Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O começo da vida

Dentro de algumas semanas as discussões sobre a Lei de Biossegurança que aborda, entre outras coisas, o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas com fins terapêuticos voltará a ser assunto em todos os jornais, dividindo uma opinião pública ainda mal-informada. A lei está enfrentando um processo de discussão inédito no mundo por conta de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), pedindo a sua revogação sob a alegação que ela fere o direito à vida. O ministro Carlos Ayres de Britto, relator da Adin, assim diagnosticou a fonte da controvérsia: não há consenso sobre o conceito de ‘vida’ e, portanto, não há uma definição legal sobre o tema. Dessa forma, o debate ético-científico-jurídico está girando sobre o ‘começo da vida’.

Há um equívoco muito grave já no princípio da discussão. O pressuposto de que a vida ‘começa’ está fortemente contaminado. Falar que ela ‘começa’ transforma a vida em uma substância, algo que existe no corpo, mas que é diferente dele. Essa idéia equivocada, que parecia ter sido expulsa do pensamento científico há quase dois séculos, volta à tona e, mais estranho ainda, impregnada de preconceitos religiosos que a maioria da população acreditava ser justamente o oposto da ciência. Há uma dupla interferência no debate, até mesmo um círculo vicioso: por um lado, a Igreja, percebendo que não pode mais usar apenas dogmas para defender suas posturas, se apóia numa literatura científica que determina o começo da vida a partir da fecundação; por outro lado, cientistas religiosos se esforçam para mostrar que o uso e descarte de embriões já constitui um atentado à vida.

Ora, mas a ciência, no auge do pensamento racionalista, ainda ousaria fazer algo tão ultrapassado? Não seria uma espécie de cegueira fundamentalista anti-religiosa denunciar alguns cientistas como difusores do dogmatismo católico? Será que suas afirmações não são, de fato, puramente científicas e simplesmente coincidem com a postura da Igreja?

Razão inconsciente

Acontece que, no campo das idéias, as coisas não são tão simples como parecem. Não raro notamos em uma época a permanência de certas idéias que pareciam ter sido abandonadas. Mas essas velhas idéias não são mais tão evidentes, elas aparecem diluídas, disfarçadas, ornadas por novas idéias, de tal forma que é difícil perceber o quanto de influência ainda podem exercer.

Nenhum cientista publica uma tese anunciando que a vida começa no momento da fecundação porque assim determina a Igreja Católica: mas ele diz que a vida começa. Será preciso lembrar que, para o catolicismo corrente, a vida nos é dada por Deus, que Ele a pôs em nós com Seu sopro divino? Ou ainda, lembrar que a vida, entendida como substância, foi considerada durante muito tempo o correlato da alma? Então, a tese científica de que já existe vida é, na verdade, a secularização da crença numa dádiva divina, razão pela qual a vida deve ser preservada. Ainda teremos muito o que pensar a respeito da condenação pelo Papa Bento 16da manipulação genética como pecado capital.

Também existe um equívoco sobre quem tem direito a voz nessa discussão. Freqüentemente os jornais entrevistam médicos – alguns a favor, outros contra as pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias – sobre o começo da vida. A medicina não tem nada a dizer sobre isso, pelo simples fato de que a medicina não é ciência. A medicina é uma técnica estabelecida a partir do conjunto de saberes formados em diversos campos científicos, como a fisiologia ou anatomia. Então, para o médico, pouco importa onde começa a vida (ou mesmo se ela começa): a sua tarefa é aplicar os conhecimentos que ele aprendeu com as ciências biológicas a fim de preservar a vida, o que só ficará mais fácil com a utilização de células-tronco.

De fato, a última grande contribuição dada por um cientista à definição de vida já tem mais de duzentos anos e é o marco fundador de todas as ciências biológicas, mais especificamente da fisiologia moderna. Em 1801, o francês Xavier Bichat, no livro Investigações fisiológicas sobre a vida e a morte, divulgou a mais famosa definição de vida e aquela que ainda nos é familiar: ‘A vida é um conjunto de funções que resistem à morte’. Ora, mas isso quer dizer que não se falava em vida antes de Bichat? Bem, outra lição ensinada repetidamente pela história é que os nomes permanecem, mas as coisas mudam. Antes dele, vida, mesmo entre os cientistas, representava a alma ou, na melhor das hipóteses, uma espécie de razão inconsciente que levava os indivíduos à satisfação de suas necessidades. Em ambos os casos (que às vezes eram complementares) a vida era uma substância que estava ligada ao corpo, mas que era radicalmente diferente dele.

Primeiro estágio

A história das ciências reafirma constantemente a impossibilidade de interpretar Bichat como um vitalista animista, como um cientista que compreendia a vida como uma força reguladora e constitutiva dos organismos, responsável pela conservação dos corpos. A palavra vida empregada na definição de Bichat possui um efeito circular, pois é ao próprio conjunto de funções do corpo vivo que se dá o nome ‘vida’. Então, por mais que vários pressupostos e conclusões da fisiologia de Bichat tenham sido contestados nos últimos dois séculos, a compreensão formal da vida ainda é a de um princípio ordenador do conhecimento que serviu para unificar um campo do saber (o das ciências biológicas) a partir da determinação de um objeto comum, ou, de forma mais clara: a vida é simplesmente um conceito operatório.

Não vida no corpo. A vida não começa em algum momento. Mas quando pensamos no conjunto de funções (respiração, digestão, circulação, reprodução etc.) que são realizadas pelo nosso corpo, é isso o que chamamos de vida. A contribuição que ciências como a fisiologia ou a neurologia deram ao debate atual foi esclarecer o exato momento do desenvolvimento embrionário em que essas funções passam a ser realizadas, de tal forma que, antes disso, não se pode falar em vida.

(Há um preconceito de espécie nessa incapacidade em perceber a vida assim, de forma tão racional. Radicalizando um pouco, ninguém afirma que as plantas têm alma ou sentem dor, mas todos concordam com a definição científica que põe todo o reino vegetal entre os seres vivos. E por que as plantas são seres vivos? Ora, simplesmente porque elas são formas orgânicas que executam um conjunto específico de funções, como reprodução e alimentação).

Pensando por oposição, o conceito jurídico de morte no Brasil – estabelecido a fim de facilitar a questão dos transplantes – é, fundamentalmente, o de morte encefálica, a falência do sistema nervoso. Para fins de transplante, claro, essa definição é útil quando a falência encefálica é o primeiro estágio do processo de morte, pois os demais órgãos continuam bem, assim como o exercício de suas funções (ainda que de forma artificial, com o auxílio de aparelhos). Dessa forma, os defensores das pesquisas com células-tronco esclarecem que serão usados apenas embriões até o 14º dia, que marca o início da formação do sistema nervoso (processo que ainda se estenderá durante semanas).

Morte e vida

É curioso ver como os diversos grupos de ‘preservação da vida’, aqueles contra as pesquisas com células-tronco embrionárias, quando analisados friamente sob a perspectiva que apresentamos aqui, se tornam os menos preocupados com a vida. Muitas vezes suas posturas refletem apenas a ignorância acerca do tema, o que forma uma rede intrincada de preconceitos e opiniões pouco fundamentadas, como no caso do ‘Movimento Juristas pela Vida’. Se não podemos falar de vida nos embriões utilizados para as pesquisas, mas, ainda assim, decidimos proibir que suas células ajudem a preservar a vida de um paciente terminal, é evidente que há um erro lógico absurdo nessa equação.

No século 18, um dos argumentos mais curiosos contra a pena de morte era baseado na matemática: quando alguém mata uma pessoa, temos uma morte; quando o Estado mata o assassino, temos duas mortes e, certamente, não há vantagem alguma nisso. Com as células-tronco acontece algo parecido: não geramos um embrião e não o utilizamos para salvar um paciente, temos uma morte e nenhuma vida. Se gerarmos um embrião para colher suas células e salvar um paciente terminal, teremos uma vida e nenhuma morte.

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Historiador, pesquisador do Grupo de Estudos em História Intelectual e das Idéias (UFS/CNPq) e aluno do Programa de Pós-Graduação em História Social da USP