Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Jornalismo cego para o mundo real

‘Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo’ (Citação batida, mas muito atual, de George Santayana, A vida da razão – 1905, volume I, capítulo XII)

Contamos com recursos de comunicação extraordinários em relação aos que a humanidade dispunha ao enfrentar a Era das Trevas, como chamavam a Idade Média. Nem livros eram de fácil acesso, e saber ler era raridade. Daí a importância do Renascimento e do iluminismo – a coragem daquelas pessoas de enfrentar um Estado poderoso e uma igreja que ditava a ferro e fogo suas verdades para trazer a razão a um mundo inculto.

Ao abalizarmos a situação atual, vemos que estamos no mesmo pé de desenvolvimento intelectual e de difusão de informação correta daquela época. Por exemplo, a guerra colonialista e de conquista empreendida pela força de invasão americana, na qual os agressores são apresentados como libertários. Os verdadeiros patriotas, como os americanos que enfrentaram a Inglaterra ou como a resistência francesa ou polonesa que enfrentaram as forças de invasão nazistas, são chamados de insurgentes. Na imprensa são tachados de terroristas aqueles que não aceitam perder liberdade, autodeterminação e riquezas.

O jornalismo livre não foi suficiente para manter informadas adequadamente as pessoas para que não sejam manipuladas pelo governo americano. Na Alemanha nazista estes fatos foram atribuídos à falta de liberdade de imprensa. E agora?

Na divulgação científica, vemos que coisas abandonadas no passado voltam com a mesma validade, chanceladas por uma imprensa incapaz de achar o mundo real. Assim como retorna a participação da imprensa na tentativa da reunião da religião ao poder do Estado, da guerra santa para impor credos.

Se em política, economia e questões de Estado compreendemos que existam por trás interesses escusos, em divulgação científica isso é muito menos plausível. Vemos a volta da alquimia, do criacionismo, da bruxaria, da astrologia (que sempre teve amparo jornalístico), de curandeiros, sacrifícios humanos, charlatões. A mente das pessoas foi preparada pela mídia do espetáculo e da baixa qualidade de avaliação para que este resultado pudesse ser alcançado. O que demonstra que uma imprensa despreparada não ajuda muito ao humanismo, mas ajuda na difusão da ignorância. O jornalista (e senador) Artur da Távola tentou regulamentar a astrologia como profissão no Brasil. Exemplo da base nada boa que a faculdade de Jornalismo pode fazer pela cidadania.

Empelicado vs. questionador

A CNN noticia que nos Estados Unidos aumenta a procura por tratamentos alternativos. Seria uma atitude sábia se isto fosse feito guiado pela demonstração de eficácia (Que produz o efeito desejado; que dá bom resultado). Mas partir para algo que apenas possa funcionar por acaso, ou ainda, a ciência já demonstrou que não pode, não é uma atitude sabia e prudente. E principalmente usar os filhos para testar estas práticas que dispensam o conhecimento científico, para ver se funcionam afinal.

Quando vemos o país rebaixando os critérios para entrar na universidade, pois o ensino público não capacita as pessoas para isto, vemos que estas opções da maioria não passam pelo crivo da razão, mas da má formação apenas. Mas não podemos considerar que Burrice seja talento e que Ignorância seja virtude. Jornalistas que acham que quanto mais despreparada é a pessoa, mais legítimo é o seu ‘depoimento’ daquilo que não sabe. Que não saber é, enfim, uma coisa boa. É lastimável que pessoas assim detenham o monopólio da mídia para elevar a escuridão e a ignorância como orgulhoso paradigma moderno.

Não é de estranhar que tanta bobagem renasceu neste período após a regulamentação da imprensa e sua dominação total e irrevogável do mercado do encantamento. Aquele jornalismo questionador do passado está quase desaparecido pelo posicionamento empelicado do oriundo da faculdade. O iluminismo se fez sem a necessidade do monopólio do jornalismo. Talvez aí esteja um erro básico. O mais importante agora é não ofender as pessoas, por mais absurdas que sejam as coisas que apregoem ou por mais extraordinárias que sejam as coisa que possam afirmar (quanto mais, melhor, vende mais). O interessante é vender o produto, informação, não pela qualidade averiguada da mesma, pela confirmação ou coerência, mas pelo douramento dela.

Até criacionismo

Não se busca mais a história, a evidência, o contraditório, a visão cética, para não ofender o apregoador ou até mesmo o simpatizante que possa estar lendo. O mundo para o formado começou com a sua colação de grau. Qualquer despreparado passa a ser doutor para ser dado tempo na mídia para vender as barbaridades que apregoe. É uma mídia para vender, não para ensinar ou formar o leitor a saber o caminho a seguir, discernir as opções, nem tampouco para ensinar a raciocinar e reconhecer as falsas promessas. Mesmo porque o também jornalista não sabe este caminho. O mundo, para o moderno jornalismo, é inacessível ao conhecimento, devendo portanto ser dadas as opções para o leitor escolher a que mais lhe agrade. Buscar a informação sobre a mesma e demonstrar sua impossibilidade seria deselegante.

Passam os propagandeadores de absurdos a se sentirem confiantes com a cumplicidade da mídia para afirmar o que quiserem, pois têm a garantia da imprensa de que nunca vão ser questionados, nem solicitados a demonstrar o que afirmam. Astrólogos renasceram, curandeiros ressuscitaram, praticantes de exercício ilegal da medicina apregoam soltos, curandeiros com poderes nas mãos exercem Reiki após cursinhos banais, charlatões têm suas apregoações difundidas, terapeutas de vidas passadas têm seu tempo garantido na mídia, esotéricos esquecidos agora fazem sucesso das revistas femininas prometendo energizar tudo, cristais inertes, dizem, têm fantásticos poderes curativos, práticas medievais de bruxaria voltam ao mercado do encantamento, alternativos ao conhecimento científico apregoam, sem cobranças, suas terapias mágicas e fenomenais, surrupiando os recursos dos incautos estimulados pela mídia promotora do deslumbre.

Até o governo do Rio se sentiu confiante em impor o criacionismo nas escolas, fazendo aquela volta da ciência e religião, tanto ao gosto de certas mentes. Não se exige comprovação do que fornecem ao consumidor, seduzido pela mídia com promessas miraculosas. É o caos que viviam as populações medievais pela desinformação.

Burrão piadista vs. CDF

A divulgação científica, ao contrário do que acontece em religião, é justamente esta divisão de águas, que é o seu objetivo. Separar a simples apregoação, a profecia, a falsa evidência, a mentira completa, o dogma, indicando o saber sólido a seguir. E é este o papel da ciência, que é um método que pode nos fornecer as respostas. Por este caminho que se vão construindo as descobertas. Mesmo que amanhã se descubra que ainda havia um erro, este é o método de progredir, melhor do que a cegueira total da desinformação. Jamais o apego aos desejos e gostos pessoas que anseiam moldar um mundo imaginário, mas sim àquele que resista às críticas e à demonstração de evidências. Este é o objetivo da moderna medicina científica. A escolha da melhor conduta atual baseado na evidência (o efeito ‘eficaz’ no paciente) dos métodos propostos, descartando o que não apresente resultados e usando os que dão maior segurança.

E esta é uma linha contínua, sem fim, pois o novo método pode ser melhor ou não. E só sua análise conscienciosa e permanente pode responder. Abandonar isto para praticar crenças espiritualistas pela fé é cair no método do acaso, da sorte, do destino. E quem tem medo disto não faz parte do conhecimento científico, pois este é, em essência, o seu terreno.

Claro que aquelas pessoas que querem se passar por eruditas se ‘sentem oprimidas’ por aquelas que representem um real saber maior. Não é assim já na escola, na qual o estudioso é discriminado pela pecha de CDF e o popular é o burrão piadista?

Médicos parecidos

O jornalista, por ter formação dentro das faculdades de Jornalismo e Propaganda (associação perigosa) não tem uma sólida formação científica. Não tem uma formação mais aprofundada em matemática, física, química, biologia. Muitas vezes sua escolha foi orientada justamente por detestar estas matérias, que em jornalismo não seriam necessárias. Assim, confunde com a ciência real as chamadas ciências humanas, ciências da comunicação, ciências sociais, ciências do direito, ciências da religião… Quando estiverem querendo duvidar se a realidade não passa de uma epistemologia e que se pode livremente seguir o método do professor tal, ou a visão do livro qual, meta o dedinho rapidamente na tomada, que será trazido imediatamente à realidade, ao que quer realmente dizer ciência e a sua capacidade de esclarecer caminhos através do conhecimento empírico.

Quando achar que as doenças são preconceitos apenas, e pensar que quando as pessoas estão equilibradas energeticamente não adquirem desequilíbrios (patologias), deixe de usar o método de barreira da camisinha para prevenir Aids, não fique achando ‘que o problema é muito mais complexo’, pois terá uma triste revelação. Ficar considerando que a realidade nestas ciências não é atingível, ou que se possa escolher as leis que se quer obedecer, é estar por fora do que ela significa. A gravidade medida aqui é a mesma na China, a malária de um indiano é igual à do africano e se trata do mesmo modo. A atração das massas se faz na Terra ou entre o robô em Marte e seu solo. A fisiologia humana que se usa na UTI ou na sala de emergência é a mesma de uma missão na Lua ou a de um submarino passando pela calota polar.

Democratizar a informação não é levar a opinião do néscio ao leitor, mas sim levar a informação do sábio ao público, para que este também conte com o que dá poder a este último. Não é difundir a ignorância para nivelar por baixo, mas levar a sabedoria para produzir a libertação. É fazer sua formação pela correta informação usando o apropriado e claro meio de divulgação de que é detentor. Se para entender que a Terra era redonda levou-se 400 anos, para entender o que é ciência alguns vão levar outro tanto.

Todos os jornalistas são assim? É claro que não. Mas é importante lembrar que há médicos parecidos, que mesmo fazendo seis anos de faculdade abandonam o que foi ensinado para praticar coisas completamente absurdas.

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Médico, Porto Alegre