário dos fatos, o princípio da publicidade. Já na Suécia do século XVIII, havia determinações legais sobre o direito de acesso dos cidadãos às informações do Estado. O papel da imprensa, no entanto, vai mais além do que a atividade protocolar de busca e entrega de informações, ou de registro e disponibilização de dados públicos. Informação e polêmica perfazem, então, o metabolismo das questões a caminho das deliberações e das decisões, em síntese, do estabelecimento do poder público legítimo, mas, no plano do domínio do cidadão, no patamar dos controles que são exercidos pelos cidadãos, está o sagrado direito e exercício do voto consciente. O direito à informação, portanto, acena-se não apenas em relação ao aspecto do ficar sabendo acerca das políticas públicas, mas constitui-se no insumo básico pelo qual o cidadão será capaz de ser sujeito do seu destino e dos rumos da sociedade. A informação, nesse caso, é tratada pelo autor como uma espécie de ‘provimento’ primário.

O trabalho que ora se apresenta avança, portanto, para além das considerações sobre a importância da imprensa livre numa sociedade democrática. Representa igualmente uma incursão pelo terreno do Direito, especificamente em relação aos direitos sociais, conforme conclui o autor:

‘A informação como direito social é, portanto, toda aquela informação, de sentido social, indispensável para a vida em sociedade. Toda aquela informação concebida à semelhança da educação, como o repasse da informação indispensável para o uso coletivo das conquistas humanas no campo social. O direito à informação na perspectiva social deve ser concebido como uma extensão do direito à educação e do direito à saúde, necessárias e úteis para a manutenção da vida humana e da dignidade humana.’

O que parecia, no entanto, já sabido e indiscutível – a correlação entre informação e democracia –, ganha neste livro clara e cristalina fundamentação conceitual e teórica, razão pela qual adquire o status de uma obra necessária àqueles que pretendem se dedicar ao Jornalismo como tema, pesquisa e saber acadêmico.

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Jornalista, professor da UnB, coordenador do projeto SOS Imprensa