Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um ex-reitor, jamais um ex-poeta

O site Cantografia, de Carlos Vogt, título de um de seus livros, é limpo como a vida do poeta, lingüista e professor (e ex-reitor) da Unicamp. É também fértil como tem sido a caminhada deste intelectual sereno, disciplinado e iluminado, que atualmente preside a Fapesp.

 

O signatário é seu leitor desde a estréia, em 1982, exatamente com o livro de poemas que agora dá título ao site. Vogt tem sido sempre um professor, um ensaísta e um administrador atento às mudanças. Tem demonstrado essa busca de atualização nos autores que cita, nos intelectuais com quem dialoga, na análise da obra alheia, na pesquisa e principalmente nos versos, onde, por razões óbvias, seu percurso intelectual é menos notado.

 

Na Unicamp integrou uma equipe de dirigentes que implementou mudanças que deram bons frutos acadêmicos, tanto em instâncias de apoio, como depois na vice-reitoria e na reitoria, que exerceu de 1990 a 1994. Faz diferença ter sido um professor e um poeta a ocupar a reitoria de uma de nossas melhores universidades, notório centro de excelência.

 

Vogt é modesto. Poderia ter ocupado bom espaço no site com comentários e endossos de sua obra poética, cujos autores são em si mesmos referências de endosso da qualidade de sua poesia, elogiada entre outros por Antonio Candido.

 

Tem um parente literário pouco lido, mas com fortes semelhanças de estilo – o verso curto, principalmente – e o recurso de outras formas de ser lido. É Lindolfo Bell, catarinense falecido há pouco anos, que iniciou no Brasil o movimento chamado Catequese Poética e se serviu de varais e de camisetas para levar sua poesia a mais leitores, a novos leitores. Como o agora senador Fernando Collor, quando presidente, usou algumas camisetas com versos de Lindolfo Bell, o catarinense pagou alto o preço da extravagância do então presidente.

 

Os Poemisetas de Vogt foram lançados em 1983. Prestavam-se também a ser impressos em camisetas, mas teve a sorte de Collor não se interessar por eles. Afinal, alguns anos se passariam ainda para o político alagoano tornar-se o epicentro da crise que o retirou da presidência da República. Sou testemunha auricular de que Lindolfo Bell, parafraseando Nelson Rodrigues, considerava apenas um ‘divertido horror’ Collor interessar-se por sua poesia… A atenção que Bell dava ao marketing era inocente e pura: ele queria mais leitores, não apenas para si mesmo, generoso como sempre foi, mas para a poesia brasileira.

 

Prazer verdadeiro

 

Quantos poetas têm a precisão e a concisão de Vogt? Os leitores que julguem por si mesmos neste poema, intitulado Falamos tudo, onde diz ‘Falamos tudo e ainda/
há o que/ silenciar’. Versos que lembram conhecidas definições de silêncio, como a que fez Eduardo Portella: ‘O silêncio é aquilo que se diz naquilo que se cala’.

 

Ou em Pisca-alerta, onde, aproveitando conhecidas paráfrases sobre cultura – Goebbels queria sacar o revólver quando ouvia a palavra cultura, e outro quis, muito mais tarde, nos EUA, sacar o talão de cheques – sai-se com estes versos: ‘Tomara que ao ouvir cultura/ hoje/ não saquemos nada/ mas saquemos tudo/ do que foi sacado’.

 

Não tem sido em vão seu trabalho de docente. Pesquisador preocupado em ser entendido, mantém a mesma profundidade nos versos e consegue entretanto ser lido e entendido por todos. A visita a Cantografia não decepciona o internauta e ainda planta um oásis no deserto desses dias em que a urgência da luta política faz-nos correr o risco do esquecimento de que eleitor é apenas uma das tarefas do cidadão – e que o verdadeiro prazer é ser leitor.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br