Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

As propostas de Lula aos brasileiros: um insólito desafio presidencial

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Luiz Inácio Lula da Silva novamente assumiu as insígnias presidenciais no Palácio do Planalto, pela terceira vez, no dia 01 de janeiro de 2023. Dessa vez, no entanto, o insólito estava presente na cerimônia de posse. Curiosamente, algo muito peculiar e próprio de nossa época. Enfim, o rito de alternância presidencial de 2023, com a extrema-direita, não teve muita coisa a ver com aquele de 20 anos atrás, em 2003, com a centro-direita.  

O insólito se impôs em Brasília, a capital do país, desde o rito de descida da avenida dos ministérios no Rolls Royce, modelo Silver Wraith 1950. Este é o carro usado pelos presidentes no rito de posse, desde a sua compra pelo presidente Getúlio Vargas em 1952 [1].  Todo o aparato oficial de segurança e alguns meios de comunicação teriam desaconselhado o uso desse veículo aberto e não blindado nesta cerimônia, uma vez que os riscos inerentes às tensões políticas pareciam bastante elevados. Lula preferiu ignorar o conselho e manter a tradição. Ele quis, como em 2003 e em 2006, utilizar esse automóvel antigo, tradicional e símbolo da República brasileira. Por via das dúvidas, segundo a imprensa local, o carro foi inspecionado tanto por seguranças quanto por um cão farejador antes de seu uso.  

Mas nem todos os símbolos e gestos das posses anteriores foram mantidos. Lula foi recebido, segundo manda o ritual de tomada de posse, na sede do Parlamento brasileiro. Reunidos no Congresso, deputados e senadores receberam o novo chefe de Estado e o reconheceram como tal. O documento que oficializa a posse deveria ter sido assinado por Lula com uma caneta pertencente ao Poder Legislativo. Este protocolo foi quebrado. Ele rubricou o documento com uma outra caneta, que lhe foi dada de presente por um eleitor e militante durante sua primeira campanha eleitoral à presidência, em 1989. Guardada entre seus pertences, a caneta foi encontrada recentemente. Ao usá-la nessa circunstância, Lula cumpre a promessa que havia feito em 1989 enquanto assinava, com essa caneta, o ato protocolar de ascensão à Presidência. Essa promessa não cumprida no ato de sua primeira posse em 2003 foi finalmente realizada em 01 de janeiro de 2023. 

O destaque desta transição do poder presidencial foi a ausência do presidente que deixava o cargo. Jair Bolsonaro, rompendo com a tradição democrática brasileira, pegou um avião para os Estados Unidos, mais especificamente para a Flórida, em 30 de dezembro de 2022. O general Hamilton Mourão, vice-presidente, embora reconhecendo a legitimidade da alternância, recusou-se a substituir Jair Bolsonaro no ato de transmissão da faixa presidencial. As circunstâncias permitiram então inovar o rito. A faixa presidencial foi entregue ao presidente por uma catadora de materiais recicláveis, Aline Souza, assistida por uma liderança indígena, Raoni Metuktire, por uma criança negra, Francisco Carlos do Nascimento e Silva, por um professor Murilo de Quadros Jesus, por uma cozinheira Jucimara Fausto dos Santos, por um metalúrgico Wesley Viesba Rodrigues Rocha, por um artesão Flávio Pereira, e por um influencer em Inclusão Social, Ivan Vitor Dantas Pereira. Também participou do rito a Resistência, a vira-lata que foi adotada como mascote no acampamento instalado pelos amigos de Lula em frente ao presídio em Curitiba, onde ele ficou detido durante 580 dias.   

Essa escolha insólita do novo presidente respondia a uma intenção, a de lembrar e de compreender os atuais desafios do cargo e do país. O Lula de 2023 não era o mesmo de 2003. O Brasil de hoje não se assemelha ao de 2003. Em 2023, o Brasil é um país em ruínas, disse Lula aos deputados e senadores. O ódio e a irresponsabilidade devastaram a democracia, a sociedade, a economia e os brasileiros. A esse seu discurso de posse aos deputados e senadores seguiu-se um outro, dessa vez proferido ao povo brasileiro. 

Diante dos representantes eleitos no Congresso, de modo mais formal e também mais incisivo, Lula insistiu na necessidade de se reconstruir o país destruído por seu antecessor, de restaurar uma democracia seriamente atacada. O Estado, para Lula, deve reencontrar sua função verdadeira respeitando os direitos e as liberdades, bem como retomando a sua capacidade de organizar racionalmente o país. É preciso, sem olhar pelo retrovisor, virar a página militar que acaba de se terminar e fortalecer a independência da Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral. É preciso recuperar o senso de responsabilidade coletiva, aprender com erros do abandono da população em tempos de pandemia e aplicar a legislação de proteção ao meio ambiente e à floresta amazônica. Devemos prestar ajuda a quem empreende, em particular aos médios e aos pequenos empreendedores. É preciso fazer todas essas coisas que permitirão ao Brasil recuperar sua dignidade e sua imagem internacional e junto aos investidores estrangeiros, em especial a China, aos Estados Unidos e à União Europeia. 

Diante de trinta mil simpatizantes que vieram ouvi-lo, apesar do sol e calor avassaladores de Brasília, do Parlamento à sede da Presidência, ele recuperou seu ‘sotaque’ de tribuno do povo. Com emoção e lágrimas, evocou o retorno da miséria, da fome e da subnutrição no Brasil, afirmando que as ações voltadas para fazer novamente desse país uma democracia social estarão no topo de sua agenda, como prioridade o restabelecimento das ações de apoio do Estado aos mais pobres, como também reinjetando dinheiro nas infraestruturas coletivas cujas alocações foram corroídas, como na área da saúde, da ciência e tecnologia, da educação, da segurança pública e dos transportes. 

Lula passou imediatamente do discurso à ação. Treze decretos foram assinados, nas primeiras horas de sua presidência, e alguns suspensos, tais como os decretos assinados por Jair Bolsonaro, que facilitavam a compra de armas pelos cidadãos. Ele também buscou meios para garantir, em 2023, o bônus da assistência social concedido por Jair Bolsonaro nos dois últimos meses da campanha presidencial. Um terceiro pacote visa suspender a privatização de grandes empresas: bancos públicos, o BNDES, a companhia petrolífera Petrobrás, os Correios, a EBC (Empresa Pública de Comunicação). Um último grupo de decisões diz respeito à preservação do meio ambiente, com a reativação do Fundo da Amazônia, a supressão das facilidades concedidas aos exploradores de ouro (garimpeiros), atores da poluição por mercúrio da Amazônia.  

Ao mesmo tempo, cumprimentou as 120 delegações estrangeiras que, por sua presença, validaram a “volta do Brasil ao mundo” tal como anunciada por Lula, quando já estava eleito, mas não tinha ainda assumido a presidência, durante a COP27. Os chefes de Estado e de Governo foram recebidos pessoalmente, cada um deles: os presidentes alemão, angolano, argentino, boliviano, cabo-verdiano, chileno, colombiano, equatoriano, espanhol, timorense, guineense (Bissau), hondurenho, maliano, paraguaio, português, suriname, uruguaio, vice-presidente chinês, vice-presidente cubano, o primeiro-ministro peruano, o presidente do parlamento venezuelano, representando Nicolás Maduro, que foi interditado de entrar no Brasil, por medida do ex-presidente, até a data de 29 de dezembro de 2022, o que inviabilizou sua viagem. Também é de se notar a presença simultânea de representantes russos e ucranianos.

Uma parte significativa do caminho foi percorrida entre 01 e 02 de janeiro de 2023. Ainda há muito a percorrer e também muitos buracos nessa rota. A dívida social é para ontem, exige pressa, além de representar um desafio de grande amplitude. Isso vai exigir muito dinheiro em muito curto prazo, com urgência, e por isso é tão urgente também realizar uma reforma fiscal, em uma conjuntura econômica e financeira que não guarda nenhuma similaridade com aquela dos anos 2003 a 2011. Os focos de resistência são inúmeros e resilientes. Eles são de ordem societal, em especial, provenientes do setor agroexportador e da maioria dos fiéis do protestantismo pentecostal. Eles são também institucionais. O Brasil é uma federação e conta com muitos governadores, que atuam no executivo dos Estados e que não são amigos de Lula. O novo responsável pelo estado de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, do estado mais rico e mais populoso, é um ex-ministro de Jair Bolsonaro, e lembrou seu compromisso militante com seu presidente em seu discurso de posse. Outro aspecto ainda mais preocupante: o parlamento é imprevisível. A extrema direita está mais forte do que em 2019, apesar de minoritária. As esquerdas são também minoritárias, embora estejam melhor representadas. As chaves de qualquer decisão estão no emaranhado intermediário de partidos e seus representantes, o conhecido “Centrão”. Neste “Centrão” não vigora pautas partidárias ideológicas. O que em geral se observa é que estão à venda ou disponíveis para aluguel. A esquerda está fragmentada em grupos concorrentes. O papel da atual esposa do presidente, Rosângela ou “Janja” da Silva, ultrapassa manifestamente o de “primeira-dama” tendo em vista a cerimônia de 01 de janeiro de 2023. Um prenúncio de outras dificuldades. 

Notas

Texto publicado originalmente em francês, em 9 de Janeiro de 2023, no site Nouveaux Espaces Latinos, seção Actualités, Paris/França, com o título original, “Les vœux de Lula aux Brésiliens, un insolite défi présidentiel”. Disponível em https://www.espaces-latinos.org/archives/109754.Tradução de Edson Santos de Lima e Luzmara Curcino.

[1] Getúlio Vargas o utilizou pela primeira vez na festa do Dia do Trabalhador, em 01 de maio de 1953.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.