Monday, 13 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Triunfo sobre a morte

‘Qual escritor policial não gostaria de protagonizar sua própria trama?’ [20/8/1989]

O ataque do cavalo preto ao rei branco não resultou no esperado xeque e ainda provocou o sacrifício inútil de vários peões. Na noite de 9 de junho de 1956, um escritor chamado Rodolfo Walsh, 29 anos, jogava xadrez num café de La Plata, na província de Buenos Aires, quando ele e os outros enxadristas ouviram um tiroteio lá fora. Torres e bispos foram deixados em seus postos e os jogadores correram à rua para espiar o que se passava. E o que viram era muito pior do que as batalhas que disputavam em seus tabuleiros: pânico súbito, ruas escuras, carros militares a toda, gente correndo sem direção, estrondos de balas e gritos de medo, ferimento e dor. Como os outros, Walsh achou mais prudente desistir do xadrez e ir para casa.

Não havia transporte. Walsh levou duas horas para vencer a pé as poucas quadras que o separavam de sua rua, sob o risco de ser sorteado por uma bala perdida. Finalmente chegou à sua casa, na rua 54, mas, quando o deixaram entrar, viu um palco de guerra. Vidraças estilhaçadas, estantes crivadas de balas, um fedor de pólvora no ar. Sua casa fora transformada em quartel: tinha sido ocupada – da sala ao banheiro e, segundo ele, principalmente o banheiro – por soldados da polícia, armados até a última obturação. A chefatura, no outro lado da rua, fora um dos alvos da primeira intentona contra o governo militar instalado desde a queda do presidente Juan Domingo Perón, nove meses antes.

Walsh não podia saber que, aquela noite, mais de 100 mil tiros seriam disparados, militares sublevados estavam sendo submetidos a julgamentos sumários dentro de suas próprias unidades e doze civis desarmados tinham sido levados a fuzilamento num depósito de lixo na cidade de José León Suárez, ali perto. Naquele momento, as rádios portenhas transmitiam a música de Haydn. Em frente à sua casa, os soldados metralharam um carro e fizeram voar os miolos do homem dentro dele. Cenas como essa ficavam bem nos livros policiais que ele gostava de ler, não diante de seus olhos.

Havia outro sobrevivente

Walsh não podia saber e, como ele próprio escreveria depois, não queria saber daquilo. Perón não o interessava, revoluções não o interessavam. Trabalhava como revisor de provas na editora Hachette e gostava de jogar xadrez nas horas vagas, mas sua grande preocupação era a literatura policial. Anos de leitura tinham feito dele um perito no gênero, cujos clássicos sabia de cor e competentemente emulava, escrevendo histórias que se passavam em Buenos Aires, com vítimas, criminosos e investigadores patrícios. Não estava sozinho nessa pretensão: depois que Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares provaram que aquilo podia ser feito, toda uma geração de jovens escritores argentinos dedicava-se a criar uma Buenos Aires noire e neodecadente.

Três anos antes, em 1953, Walsh publicara uma pioneira antologia de seus colegas, Diez cuentos policiales argentinos, na qual se incluía com méritos, e principalmente um elogiado livro próprio, Variaciones en rojo, contendo três novelas em que apresentava seu detetive – um amador cerebral e meticuloso, como ele, chamado Daniel Hernández, e, também como ele, revisor de provas numa editora. Nos anos imediatamente seguintes, Hernández continuaria a ser o personagem de vários contos que ele publicaria em revistas locais.

Seis meses depois daquela noite da frustrada intentona peronista, Walsh viu-se casualmente, num bar, diante de um sobrevivente do fuzilamento no depósito de lixo em José León Suárez. O homem se chamava Juan Carlos Livraga, tinha os dentes todos quebrados e um buraco na bochecha. A bala da execução lhe entrara de lado pela boca, devastara os seus dentes e saíra pelo rosto. Ele caíra ao chão e se fingira de morto e, na confusão durante o fuzilamento dos doze condenados, deixaram de dar-lhe o tiro de misericórdia. Ao redor de uma cerveja, Livraga contou a Walsh que havia ainda outro sobrevivente, um homem chamado Giunta.

Um final fascinante

Walsh não explicou por quê, mas, a partir dali, abandonou durante um ano sua casa e seu trabalho na Hachette, adotou o nome falso de Francisco Freyre (com uma carteira de identidade também falsa), arranjou um revólver e foi morar no cenário dos acontecimentos daquela noite: o bairro operário de Buenos Aires onde os suspeitos tinham sido presos enquanto ouviam uma luta de boxe pelo rádio; a unidade policial onde foram fichados e de onde foram metidos num caminhão para o local em que seriam sumariamente fuzilados.

Por que Walsh fez isso? Por que trocaria sua confortável posição de escritor publicado e com assento numa grande editora, para meter-se a investigar um assunto num terreno – a política – pelo qual tinha demonstrado até então escasso ou nenhum interesse? E, além disso, não era perigoso demais para quem, até aquela época, a ideia de máximo risco era uma troca de damas numa partida de xadrez? Era. Mas, à falta de outras informações que possam justificar essa radical mudança em seu estilo de vida, só se pode deduzir que a paixão de Walsh pelos escritores policiais levou-o a querer ser não apenas o criador de um detetive de ficção, mas a tornar-se ele próprio esse detetive e poder aplicar à vida real os seus consideráveis talentos dedutivos.

Walsh não descobriu somente dois sobreviventes do fuzilamento. Descobriu sete – todos escondidos da polícia. No curso de suas investigações, escreveu dezenas de relatos sobre a chacina, que ninguém queria editar com medo dos homens do general Pedro Aramburu, o presidente de plantão. Custou, mas as histórias saíram na revista Mayoría e criaram um caso que levou os implicados ao tribunal – em vão, naturalmente. Em 1957, Walsh costurou a história num livro intitulado Operación masacre, que só não pôde ser considerado um clássico exclusivo da literatura política em língua espanhola porque tinha também um forte parentesco com a literatura policial. Mais exatamente, com os processos de dedução do advogado Perry Mason, o personagem criado por Erle Stanley Gardner – com ele, Walsh, no papel de Mason.

Mas Walsh não iria pôr-se apenas no lugar do seu detetive fictício. Tornar-se-ia, também aos seus próprios olhos, o grande personagem de si mesmo, ao ingressar na militância peronista nos anos 1960 e na luta armada nos anos 1970. E, num final que ele – como ficcionista – provavelmente acharia fascinante, acabou como vítima na sua própria história, ao se ver emboscado nas ruas de uma Buenos Aires mais noire do que nunca e ser dado como desaparecido.

Os antepassados dos detetives modernos

No dia 25 de março de 1977, um homem – cinquenta anos, míope, baixinho, magro, vestido com simplicidade, um tipo comum – saiu de sua casa na província para distribuir a certas pessoas, em Buenos Aires, cópias de uma carta dirigida à Junta Militar que, na véspera, completara um ano de poder na Argentina depois de depor Maria Estela Perón. A carta era um balanço provisório dos sequestros, torturas, execuções, assassinatos e desaparecimentos de oposicionistas, além de uma análise dos estragos que, em sua opinião, os militares comandados pelo general Jorge Videla estavam fazendo com a economia argentina. No último parágrafo, dizendo-se ‘sem esperança de ser escutado e com a certeza de ser perseguido’, dava, corajosamente, seu nome e número de identidade: Rodolfo Walsh, C. I. 2.845.022.

Ninguém sabe em detalhes o que se passou, mas é certo que, com as cartas já a salvo, Rodolfo Walsh foi cercado numa rua de Buenos Aires, oficialmente por um comando da repressão aos Montoneros, o grupo guerrilheiro do qual ele fazia parte. A ideia, parece, era a de prendê-lo vivo, mas Walsh teria reagido à bala, ferindo alguns oponentes antes de ser varado pelas metralhadoras do regime – a velha história. Segundo uma versão, seu corpo sem vida teria sido visto naquele dia, numa enfermería do Exército, por outro sequestrado que escapou. Poucos meses depois, uma filha de Walsh morreria nas mesmas circunstâncias.

Era o fim de uma curiosa e fascinante trajetória – ou um novo começo porque, a partir daí, Rodolfo Walsh se tornou uma espécie de paradigma para inúmeros intelectuais argentinos. Uma trajetória iniciada em 1927, quando ele nasceu na província de Rio Negro. Seu pai, descendente de irlandeses, era capataz de uma fazenda. Aos nove anos, em 1936, Rodolfo foi internado num colégio irlandês, ‘para órfãos e pobres’, em Capilla del Señor, onde descobriu a literatura através de Os miseráveis, de Victor Hugo. Aos dezessete, em 1944, começou a trabalhar como revisor de provas na editora Hachette, em Buenos Aires, para a qual eventualmente traduziu romances policiais. E, aos 26, em 1953, começou o que parecia ser uma brilhante carreira literária, com as três novelas de Variaciones en rojo e com uma série de artigos em revistas sobre a literatura de mistério. Um desses artigos, ‘2500 años de literatura policial’, incluído em seu livro Cuento para Tahúres, revela um estudioso capaz de localizar os antepassados dos detetives modernos nos mais remotos cafundós do tempo.

Especialista em decifração de códigos

Quando mergulhou nos fuzilamentos da ‘operação massacre’ em 1956 – que, provavelmente, ele viu a princípio apenas como um bom material para uma história –, Walsh não sabia que estava dando uma guinada radical em sua vida. E nem isso, aliás, se fez sentir de imediato. Essa guinada deve até ter sido mais sensível na literatura porque, aos olhos de 1957, Operación masacre devia parecer um livro estranho, difícil de classificar. Era um romance, uma reportagem ou o quê? Foi preciso que, em 1966, Truman Capote anunciasse a invenção do ‘romance de não ficção’, com A sangue frio, para que pelo menos os argentinos soubessem que Walsh antecipara Capote em quase dez anos – uma façanha literária nada pequena.

Mas, a partir daí, os personagens das histórias de Walsh também mudaram. Deixaram de ser as pessoas comuns que povoam os livros de mistério e passaram a ser gente envolvida, direta ou indiretamente, em política: operários, sindicalistas, militares, pistoleiros, advogados, ministros de Estado. Em sua nova prosa, o falcão maltês batia as asas sobre o Congresso argentino. O ensaísta Ángel Rama, citado por José Emílio Pacheco na introdução da Obra literária completa de Walsh, definiu bem sua metamorfose: ‘A investigação de um crime pessoal transformou-se na investigação do crime social e a busca da justiça se ampliou até abarcar a sociedade inteira.’

E foi então que, em algum momento dos anos 1960, não apenas os personagens, mas o autor também mudou. Algo estalou na cabeça de Rodolfo Walsh para que o pacífico intelectual, enxadrista, estudioso do romance policial e um sublime alienado político, se convertesse num militante ativo do movimento peronista. Pacheco fornece os elementos dessa trajetória, infelizmente sem localizá-la no tempo: Walsh tornou-se, sucessivamente, ‘um dos fundadores da Prensa Latina e diretor de seu departamento de informações especiais; diretor e fundador da revista CGT, órgão da Confederação Geral dos Trabalhadores; já como militante montonero, foi o criador do Semanario Villero e de uma escola destinada a formar jornalistas populares em uma villa miseria ou ciudad perdida (favela), assim como no diário Noticias, do partido. E, nas fileiras do peronismo revolucionário, Walsh cumpriu outras funções, entre as quais a fundação da Ancla (Agência de Notícias Clandestinas)’. Essa trajetória continua no livro Montoneros – Final de cuentas, de Juan Gasparini (Puntosur, Buenos Aires, 1988), em que Walsh aparece como militante das FAP (Fuerzas Armadas Peronistas) e, em seguida, como especialista em decifração de códigos secretos dos montoneros, onde chegou a segundo oficial com os codinomes de ‘Esteban’ e ‘Professor Neurus’. Nem Daniel Hernández, seu detetive de ficção, levou uma vida tão agitada.

O ‘território cercado’

Em tese, mesmo na ficção, os escritores são cínicos e individualistas demais para se meterem em aventuras como essa (embora alguns se metam, como Paulo, o personagem de Carlos Heitor Cony em seu romance Pessach – A travessia, de 1967). Quando um caso desses acontece na vida real, como se deu com Walsh, rende brindes e foguetes para outros intelectuais de esquerda que ficaram na sombra. A passagem de Walsh à luta armada tornou-o, segundo Victor Pesce no posfácio de Cuento para Tahúres, o paradigma do ‘intelectual burguês’ que, aos olhos dos outros, ‘resolveu’ o velho problema entre a palavra e a ação – o que, na prática, equivale a classificar a literatura como uma perda de tempo. O sensato Pesce, que não concorda com essa interpretação, tenta salvar a pele de Walsh, arriscando que ele ‘trabalhou no interior dessa tensão’ e sofreu com ela.

É possível: as novas edições da não ficção política de Walsh parecem a obra de dois escritores completamente diferentes. De um lado, o corpo de cada livro: Operación masacre, Quién mató a Rosendo?, Caso Satanowsky – narrativas vibrantes, que podem ser lidas ‘como um romance policial’, sem perder um pingo de seu impacto como denúncia; de outro, os copiosos prefácios, introduções, posfácios, notas e outros previsíveis e desnecessários apêndices ‘históricos’ a cada livro, que Walsh ainda teve tempo de escrever. É um outro Rodolfo Walsh o autor daqueles penduricalhos e, de longe, muito inferior ao grande escritor que ele pôs para dormir.

Mas esse Walsh escritor, que se presume ter sido o verdadeiro, ao que tudo indica tinha hora para acordar. Sua mulher, Lilia Walsh, num depoimento publicado no México em 1980, fala das últimas divergências de Walsh com os montoneros e de como, ao ver suas propostas ‘cair no vazio’, tencionava ‘afastar-se do território cercado – Buenos Aires –, recuperar sua identidade e, com ela, toda a sua trajetória pessoal e fazê-la valer como uma arma. Deixar de ser um militante a mais, voltar a ser Rodolfo Walsh, triunfar sobre a morte’.

Victor Pesce, em seu posfácio a Cuento para Tahúres, dá a entender que o ‘território cercado’ a que se referia Walsh não se limitava apenas ao ‘cerco dos militares’, mas não vai mais longe. O que ele queria dizer? Que Walsh pode ter sido morto por outros? Mas que outros? Em Buenos Aires, as pessoas baixam o tom de voz ao insinuar que podem ter sido os próprios montoneros.

É um mistério – que precisaria de um Rodolfo Walsh para ser de todo desvendado.

Balística e grafologia

Dashiell Hammett, o autor de O falcão maltês, bebeu, entre outras coisas, em sua própria experiência para criar aqueles dois grandes detetives, Sam Spade e o Continental Op. Como todo mundo sabe, Hammett passou uns tempos como detetive na famosa agência de investigação Pinkerton, antes de se tornar escritor. O inglês Leslie Charteris foi outro que se inspirou em si próprio para construir a figura de Simon Templar, o Santo: como seu personagem, ele também falava várias línguas, entendia de vinhos, era um completo gourmet, pilotava aviões e costumava ser fatal com as mulheres. James M. Cain, que era um casca-grossa, tanto na vida quanto escrevendo, trabalhou numa companhia de seguros, de onde tirou informações que aplicou na trama de Pacto de sangue, a qual tratava de um crime em torno de um seguro. Nada disso chegava a ser novidade para Rodolfo Walsh, nem o impressionava muito: todos esses escritores tinham apenas feito a arte copiar a vida.

A fascinação de Walsh era reservada a Sir Arthur Conan Doyle, o pai de Sherlock Holmes. Ao contrário dos outros, Conan Doyle tivera a oportunidade de copiar em vida a sua própria arte. No ensaio ‘Vuelve Sherlock Holmes!’, contido em seu livro póstumo Cuento para Tahúres y otros relatos policiales, Walsh descreve deliciado como Sir Arthur – apenas por ter criado Sherlock – foi convidado a ser consultor do governo britânico durante a Primeira Guerra, e como efetivamente solucionou vários mistérios reais que lhe caíram às mãos. (Esses casos quase sempre se referiam a pessoas acusadas de um crime que não haviam cometido e cuja inocência ele provava, usando métodos semelhantes aos que inventara para Holmes.) Que escritor de histórias policiais não gostaria de tentar aplicar na prática os processos infalíveis que descrevia em literatura?

Nas três novelas de Variaciones en rojo e nos outros contos que escreveu, Walsh contrapõe o correto mas burocrático comissário de polícia Jiménez ao seu amigo Daniel Hernández, revisor de provas da editora Corsario e detetive amador, com um penchant para resolver mistérios usando a observação e a dedução. Pelo que Walsh põe na boca do personagem, Jiménez parece ter sido o primeiro aluno da classe em todos os cursos da polícia. Numa das novelas, La aventura de las pruebas de imprenta, ele dá uma verdadeira aula sobre armas: os diferentes modelos de pistolas ou revólveres, os complicados processos para determinar com segurança qual delas disparou tal bala, os cálculos que permitem reproduzir a posição exata do atacante e da vítima no momento do tiro etc. Na mesma novela, Jiménez também explica, em minúcias, por que os exames grafológicos da polícia são capazes de dizer se letras aparentemente diferentes pertencem ou não a uma mesma pessoa. Claro que, para efeitos dramáticos, Walsh fará com que, em alguma instância, o comissário deixe de enxergar o óbvio e permita que Daniel destrua a sua argumentação tecnicamente perfeita com uma versão completamente diferente, a qual provará ser a verdadeira. Afinal, é nisso que está a graça da literatura policial. Mas onde foi que ele, Walsh, aprendeu aquilo tudo?

Fatos escamoteados e distorcidos

Raymond Chandler acusava Agatha Christie de entender tanto de venenos quanto ele de receitas de bolo, e afirmava ser impossível alguém escrever uma história policial a sério sem um mínimo de pesquisa sobre os instrumentos envolvidos na prática do crime – armas, por exemplo – ou da sua solução. Pois de falta de pesquisa é que Walsh não poderia ser acusado. Ele certamente se interessou por criminologia e, não houvesse outros indícios, isso está patente tanto nas suas histórias policiais como nos seus três livros de não ficção política.

Em Operación masacre, ele estabeleceu um ponto fundamental para o caso: a hora do dia 9 de junho de 1956, em que os condenados ao fuzilamento foram presos, e o momento em que passou a vigorar a lei marcial que autorizava aquele fuzilamento – com base nos roteiros da programação musical da Radio del Estado, a emissora oficial, rubricados pelos locutores. Walsh conseguiu provar que, tendo sido presos antes da divulgação da lei marcial, de modo algum os suspeitos poderiam ter praticado um delito que os tornasse puníveis por ela – donde a ilegalidade do fuzilamento. Mas desde quando a ilegalidade é crime em regimes de exceção?

Em 1957, Walsh ainda parecia acreditar naquela que é a base da pirâmide da literatura policial: a existência da Justiça e o respeito pelas tecnicalidades. Um crime é cometido, apuram-se os fatos dentro dos limites da lei e o culpado é punido. Mas, se existe tortura, para que detetives? A literatura policial precisa também que ocorram poucos crimes, para que, quando se cometa um, ele seja uma coisa excepcional. E, nas ditaduras, o crime (inclusive de Estado) é a regra. Foi por isso que nenhum outro país produziu tanta literatura clássica do gênero quanto a Inglaterra, e que quase toda a produzida nos Estados Unidos mostre o detetive trabalhando à margem da polícia e esta resmungando contra os limites da lei – mas a lei existe. Walsh, ingenuamente, ficou chocado ao ver os fatos da operação massacre sendo, primeiro, escamoteados da opinião pública e, em seguida, distorcidos pela Justiça argentina através de falsos testemunhos, omissão de responsabilidades e toda sorte de fraude com aparência legal – com o que ninguém foi condenado.

Prevendo o desfecho

A ingenuidade de Walsh já está consideravelmente diminuída em Quién mató a Rosendo?, embora a operação de encobrimento dos verdadeiros culpados tenha sido, nesse caso, muito mais escandalosa. Num café de Buenos Aires, a confitería La Real, de Avellaneda, dois grupos de sindicalistas estão sentados em mesas próximas. Na primeira mesa, sentam-se o superpelego peronista Augusto Vandor, ladeado por seu braço direito, o ambicioso e ascendente Rosendo García, e outros, entre guarda-costas, pistoleiros e até metalúrgicos de verdade; na outra mesa, um grupo de sindicalistas também peronistas, mas adversários de Vandor. Uma briga estoura entre eles. Tiros. Caem mortos, de um lado, Rosendo García, baleado pelas costas; de outro, dois antivandoristas. A polícia faz uma rápida perícia no café e conclui que, no tiroteio, a bala que acertou Rosendo fora dirigida a Vandor ou que, em todo caso, fora disparada pelo segundo grupo. Todo o café é lavado em seguida pelos empregados, as mesas mudadas de lugar e os vestígios da luta apagados. O episódio é debitado à conta de alguns uísques a mais nas discussões entre duas facções do próprio peronismo.

Walsh, que já estava ligado à ala esquerda do peronismo, resolveu investigar por conta própria. Com o auxílio de testemunhas, reconstituiu a posição exata dos presentes no café. Checou o calibre de todas as armas presentes. Tendo acesso aos autos, pôde saber aproximadamente quantos tiros foram disparados e quantos se perderam. Conferiu as marcas das cápsulas contra o balcão de chumbo e determinou a origem de cada tiro, coisa que a Polícia Judiciária não tinha conseguido – ou não quisera – estabelecer.

Pelos croquis que fez da situação e pela eliminação, um a um, dos envolvidos na cena como em posição improvável para o tiro, concluiu que a bala que acertou Rosendo pelas costas só poderia ter sido disparada pelo próprio Vandor! Havia outro motivo forte para suspeitar que tudo não passara de uma trama do grupo vandorista: ao contrário do que a investigação oficial tentara provar, nenhum integrante da outra mesa estava armado.

Como sói, nada aconteceu com a denúncia de Walsh e Vandor tornou-se, cada vez mais, o sorridente homem de Perón entre os sucessivos generais da Casa Rosada. Mas Walsh não foi desmentido. Aliás, já devia estar prevendo esse desfecho ao escrever, logo na introdução de Quién mató a Rosendo?: ‘Se quiser ler este livro como um simples romance policial, é problema seu’.

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Jornalista e escritor