Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Lições do deus do cinema para o eleitor

(Foto: Obregonia D. Toretto/ Pexels)

Na semana mais nervosa do ano é o cinema, não a propaganda eleitoral, que traz o foco para os eleitores do dia 30, com algumas pérolas que só mostras como a Internacional de Cinema de São Paulo conseguem oferecer. Como não reavivar a memória de Maio de 68 nas ruas em Paris senão com a restauração do filme francês “A Mãe e a Puta”, filmado em 1973, quando o Brasil vivia o nono ano de ditadura militar e sonhava com democracia, direitos pessoais, sexuais e políticos, liberdade? São quatro horas com o icônico Jean-Pierre Léaud, personagem de Truffaut, neste filme de Jean Eustache, tempo suficiente para lembrar à platéia os ideais de juventude e aguçar a memória.

Lembrar o tempo vivido é importante para saber o que queremos para o tempo que resta. No caso do Brasil, os dias que temos pela frente até a votação do segundo turno e os próximos quatro anos do Brasil.  Quem dá esse caminho é o prêmio Nobel de Literatura deste ano,  a francesa Annie Ernaux, 82 anos, no documentário “Os Anos de Super 8”. Ali, ela reflete sobre a sua vida desde os oito até os 70 anos.  As filmagens caseiras rodadas em super 8 por seu então marido, Phillipe Briot, foram editadas pelo filho caçula David Ernaux-Briot, no documentário dirigido por ela e o filho. 

Trata-se de uma delicada colagem de fragmentos de vida, onde Annie se pergunta “o que eu estava fazendo ali?” quando se vê europeia, desfrutando benesses turísticas no papel de mulher-acompanhante do marido em países às vezes circundados por miséria, repressão e desigualdade social.  “Estávamos numa bolha”, ela sabe. 

Um desses países é o Chile de Salvador Allende em 1972, que ela vive como um sonho de realização social, com reforma agrária, nacionalização de minas de cobre, olhar humano para o país e os desfavorecidos,  “um sentimento de estar fazendo História”. Mas no ano seguinte, o assassinato de Allende, que Annie sabe ao ler, com repulsa, a manchete do jornal de direita Le Figaro, saudando o golpe de Pinochet.  

Annie comemora em 1974 o lançamento do seu primeiro livro pela Gallimard, o crescimento dos filhos, a primeira vez em que um deles esquiou na neve, “esporte de inverno preferido por uma classe superior europeia” e escreve no diário, “uma vida supérflua”. Ela visita a Espanha de Franco, a Albânia e a União Soviética, comenta o bom e o mau de cada regime, faz a filtragem e recupera os seus ideais dos 20 anos para toda a vida. O documentário é ótimo para avivar a memória um tanto esquecida de quem troca valores antigos por segurança mantida a armas, balas, grosseria e deseducação neste momento brasileiro.

O resto, o eleitor pode resgatar nos documentários da Mostra como “As Tempestades de Jeremy Thomas”, de Mark Cousins , um produtor e diretor de 68 filmes, que levou o Oscar em 1988 por “O Último Imperador”, de Bernardo Bertolucci. Trabalhou com Stephen Frears, Nicolas Roeg, David Cronenberg, Abbas Kiarostami, Takashi Miike, Nagisa Oshima e é considerado um príncipe em Hollywood. O documentário aborda sua paixão por carros, mas assim mesmo ele conta que destruiu 3 Rolls Royce nos filmes em que participou. Cousins divide 1:34 minutos em várias partes. Carro, que ele dirige enquanto olha para o vidro da frente como se fosse uma tela para a vida. Mas também o sexo, como força propulsora de criação. E política, como escolha. Nas escolhas feitas por ele, foi um rebelde.

Foi rebelde ao ativar o seu talento para escapar de tempestades na vida e na arte, aconselhando o afastamento –o mais possível– das mega produções espetaculosas, as mega-promessas de sucesso, mega-confusões. E observar com calma humanidade e interesse pelo entorno durante o caminho – a caminhada é mais importante do que a chegada. 

As reflexões, leituras de jornais, filtro nas fake news, análise dos ideais, foco nos filmes da Mostra desta semana, mais do que o bang-bang barato estrelado pelo ex- presidente do PTB, Roberto Jefferson, amparado pelo inacreditável padre Kelmon, vão moldar o olhar do eleitor para o entorno do país, longe da megaprodução de bala, Bíblia e boi que se tornou o filme mais assistido do Brasil. Atenção para o “Deus do cinema”, título do formidável filme japonês de Yûji Yamada na Mostra, que salva os protagonistas pelas paixões da juventude. Atenção para o que realmente importa, até o momento de chegar às urnas.

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 Norma Couri éjornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).