Thursday, 16 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Desinformando o público: o câncer e o sutiã

No ano passado, o jornal O Globo lançou uma revista de variedades em sua edição dominical. Fato raro no jornalismo brasileiro, a revista mantém duas seções regulares sobre ciência (‘Ciência e Vida’, com um artigo longo, e ‘Eureka’, com notas curtas), merecendo um crédito positivo por isso.

Mas a matéria de capa da edição de 20 de fevereiro revelou que a qualidade do jornalismo científico desta revista não é tão alta quanto parecia. Com o título ‘Sutiã eleva o risco de câncer?’, a reportagem apresenta uma suposta polêmica causada por um estudo realizado por uma dupla de pesquisadores americanos, Sydney Ross Singer e sua mulher, Soma Grismaijer. Segundo eles, o uso do sutiã elevaria significativamente o risco de uma mulher desenvolver câncer de mama e a incidência de câncer de mama em mulheres que não usam sutiã seria tão baixa quanto em homens. Razão suficiente para que todas as mulheres queimem seus sutiãs… se isso não fosse um clássico exemplo de pseudociência, ou seja, ciência de mentirinha.

Em primeiro lugar, não há polêmica alguma. Lendo a matéria, você terá a impressão de que esta é uma teoria recente, sendo ativamente debatida. Não é. A teoria de Singer, descrita no livro Dressed to Kill: the link between breast cancer and bras, foi lançada em 1995 e não teve absolutamente nenhuma repercussão na comunidade médica. Uma simples pesquisa no banco de dados Medline (http://medlineplus.gov/), a principal referência para estudos médicos, não revela nenhum estudo abordando este assunto, nem mesmo de autoria destes supostos pesquisadores. Isto porque Singer nunca publicou seu ‘revolucionário’ estudo em nenhuma revista científica, onde ele poderia ser analisado e criticado por outros cientistas. Como é comum entre pseudocientistas, Singer publicou suas teorias fantásticas (existem outras) apenas em livros destinados ao público leigo, onde a falta de conhecimentos específicos sobre os assuntos em questão é garantia de destaque e retorno financeiro. Prova de que essa estratégia funciona foi a atenção dada a este mito pelos jornalistas do Globo, em detrimento da multidão de estudos científicos sérios sobre o assunto.

Em dado ponto da matéria, é dito que Singer e sua esposa fazem campanhas nos EUA e no Canadá incentivando o abandono do sutiã, seguido pela revelação de que o Canadá conseguiu reduzir em 23% a incidência de câncer de mama desde 1986. Desta forma, o texto deixa a clara impressão de que o sucesso canadense tem algo a ver com a idéia de Singer. Mais uma vez, nem perto da verdade. Se os autores do texto tivessem tido o trabalho de entrar no site da Sociedade Canadense do Câncer (www.cancer.ca), eles teriam lido o seguinte, na seção de mitos sobre o câncer: ‘Neste momento, não existe nenhuma evidência científica confiável que mostre uma ligação entre o uso do sutiã e o desenvolvimento de câncer de mama. Se estudos corretamente planejados e revisados forem realizados sobre este assunto, a Sociedade Canadense do Câncer revisará a pesquisa e seus resultados.’ Ou seja, talvez algum dia uma pesquisa realmente científica acabe descobrindo uma relação entre sutiãs e o câncer de mama, mas por enquanto isto é apenas uma jogada de marketing para ajudar Singer e a mulher a vender livros.

Não durma na horizontal

Mas espere um pouco… a matéria diz que Singer é Ph.D. em Bioquímica e Antropologia, com especialização em ‘medicina humana’ (existe outra medicina?). Com certeza, isto é um currículo respeitável… ou seria, se fosse verdade. De acordo com o próprio Singer, que informa sua biografia no site do ‘Instituto para o Estudo de Doenças Culturogênicas’ [o ‘centro de pesquisas’ fundado por Singer e a mulher (www.selfstudycenter.org)], podemos ler que ele realmente estudou dois anos no programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade de Duke e mais dois no programa de Bioquímica, mas recebeu apenas o diploma de mestrado. Depois disso, ele estudou um ano no programa de ‘medical humanities’ na Universidade do Texas – o que pode ser a origem do estranho termo ‘medicina humana’ encontrado no texto – e recebeu mais dois anos de treinamento médico não especificado. Ou seja, Singer realmente tem alguma formação científica, mas não tão impressionante quanto o texto indica. E, ao contrário do que a descrição apresentada pelos jornalistas do Globo pode sugerir, ele não tem nenhuma associação com essas universidades. A única instituição ‘acadêmica’ com a qual Singer está associado é o seu próprio instituto, cuja equipe de pesquisadores se limita a Singer e esposa.

Independente do currículo de Singer, o mérito de suas teorias deve ser analisado imparcialmente. O problema é que para que outros cientistas possam fazer isso ele deveria apresentá-las, junto com os dados a partir dos quais tira suas conclusões, em publicações ou conferências científicas. Já que isso não acontece, devemos todos acreditar na palavra de Singer (como fizeram os jornalistas responsáveis pelo texto)? Será que Singer pelo menos tem alguma pesquisa coerente que lhe dê algum crédito? Bem, julgue você mesmo.

No site de seu instituto, Singer defende, por exemplo, que o hábito de dormir na horizontal causa edema cerebral crônico, podendo levar a enxaquecas, glaucoma e apnéia do sono. Outras condições supostamente evitáveis por simples mudanças de hábito incluem, segundo Singer, o mal de Alzheimer, impotência, diverticulite, pedras nos rins, infecções urinárias, síndrome pré-menstrual, derrames, aumento do tamanho da próstata, os inconvenientes da menopausa, displasia cervical e Sids (Sudden Infant Death Syndrome – morte súbita infantil). Mais uma vez, todo este suposto e revolucionário conhecimento não foi digno de um único artigo científico.

Apelação gratuita

Aliás, a temática de mercado está bastante presente no site. Se você não estiver satisfeito em gastar seu dinheiro comprando os quatro livros de Singer, ele lhe dá a opção de fazer doações para ajudar a financiar seus estudos. Mais uma vez, vemos um comportamento típico de pseudocientistas – cientistas buscam recursos em instituições de fomento que têm o inconveniente hábito de avaliar rigorosamente as pesquisas propostas antes de financiá-las, bem como os resultados obtidos pelos estudos contemplados. Mesmo que você opte por doar 10 mil dólares à instituição de Singer (esta é uma das opções disponíveis, que o qualificará como ‘santo’…), não espere receber um relatório técnico com os resultados da pesquisa (também não adianta visitá-la – a instituição não tem endereço, apenas uma caixa postal). Ainda mais que o ‘Self-Study Center’ (outro nome da instituição de Singer) é ‘projetado para ajudar o doador a realizar sua própria pesquisa pessoal, em si mesmo. Estes são chamados Self Studies. Eles são seguros e sem custos, e seus resultados são auto-evidentes e dramáticos’. Mas se esses estudos não têm custos…

O pior de tudo é que esta apelação gratuita a um mito como forma de chamar a atenção do leitor era totalmente desnecessária. Quando não está espalhando boatos sem fundamento, a matéria da Revista do Globo traz boas informações sobre o câncer de mama, um assunto importante o suficiente para não precisar deste tipo de artifício. Mais grave ainda, este é um assunto em que a informação correta é fundamental para a prevenção e diagnóstico precoce. Numa sociedade em que a maioria tem acesso limitado à informação, a última coisa de que precisamos é que um dos principais jornais do país espalhe a desinformação.

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Engenheiro químico, com mestrado em Química, ambos pelo Instituto Militar de Engenharia (IME)