Sábado, 8 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

A imprensa sabe que a luta pela reforma agrária influenciará as eleições de 2026?

(Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Eu me lembro. Na madrugada de uma terça-feira, 29 de outubro de 1985, encontrei o comboio de muitos caminhões e ônibus na BR-386, em Sarandi, um município agroindustrial no norte do Rio Grande do Sul. Os veículos transportavam 1,5 mil famílias de agricultores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Seu destino era a Fazenda Annoni, uma gleba de 9,3 mil hectares à beira de uma estrada na época de chão batido que liga os municípios de Passo Fundo e Ronda Alta. Claro, o encontro não fora casual. Dias antes havia recebido um recado de uma fonte, informando o horário e o local onde deveria esperar o comboio. Eu era repórter especial, e como tal tinha liberdade para andar pelas estradas em busca de histórias inéditas. A informação sobre o comboio era sigilosa. Nem o meu editor poderia saber. Disse que estava indo para Santo Ângelo, no oeste do território gaúcho, fazer uma reportagem sobre “a hora do recado no rádio”. No meio da viagem avisei o repórter fotográfico e o motorista que os planos tinham mudado e fomos para um hotel, nos arredores do local do encontro, descansar. Documentamos toda a ocupação da Annoni e a matéria virou manchete na imprensa nacional.

Quatro décadas se passaram desde aquela madrugada. Na última semana de setembro, recebi um convite para assistir, nos dias 24 e 25 de outubro, à solenidade sobre ocupação da Annoni. Assisti e sai de lá com uma certeza: a atual polarização política no Brasil nasceu antes de 1964, persistiu até os dias atuais e vai influenciar as eleições de 2026. Vamos conversar sobre o assunto. No início da década de 80, o regime militar (1964 – 1985) começava a dar os primeiros sinais de decadência. O que possibilitou o renascimento dos movimentos sociais, que haviam sido congelados pela ditadura. Entre todos os movimentos, o inimigo número um dos golpistas era a reforma agrária. O renascimento da luta pela terra aconteceu no Rio Grande do Sul. Na década de 60, o ex-governador Leonel Brizola (1922 – 2004), do antigo PTB, incentivou o surgimento do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). Em 1962, os seguidores do Master montaram um acampamento no Capão da Cascavel, na época um lugarejo entre as cidades de Nonoai e Sarandi, no norte do estado. Nos anos 80, entrevistei um dos líderes do acampamento, João Machado dos Santos, conhecido como João Sem Terra (1924 – 2010). Uma das lideranças do Master, ligado a Brizola, João Sem Terra foi perseguido pelo regime militar e viveu na clandestinidade por três décadas. Escrevi a história no livro A Saga do João Sem Terra. Os golpistas queriam a cabeça de Brizola porque além de ser um agitador das lutas sociais era também cunhado do presidente deposto, o gaúcho João Goulart (1918 – 1976), o Jango, também do antigo PTB. Após o golpe, Jango e Brizola se refugiaram no Uruguai.

Foi justamente na região do Capão da Cascavel onde o Master realizou o acampamento de 1962 que a luta pela reforma agrária renasceu nos anos 80 e se espalhou por todo o Brasil. Foi ali que aconteceu o Acampamento dos Sem Terra da Encruzilhada Natalino (1980 – 1982), em um barranco à beira da estrada entre Ronda Alta e Passo Fundo – há muitos livros e pesquisas sobre o assunto disponíveis na internet. Foi na Natalino que nasceu a ideia de criar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Alguns anos depois da Natalino, a uns poucos quilômetros ao norte dali, na madrugada de 29 de outubro de 1985, as 1,5 mil famílias de agricultores ligadas ao MST ocuparam a Fazenda Annoni. Nas conversas com os assentados da Annoni recordei da origem da maioria dos jovens que ocuparam a área. Eram filhos de pequenos agricultores que, na década de 80, tinham uma família com muitos filhos e praticavam agricultura de subsistência, plantavam para comer. Para sobreviver, os filhos mais velhos viravam trabalhadores rurais. Nos anos 80, aconteceram dois fatos que mudaram a vida destas famílias para sempre: a modernização da agricultura, que substituiu a mão de obra dos trabalhadores rurais por máquinas e produtos químicos, e o surgimento de novos mercados internacionais para os sapatos brasileiros, o que causou uma enorme expansão da indústria calçadista do Vale dos Sinos. Precisando cada vez mais de mão de obra, as fábricas de sapato foram buscá-la nas regiões de pequenas propriedades, onde os filhos dos agricultores tinham perdido os seus empregos para a modernização das lavouras. Semanalmente, chegavam às cidades do Vale do Sinos dezenas de ônibus trazendo jovens para trabalhar nas fábricas de calçados. E foi justamente na década de 80 que o MST começou a se articular e colocar como opção para as famílias de agricultores pobres participar da luta pela reforma agrária. Na Annoni, escutei dezenas de histórias de jovens que tinham migrado para o Vale do Sinos e acabaram voltando para casa doentes devido ao ambiente insalubre das fábricas. Uma parte importante da insalubridade era provocada pelo cheiro da cola usada na fabricação do sapato, que causava sérios danos à saúde dos trabalhadores.

Aluta pela terra conseguiu fazer andar a reforma agrária no Brasil. Começou no governo do presidente José Sarney (MDB), 95 anos (idade atual). Em 1985, Sarney lançou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que previa assentar até o fim do seu governo 1,4 milhão de famílias. O resultado foi modesto: apenas 90 mil foram assentadas. Nos dias atuais, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), existem 9.450 assentamentos no Brasil. Fato é o seguinte. Na lide de repórter, viajo muito pelos sertões do Brasil e por países vizinhos em busca de histórias para contar. Afirmo que a realidade do meio rural de 2025 é muito diferente à dos anos 80. O país tornou-se uma potência agrícola, onde é possível um pequeno proprietário rural ganhar o suficiente para dar uma vida confortável a sua família. A luta pela terra não terminou. Mas mudou o seu perfil. Atualmente, os assentados estão focados em produzir comida saudável para um mercado cada vez mais interessado na qualidade dos alimentos. O agronegócio brasileiro é uma soma de esforços de pequenos, médios e grandes produtores e empresas rurais. Também alerto que as organizações de extrema direita, aliadas aos especuladores de mercados ilegais que financiaram o golpe militar de 1964, continuam ativas e tentando voltar ao poder. Recentemente, financiaram a tentativa de golpe de estado do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores. Falharam. Mas não desistiram de chegar ao poder de maneira ilegal. Os nomes de seus operadores estão todos lá nas 884 páginas da investigação da Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de golpe do ex-presidente. Historicamente, a grande imprensa do Brasil tem tratado a luta pela terra como um caso de polícia. Em outras partes do mundo, a reforma agrária foi fundamental para o desenvolvimento dos países. Por que seria diferente no Brasil? Antes de fechar a nossa conversa. Lembram quando disse que precisei inventar que iria fazer uma reportagem sobre “a hora do recado no rádio” quando na verdade fui ao encontro do comboio dos sem-terra que ocuparam a Annoni? Pois os editores exigiram que eu não voltasse para a redação sem fazer a matéria. Antigamente, muito antes dos celulares e quando até os telefones fixos eram escassos, os agricultores mandavam recados pelas emissoras de rádio para seus familiares em outras localidades. Fiz a reportagem e ficou bem legal.

Publicado originalmente em “Histórias Mal Contadas”

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.