Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por que biografar?

É que, em principio, toda biografia se nos apresenta como um gesto poderoso de sedução da memória. Não é um gesto solitário e individual, como se poderia pensar, uma vez que esta palavra tende a sugerir de imediato os processos de introspecção e rememoração de fatos significativos do passado. Isto existe, claro, mas Maurice Halbwachs nos advertia sempre sobre a origem social da memória, argumentando que todas as lembranças, ‘mesmo aquelas dos pensamentos e dos sentimentos inexprimidos’ estão em relação com todo um conjunto de noções que muitos além de nós possuem. Assim, toda e qualquer lembrança vincula-se ‘à vida material e moral das sociedades de que fazemos ou fizemos parte’.

Ainda assim, é possível fazer-se uma distinção entre a lembrança orientada pelos conteúdos (recuperação e reconstrução de um fato significativo) e aquela orientada pela dinâmica grupal do lembrar. É uma distinção análoga à que faz Wittgenstein entre o pensado (der Gedanke) e o pensar (das Denken). No primeiro caso, memória-conteúdo, extremamente valorizada pela historiografia e pela museificação das culturas ocidentais, a tecnologia avançada e as provas de verdade são necessariamente convocadas.

No segundo caso – memória como dinâmica grupal de rememoração – emerge a dimensão da exomemória (memória externa), que engloba sujeitos e objetos, narrativas e práticas ritualísticas – agenciados por um pacto simbólico. Quando refletimos antropologicamente sobre a exomemória dos descendentes de africanos no Brasil (o saber ético e cosmológico das comunidades litúrgicas), por exemplo, logo nos damos conta de que se trata, na verdade, de um pensar externo atuante, voltado não para a reconstrução verdadeira (e metafísica) de um passado, e sim para reanimar o consenso comunitário quanto a formas singulares de existência do grupo. Não acontece aí ‘História’ no pleno sentido ocidental do termo – ‘combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita’, nos termos de Michel de Certeau – e sim o saber memorialístico da tradição, apoiado na existência de uma comunidade concreta.

Mas ao evocarmos jornalisticamente a vida de uma personalidade nacional, geralmente reinterpretamos individualmente aspectos de um passado, de modo historicamente seqüencial, em busca não de consenso, nem de identidade comunitária, mas de uma coerência satisfatória à lógica momentânea do mercado. Individual ou social, o trabalho da memória é, de todo modo, uma reconstrução do passado à luz da inteligência presente.

Não é uma tarefa tão fácil como pode parecer à primeira vista, quando se leva em conta a multiplicidade informatizada das fontes. De fato, estamos nos saturando cotidianamente de lembranças jornalísticas. Felipe Pena é taxativo: ‘Se, no passado, era preciso ler a biografia de uma estrela para conhecer passagens de sua intimidade que ela julgasse conveniente divulgar, hoje a biografia é escrita diariamente na mídia. O espaço dos heróis (mesmo os pré-fabricados) foi ocupado pelas celebridades. A superexposição substitui a virtude (areté) como valor supremo. As imagens são pré-concebidas. As estórias já foram contadas. E a encenação continua até mesmo após a morte (Elvis ainda não morreu)’.

Como então biografar o ‘midiagrafado’? No fundo, é esta a questão de Teoria da biografia sem fim. Preocupado com a construção do discurso do biógrafo na sociedade midiatizada, Felipe Pena critica anacronismos da narrativa jornalística, postula a ‘implementação de uma nova atitude em relação ao evento, que obrigue o jornalista a ler não a partir do evento, mas a partir dos pressupostos de sua formação’ e termina sugerindo um formato original de biografia, a dos ‘fractais biográficos’ em que se tornariam visíveis as identidades múltiplas de um personagem. Ao invés do sequencialismo historiográfico, guiado pela ficção da identidade única, uma construção textual que dependa dos deslocamentos do personagem pelo espaço social.

A ‘biografia sem fim’ é precisamente a narrativa sem preocupação cronológica, interativa e dividida em ‘fractais’ ou capítulos nominais. Sem começo, meio e fim, o leitor poderá começar o texto a partir de qualquer página e desfrutar, inclusive, de versões diferentes de um mesmo caso. No centro de tudo isto, claro, o computador, com suas virtualidades multilineares e interativas. A proposta de Felipe Pena neste livro é, para dizer o mínimo, tão sedutora quanto apelos de memória.

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Escritor e professor titular da UFRJ