Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma escola sem paredes

Desde sua fundação, há dez anos, o canal Futura vem se afirmando como autêntica ‘escola sem paredes’, desempenhando função pedagógica nunca imaginada pelos pioneiros da nossa televisão educativa, como Gilson Amado, Alfredina de Paiva e Souza ou Marilia Antunes Alves, além de protagonizar uma missão cultural, bem na linha do que desejavam Roquette Pinto (para o rádio) ou Humberto Mauro (para o cinema).

O fator diferencial que engrandece a iniciativa da Fundação Roberto Marinho é a gestão privada da emissora, contando com a parceria de grandes empresas comerciais e industriais ou de consórcios do ramo terciário. Até então, os empreendimentos semelhantes ficaram no âmbito estatal, o que é não é suficiente para explicar seu relativo insucesso ou retumbante fracasso, tendo em vista o êxito de projetos da mesma natureza em outros países e mesmo a eficácia de empresas estatais em ramos distintos da economia nacional.

‘Grupo inovador’

Mas existe uma circunstância que, a meu juízo, explica a singularidade do Futura no panorama brasileiro. Trata-se da postura de humildade intelectual adotada pelos seus gestores que, ao invés de bancarem atitudes de donos da verdade ou monopolistas do saber, preferiram apelar à investigação científica como instrumento para a tomada de decisões. Tem sido constante, nesse primeiro decênio de atividades, a busca de consultoria especializada em conteúdos ou a convocação de agências competentes em análise de audiência ou de equipes treinadas para diagnosticar as aspirações dos telespectadores potenciais.

Desta maneira, seus produtores criam programas ou lapidam formatos em sintonia com as demandas dos segmentos sociais que pretendem atingir. Em outras palavras, evitam ruídos na interlocução cognitiva, reduzem as incertezas na fase de planejamento estratégico ou corrigem distorções quando constatam bloqueios perceptivos e assimilação equivocada de conteúdos específicos.

Foi justamente esse cultivo da pesquisa como artefato inerente às rotinas de produção que motivou o júri constituído pela Intercom a tomar a decisão de qualificar o canal Futura como ‘grupo inovador’, conferindo-lhe o Prêmio Luiz Beltrão de Ciências da Comunicação 2007. Essa distinção acadêmica vinha sendo atribuída, desde a gênese do prêmio, a entidades acadêmicas, o que enaltece o perfil do mais recente ganhador.

Ousadias midiáticas

Como presidente do colegiado que atribuiu esse merecido reconhecimento, aliás confirmado por outros certames competitivos, no país e no exterior, não posso deixar de fazer uma confissão pública. Ou seja, proclamar o mérito principal dessa televisão híbrida mantida pelas Organizações Globo: a opção pela comunicação, naquela acepção da bilateralidade teleológica defendida por Antonio Pasquali. Navegando parcimoniosamente entre os oceanos da educação e do entretenimento, entre os mares bravios da cultura e da cidadania ou entre os rios caudalosos da ciência e do senso comum, o canal Futura perfila aquele ideal de educação democrática acalentado pelos pioneiros da Escola Nova, como foi o caso de Anísio Teixeira, sintomaticamente o primeiro intelectual brasileiro a reconhecer a validade das teses iconoclastas de Marshall McLuhan.

Quando extrapola seu cotidiano de canal de difusão massiva, enveredando por ações interativas em comunidades marginais, o Futura desenvolve práticas no estilo dos ‘círculos de cultura’ idealizados por Paulo Freire, exercitando aquele princípio basilar da educação dialógica, ou seja, conduzindo os seus produtores-educadores a se educarem previamente com os seus educandos-telespectadores para melhor educá-los enquanto cidadãos do mundo. Mais do que isso, propicia oportunidades de educação dialógica quando recruta grupos comunitários para participar de laboratórios de produção nos estúdios da própria emissora, convertendo-os em produtores de mensagens codificadas segundo seus próprios referentes. O circuito da criatividade se completa quando alguns desses produtos são veiculados em rede aberta, acessível ao consumo massivo. São ousadias midiáticas raramente praticadas em outras emissoras, congêneres ou díspares.

Antídoto contra o ceticismo

Convém ainda mencionar a natureza plural dessa emissora, cuja grade de programação inclui todos os segmentos potenciais, dimensionados por gênero, faixa etária, estrato social e nível de instrução. O amálgama que cimenta essa polissemia no âmbito dos conteúdos é sem dúvida a fluidez cultural que permite o trânsito seguro entre massivo e popular, sem recusar ou desdenhar o erudito. Outro ingrediente discursivo é a convivência dialética entre nacional e transnacional, o que valoriza tremendamente sua política de fortalecimento da cultura brasileira.

Tudo isso converge para endossar a tese amplamente defendida pelos autores que participam da obra coletiva objeto deste comentário: embora gerido pela iniciativa privada, o canal Futura é um modelo singular de televisão pública, cuja essência pode ser emulada por outras organizações em diversos quadrantes da geografia nacional. Se não representa uma panacéia, pelo menos serve como antídoto para neutralizar o vírus de ceticismo nacional que pode se alastrar em epidemia niilista, conformista ou derrotista.

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Professor Emérito da Universidade de São Paulo, onde fundou o Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes. Presidente de honra da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom, dirige atualmente a cátedra Unesco/Umesp de Comunicação. Autor de inúmeros livros, dos quais o mais recente é Mídia e Cultura Popular (São Paulo, Paulus, 2008)