Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Onde está o berço da democracia

No terreno das idéias, nós estamos acostumados a mentiras insólitas e esbulhos inusitados, apresentados como referências de verdades inquestionáveis, mas poucos são tão espantosos como os que revela há anos José Hildebrando Dacanal, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em aulas, resenhas, ensaios, livros. Contudo é pouco lido e pouco ouvido para a importância que tem o que profere e escreve.

Como a mídia sempre faz, esqueceu mais um bom livro dele. Trata-se de Brasil: do milagre à tragédia: 1964-2004. Dentre os poucos que conhecem o autor, por muitos anos professor de Letras na UFRGS, estão alguns que, nos bastidores de murmúrios e conversas aleivosas, tentam desqualificá-lo com pechas diversas – a mais piedosa que ouvi foi a de “louco” –, mas que não se aventuram a travar uma polêmica com ele, pois temem o caudal de argumentos que despejaria sobre eventuais discordantes. O que é uma pena, já que polêmicas travadas com respeito mútuo pelo patrimônio intelectual do outro são boas, principalmente para os leitores, que vêem idéias postas à prova de debates, infelizmente tão raros neste país onde a confraria do elogio mútuo fez escola há séculos.

Poucos professores de Letras terão a sólida formação intelectual desse neto de italianos que nasceu em Catuípe (RS). Sem prejuízo ao batente de professor e de ensaísta, Dacanal é jornalista há mais de quarenta anos. Formou-se em Letras Clássicas e Vernáculas e depois em Ciências Econômicas na mesma universidade onde mais tarde se aposentaria como docente.

Provocações sadias

Nesse livro, constituído de três ensaios, o mais instigante é o que fecha o volume. Intitula-se “As origens da democracia”. Dacanal começa com a clareza de sempre:

“As raízes da democracia estão funda e firmemente plantadas no solo ético-religioso da civilização israelita e não no solo científico-filosófico da civilização helênica”.

Ele credita ao iluminismo europeu a criação e divulgação da lenda de que a democracia nasceu em Atenas. Para tanto, algumas ambigüidades lexicais serviram de bucha aos canhões das idéias. Demos, em grego, não designa povo, com o significado que esta palavra tem em português, mas departamento, distrito, cantão. Povo, com o sentido de coletivo de pessoas num mesmo espaço geográfico, tem outras designações em grego, como laos, okos, etnos. Os cidadãos dessas pequenas localidades indicavam delegados que iam à ágora (assembléia) que ditava os rumos do governo em Atenas e na Ática. Calcula-se que esses cidadãos representavam, quando muito, 10% da população que ali vivia, pois eram excluídas as crianças, naturalmente, e, menos naturalmente, as mulheres, os escravos, os trabalhadores avulsos, os estrangeiros etc.

Dacanal é feroz em seu raciocínio:

“Acreditar que a democracia, no sentido moderno do termo, nasceu na Grécia, especificamente em Atenas, é portanto uma enorme falácia histórica, que só pode ser produto da ignorância”.

Mas as sadias provocações não param aí. Dacanal lembra que Sócrates foi condenado à morte pela democracia grega. Seu crime? Reivindicar independência intelectual e prática pedagógica estranhas à natureza da pólis grega. Sua morte foi um assassinato de Estado, perpetrado por demagogos que manipulavam a opinião pública.

O bom e o justo

Povo mesmo é o povo do livro, o povo de Israel, povo do Decálogo ou povo eleito. Dacanal parece aconselhar-nos: leiam menos as teorias políticas e voltem ao Antigo Testamento.

Mas por que a democracia seria hebraica e não grega?

“A civilização de Javé assentava-se sobre a união indissociável entre ética e religião. O poder, como esfera da política, ocupava função secundária e, por definição, não gozava de autonomia”.

Entre os abundantes exemplos desta tese, ele se fixa no episódio em que o profeta Natan pune o rei Davi, menos pelo adultério com Betsabéia e mais por mandar o general Urias, seu marido, para morrer no front da guerra contra os amonitas. A ordem de execução que o rei Davi dá a Joab, comandante do exército de Israel, é clara:

“Coloque Urias no lugar mais perigoso da frente de batalha para que ele seja morto pelo inimigo”.

Joab cumpre a ordem e Urias é morto.

A base de sua argumentação é esta:

“A civilização de Javé ergue em torno do indivíduo – independentemente de sua posição na sociedade – uma muralha intransponível ao arbítrio da autoridade secular, estabelecendo assim o princípio lógico ordenador das sociedades democráticas do Ocidente moderno: a separação entre espaço público e espaço privado. Princípio que, por suposto e não por coincidência, é o alvo primeiro visado pelos totalitarismos de qualquer natureza”.

Dacanal vai além, ao argumentar que, justamente por ser monoteísta, a civilização de Javé, o povo do livro, ao contrário da greco-romana, é igualitária e solidária, já que abaixo do único Deus todos são iguais, a ponto de um rei poderoso como Davi ser punido por um profeta, que o faz em nome de Deus. Se os gregos defendessem a igualdade, morreriam, pois destruiriam a base de suas cidades – a escravidão.

Principalmente por este ensaio sobre o controvertido berço da democracia, o livro de José Hildebrando Dacanal é de leitura indispensável. E vem envolto em linguagem clara, concisa e didática, no bom sentido, não no arrogante viés que monarcas da mídia adotaram para, como “formadores de opinião”, decidirem o que é bom e justo para os leitores, sem que estes possam questioná-los, pois os recursos postos à disposição não vão muito além de cartas, algumas das quais publicadas resumidamente quando há espaço!

******

Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br