Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Mídia omitiu a gênese do valerioduto

No início dos anos 1980, Marcos Valério Fernandes de Souza era um modesto escriturário do Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge), porém ambição e determinação não lhe faltavam. Tanto que em breve chegaria a gerente e integrante do seleto conselho da instituição. Com o know-how obtido, e depois de uma passagem pelo Banco Central até hoje envolta em mistério, Marcos Valério se reinventaria e se transformaria no principal vilão do ‘mensalão’, o escândalo que revelou o caixa dois do PT e manchou a reputação do partido que se considerava a reserva ética da política brasileira.

A história de Marcos Valério e os bastidores das negociatas que conduziram à crise é o tema do livro recém-lançado O operador, de Lucas Figueiredo, repórter especial do jornal Estado de Minas. Este é o terceiro livro do autor, que escreveu ainda Morcegos negros (2000) e Ministério do silêncio (2005). Neste novo relato, a narrativa começa com o cenário que levou ao flagrante de corrupção do diretor dos Correios, Maurício Marinho. A partir daí o leitor é fisgado graças à habilidade do autor em impor um ritmo quase que de thriller policial a um imbróglio que tinha tudo para soar bocejante, de tão explorado pela mídia.

A base do livro é a trajetória sinuosa de Marcos Valério, sua infância humilde, seus dramas familiares – como a perda de um filho de 2 anos, golpe do qual ele e a mulher Renilda jamais se recuperaram –, a tenacidade para vencer na vida, as parcerias oportunistas, o jogo duplo, o enriquecimento meteórico e por fim o desmascaramento. Mas, para além do mero foco biográfico, o leitor tem em mãos o relato detalhado de um dos momentos mais dramáticos da política contemporânea no Brasil.

No livro Lucas Figueiredo revela, entre outras coisas, a gênese do valerioduto, criação do PSDB mineiro. ‘Nos cinco anos em que operou para o PSDB, o patrimônio visível de Valério aumentou de R$ 230 mil para R$ 3,8 milhões, um acréscimo de mais de 1.500%. Isso a imprensa nunca disse’, conta Lucas nesta entrevista concedida por e-mail. Quando passou a operar para o PT, já conhecia o caminho das pedras. Valendo-se de sua condição de sócio das agências de publicidade SMP&B e DNA, levantou empréstimos bancários de alto risco para ajudar partidos a transformar dinheiro em votos.

É vasto o elenco de personagens suspeitosos que se move por essa história, expondo situações já familiares ao leitor. Neste sentido, nada haveria de novo no front, não fossem as dimensões da tragédia. Afinal, foi um esquema de caixa dois, embora infinitamente menor, que provocou o impeachment de Fernando Collor de Melo. ‘A história do valerioduto é a continuação da história do esquema PC’, afirma Lucas Figueiredo. ‘Enquanto o país não atacar os grandes corruptores, a corrupção será um dos grandes males nacionais’.



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Você teve retorno dos personagens citados no livro, após sua publicação?

Lucas Figueiredo – Sei que o livro incomodou muita gente, recebi várias mensagens. O engraçado é que os personagens se acusam mutuamente, achando que um deu informações sobre o outro. Um deles me procurou para ‘queimar’ um antigo desafeto, também personagem do livro.

Como foi o processo de levantamento das informações sobre Marcos Valério? Você manteve contato pessoal com ele?

L. F. – Durante meses, tentei falar com Marcos Valério, mas ele se recusou a falar. Ele tomou a decisão de não contar o que sabe e, assim, assumir sozinho a posição de vilão da história. Uma pena! Mas falei com muita gente do entorno dele, aproximadamente umas 30 pessoas, que contaram muitos segredos.

Que obstáculos você enfrentou para realizar esse novo trabalho?

L. F. – Fazer com que as pessoas falassem. Algumas fontes só toparam falar depois de cinco ou seis encontros. A turma tem muito medo.

A história do valerioduto apresenta ainda pontos obscuros, entre eles o verdadeiro papel da ex-secretária da SMP&B, Fernanda Karina Sommagio. Ela foi apenas uma empregada astuta na questão?

L. F. – Durante algum tempo, Marcos Valério acreditou que ela tivesse sido uma espiã ‘plantada’ na SMP&B ou uma informante ‘colhida’. A PF chegou a investigar essa possibilidade, mas nada foi provado. Agora, que é estranho ela saber de tantas coisas, isso é.

Qual foi de fato o papel da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) nessa crise do ‘mensalão’?

L. F. – Um ex-araponga da Abin, que mantinha laços com a direção da Abin, participou da operação que produziu o vídeo em que um funcionário dos Correios, Maurício Marinho, aparece recebendo uma propina de R$ 3 mil. Na mesma época, a Abin estava investigando os Correios. Coincidência demais, não acha?

Após a eclosão da crise, uma dúvida jamais foi esclarecida, se o presidente Lula sabia ou não de todo o imbróglio. Qual a sua opinião?

L. F. – Ele podia não saber do varejo, mas é impossível ignorar o atacado. É difícil imaginar que as bandas podre do PTB, do PL e do PP davam seus votos para o governo no Congresso a troco de nada. Lula até podia não saber como a base aliada era corrompida, mas, que sabia que ela era corrompida, isso sabia.

O fato de Marcos Valério operar impunemente, por tanto tempo, significa mais habilidade da parte dele, ou falta de rigidez nos controles das autoridades monetárias?

L. F. – Há centenas de Marcos Valério operando, ele não é um ser especial. A corrupção grassa no Brasil, e isso não nasceu com o PT nem com Marcos Valério. O país parece estar anestesiado, pois, ano após ano, os escândalos se repetem e nada muda.

Que análise você faz do papel da imprensa na cobertura desse escândalo?

L. F. – Com honrosas exceções, a imprensa ignorou que o PSDB ‘inventou’ o valerioduto. Foram os tucanos que armaram o sistema de caixa dois de campanha eleitoral e desvio de dinheiro por meio da SMP&B. Foram os tucanos que ‘inventaram’ os estranhos empréstimos do Banco Rural para encobrir o caixa dois. Foram os tucanos que pinçaram um ex-bancário muito criativo, chamado Marcos Valério, para gerir o esquema. Quando Marcos Valério começou a operar para os tucanos, ele não era rico. Nos cinco anos em que operou para o PSDB, o patrimônio visível de Valério aumentou de R$ 230 mil para R$ 3,8 milhões, um acréscimo de mais de 1.500%. Isso a imprensa nunca disse.

Num dos capítulos, você mostra que as CPIs criadas para investigar os fatos deixaram muitas perguntas sem respostas. Você acredita que essas questões ainda possam ser respondidas, ou prevalecerá o jogo do poder?

L. F. – O Brasil é um país que vive sem heróis, mas não vive sem vilões. Como aconteceu antes com PC Farias, Marcos Valério saiu como o grande vilão da história, a fim de que os grandes corruptores (os mesmos, aliás, da época de PC) continuassem freqüentando as colunas sociais e sendo chamados de doutor. Valério e PC foram meros bois de piranha.

Que paralelos você nota entre o caso de Marcos Valério e o de PC Farias, alvo do seu livro Morcegos negros?

L. F. – A história do valerioduto é a continuação da história do esquema PC: grandes corruptores dando dinheiro aos bem-posicionados no poder a fim de conseguir benesses do Estado. A novidade é que o PT, outrora bastião da ética na política, chafurdou com gosto na lama da corrupção.

Por causa da investigação sobre PC Farias, você foi alvo de processo movido por um juiz de Alagoas. Que precauções tomou para evitar que a situação se repita nessa empreitada sobre Marcos Valério?

L. F. – Para fazer uma denúncia, sempre é preciso estar munido de provas, e isso eu estou. No caso de Alagoas, fui vítima de um processo kafkiano movido por um juiz, no qual não consegui me defender. Um documento protocolado por mim no Tribunal de Justiça de Alagoas simplesmente desapareceu do processo. E uma decisão do mesmo tribunal tomada contra mim foi publicada de forma errada, fazendo com que eu não tomasse conhecimento dela. Conclusão: enquanto nenhum dos corruptores do caso PC foi condenado, eu fui.

Por ter sido lançado às vésperas da eleição presidencial, você teve receio de que seu trabalho pudesse utilizado com fins partidários?

L. F. – Meu objetivo é deixar um registro para a história. Ou seja, daqui a cinco, 10, 50 anos, alguém que ler o livro saberá o que aconteceu. Não acho que um livro tenha força para interferir numa eleição, nem era esse meu objetivo.

Suponha que Roberto Jefferson jamais tivesse aberto a boca, e Fernanda Karina Sommagio não tivesse entrado na história. O projeto de permanecer 20 anos no poder do PT poderia se viabilizar?

L. F. – Acho que não. O PT estava tirando dinheiro da elite financeira que sempre criticara para corromper a elite política que sempre combatera. E o esquema que utilizava tinha sido ‘inventado’ pelo PSDB, um adversário mortal do PT. Óbvio que um dia a casa ia cair, só o PT não via isso.

Há lições a serem extraídas de uma crise tão grandiosa? O país pode estar mais imune ao surgimento de novos Marcos Valérios?

L. F. – O problema não são os Marcos Valério. Eles são peixe pequeno. O verdadeiro problema são os grandes corruptores. Enquanto o país não atacar os grandes corruptores, a corrupção será um dos grandes males nacionais.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias