Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um prêmio muito bem dado

O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos recebeu da Associação Brasileira de Ciência Política o Prêmio Vitor Nunes Leal, no Concurso Brasileiro de Livros em Ciência Política e Relações Internacionais, pelo livro Horizonte do Desejo – Instabilidade, fracasso coletivo e inércia social (Rio, Editora FGV, 2006).


Graduado em filosofia pela antiga Universidade do Brasil, o professor titular (aposentado) de teoria política da UFRJ já tinha sido premiado pela Academia Brasileira de Letras em 2004, na categoria Ensaio, com o livro O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira, publicado pela UFMG.


O autor é PhD em ciência política em Stanford (EUA), aparece periodicamente na imprensa nacional publicando artigos sobre sua área de atuação, nos quais se compraz em desfazer lugares-comuns que têm viciado a interpretação da sociedade brasileira.


Quando recebia o prêmio em Belo Horizonte, dia 28 de julho passado, já estava nas livrarias seu novo livro: O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado (Rio, Civilização Brasileira, 2006).


Sem meias palavras, num estilo temperado pela verve na análise da realidade nacional, ele dilui com ironia algumas idéias (mal) feitas e cristalizadas ao longo de décadas, como a de condenar a herança de Getúlio Vargas, sem o cuidado de submetê-la à reflexão: ‘Nem o legado varguista era tão condenável, nem a proposta de apagá-lo tão inocente’, diz ele.


Já no livro agora premiado, o projeto é ‘entender como funciona o aparente conformismo nacional, analisando-o por um prisma inovador’, como diz a editora na apresentação da obra. Nele, o cientista admite que ‘o Brasil é um país instável, sem dúvida, se comparado às democracias tradicionais, e nem poderia ser diferente, por uma série de aspectos que o distinguem desses países e que podem ser vistos, contudo, sob ótica positiva, antes do que como anúncio de erosão aparentada à que se atribui às democracias tradicionais’.


Ideário torto


O cientista político, empenhado em entender a vida nacional e passar a seus leitores, em linguagem a mais clara possível, as conclusões de suas pesquisas, parece lembrar aos incautos e muito distraídos, e ainda assim ferozes críticos do pouco que se tem feito pelo povo, que uma coisa é administrar um país como o Brasil, com elevadas taxas de crescimento da população, e outra, bem diferente, é gerir a França ou Portugal, ‘que há quarenta anos se encontram no limiar de experimentar taxas negativas de crescimento populacional’.


Apreciador, também, de vinhos, charutos e boa música, Wanderley Guilherme dos Santos revela na prosa solta e desarmada à beira de copos um conhecimento de autores nacionais, incluindo a literatura brasileira contemporânea, que poucos de seu ofício têm.


Por certo esta complexa dieta de leituras explica o cuidado que tem com a forma, esmerando-se em persuadir, sem chatear, o leitor – o calcanhar-de-aquiles de tantos PhDs – levando em conta que o público está desobrigado de dominar o aparato metodológico do autor.


Ao premiá-lo, a Associação Brasileira de Ciência Política pode ter dado um norte ao Prêmio Vitor Nunes Leal, revelando sutilmente que premia livros que conciliem rigor de análise com argumentações claras, sem subterfúgios que escondem, às vezes, a dificuldade que os próprios autores têm de se fazer entender. Com ele, a linha é clara: discordando ou concordando, nenhum leitor pode alegar que o autor se disfarçou em hermenêuticas estéreis.


Wanderley Guilherme dos Santos faz por merecer o prêmio que o distinguiu, principalmente pelo ‘claro raio ordenador’ de suas análises, de matriz drummondiana.


E que tal juízo não soe estranho, pois, ao lado de sociólogos e cientistas políticos, poetas e ficcionistas também têm chegado a conclusões semelhantes sobre os mesmos temas, naturalmente sem os rigores dos métodos da ciência política, mas trilhando ínvios caminhos. São exemplos de tais referências as obras solares de João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina), Cecília Meireles (Romanceiro da Inconfidência) e Affonso Romano de Sant’Anna (Que País é este?), na poesia, ou, na prosa, Erico Veríssimo (Incidente em Antares, O tempo e o vento) e Rubem Fonseca, este último em muitos dos contos e especialmente em A grande arte, em que a crítica prestou pouca atenção ao segmento que trata dos trambiques da Aquiles Financeira nas misteriosas tramas.


Ao contrário do que faz a crônica esportiva na mídia, que lança um novo Pelé por semestre, aqueles que substituíram os comentários dos antigos rodapés agora têm medo de elogiar o autor que lança um bom livro.


Também nesse aspecto a mídia se compraz em seguir fielmente o ideário torto que Nelson Rodrigues exemplificou com a idéia do brasileiro como um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem.


Atenção indispensável


Temerosos de não parecerem críticos o suficiente, muitos de nossos editores e comentaristas de seções dedicadas a autores e livros empenham-se em somente referir livros insossos ou descartáveis, perdendo oportunidades preciosas de uma séria discussão da vida nacional a partir de autores e livros que levam muito a sério o seu ofício. Este é o caso de Wanderley Guilherme dos Santos.


Infelizmente este não é o caso de nossos grandes jornais, por exemplo, imersos em denuncismos marotos. Depois se queixam de que há uma crise de leitores. Pode até ser que sim, mas por quê? Ler o quê? Nas páginas internas não são examinadas as manchetes. Ora, a mídia não pode ser apenas trombone ou arauto.


Quando os ensaios vêm à mídia, o usual é que as verdadeiras causas de males seculares da sociedade brasileira sejam mais uma vez explicadas pelos modelos clássicos que a sociologia tropical consagrou, principalmente nas universidades. Todos dizem algo segundo alguém, poucos são os que dizem segundo eles mesmos, mais atentos a acertar a bibliografia consultada do que a criar a partir dela, como fizeram aqueles que agora citam.


Se for dado ao signatário o direito de uma proposta específica à mídia, que se diga: é indispensável maior atenção a Wanderley Guilherme dos Santos. Ele tem o que dizer e escrever. E, como poucos, sabe como fazê-lo.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br