Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Já ouviu falar em guerras climáticas?

Com exceção do destaque dado pela revista Carta Capital, foi solenemente ignorada pela imprensa brasileira a matéria do semanário inglês The Guardian, segundo a qual um relatório secreto do Pentágono alertou o presidente Bush para a possibilidade de que os Estados Unidos venham a enfrentar terríveis ‘guerras climáticas’ dentro de 50 anos. O relatório, entregue pelo Pentágono também à revista americana Fortune, em janeiro passado, diz haver uma crescente evidência científica de que uma mudança climática mais rápida do que se havia imaginado implica que os Estados Unidos tenham de começar a planejar como repelir levas de refugiados famintos, procedentes do México, América do Sul e Caribe.

A questão das alterações climática não é nova. O fenômeno costuma ser associado a mudanças lentas e graduais em períodos de mais de 50 ou 100 anos. O problema de agora é que algum material encontrado em núcleos gelados do Ártico e de outras partes do mundo demonstra que o clima de uma região pode mudar dramaticamente em apenas alguns anos, a exemplo da transformação abrupta, ocorrida há 1.300 anos, que fez a Europa mergulhar na Era do Gelo. Outra alteração menos dramática foi a ‘Pequena Era do Gelo’, um período de invernos severos, tempestades violentas e seca entre 1300 e 1850.

Segundo Raymond Schmitt, um cientista sênior do Instituto Oceanográfico Woods Hole, no estado americano de Massachusetts, a causa dessas terríveis alterações é uma mudança na enorme corrente do Oceano Atlântico que flui do trópico norte para o Ártico, onde se refresca, mergulha até o fundo e flui novamente para o sul. A corrente traz continuamente água aquecida, portanto temperaturas mais quentes, para o leste dos Estados Unidos e o norte da Europa, o que explica por que a Grã-Bretanha, na mesma latitude que o Labrador no costa leste do Canadá, é relativamente temperada. O que acontece se a corrente retardar? Menos água tépida para as regiões do norte, que esfriarão. O problema é que, com o aquecimento global, o gelo das regiões árticas está se derretendo e colocando muito mais água fria no Atlântico Norte, o que poderia provocar o retardamento da corrente. O paradoxo, de acordo com Smith, é que temperaturas globais mais altas poderiam trazer frio intenso para o norte da Europa.

A questão posta pelo Pentágono a cientistas (não identificados) diz respeito às conseqüências de uma possível fraqueza da corrente em 2010. A resposta (assustadora) é que, no prazo de uma década, as temperaturas cairiam acentuadamente na Europa e no leste dos Estados Unidos; secas extensas afetariam as principais regiões agrícolas e, com a redução de cerca de 30% da precipitação anual de chuva, o clima do norte europeu se tornaria mais ou menos igual ao da Sibéria.

Em razão das violentas tempestades, inundações e secas, nada menos de 400 milhões de pessoas seriam obrigadas a migrar das regiões tornadas inabitáveis. E em face de tudo isto, a política imperial americana transparece no relatório do Pentágono, que aconselha o governo a estudar a tomada de medidas para repelir a migração de massa.

Problema central

Na realidade, ninguém sabe ao certo se a corrente está se retardando, nem há possibilidades razoáveis de previsão para um fenômeno tão complexo, como observa o próprio Smith. Fato mesmo é que se detectam alterações significativas nos oceanos, tais como maior e menor presença de salinidade, maior evaporação nos oceanos meridionais e mais derretimento de gelo nos pólos, em virtude do aquecimento global.

As alterações climáticas daí decorrentes já provocam secas, desertificações e escassez de água em muitos países, criando refugiados ambientais oriundos da África e do Haiti. O Brasil não está a salvo: um estudo de 163 espécies de árvores na região do cerrado (que cobre um quinto do país) mostrou que pelo menos 70 delas seriam extintas. Muitas das plantas e árvores típicas do cerrado não existem em nenhum outro lugar do mundo.

Não faltará quem veja em informações dessa ordem matéria para a manifestação da pura e simples paranóia global. E muito provavelmente terá muita razão para isto. Afinal de contas, no que diz respeito às previsões, os próprios cientistas parecem meros especuladores, senão uma espécie de pitonisas da incerteza.

Por outro lado, entretanto, registram-se indícios alarmantes de predação ecológica e de irresponsabilização concomitante por parte da potência que, justamente, se preocupa com medidas defensivas. O efeito-estufa, acelerado pela emissão desenfreada de gases por parte dos países mais ricos, está no centro do problema.

Há muito tempo, a agressão ao meio ambiente deixou de ser um problema meramente técnico, limitado à esfera da consciência dos ecologistas. O problema é político e global. Bush não é o único a praticar e a pregar aberrações sobre o assunto. E nós, cidadãos de um país que detém a maior parte da biomassa (água e vegetação) mundial, continuamos não dispondo de um jornalismo ambiental na medida da gravidade da questão.