Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um livro-bomba, ou traque

Os autores são dois repórteres conhecidos, Marcelo Netto e Rogério Medeiros. A editora é conceituada, a Topbooks. O tema do livro Memórias de uma guerra suja, que acaba de ser lançado, é explosivo: um delegado da polícia política da época da ditadura, hoje convertido ao evangelismo, diz ser responsável pelo desaparecimento de dez participantes da luta armada, cujos corpos, garante, incinerou nos fornos de uma usina de açúcar; confessa o assassínio de mais de cem pessoas; diz ter participado do assassínio do jornalista Alexandre von Baumgarten, na ocasião proprietário da revista O Cruzeiro e autor do livro Yellow Cake, sobre o fornecimento de urânio brasileiro, na época da ditadura militar, ao governo iraquiano de Saddam Hussein, que queria fabricar uma bomba atômica. E afirma que o delegado Sérgio Fleury, símbolo da repressão aos inimigos do regime, não morreu num acidente: foi assassinado, por ter fugido ao controle dos generais que comandavam o regime militar.

Há mais: diz ter participado, também, de uma tentativa de assassínio de Leonel Brizola, que seria atribuída ao regime cubano de Fidel Castro.

Sensacional – se for verdade. O delegado Cláudio Guerra, que declara ter participado de todos esses crimes, jamais entrou nas listas de torturadores e assassinos elaboradas por adversários do regime militar. O mais completo livro sobre torturas, o Brasil Nunca Mais, elaborado pelo jornalista Ricardo Kotscho com a inestimável supervisão e colaboração do cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, e do reverendo James Wright, não cita seu nome. Não é impossível que Cláudio Guerra tenha cometido os crimes que confessou; nem que tenha utilizado os meios de atuação que disse ter usado. Os métodos das ditaduras latino-americanas incluíam ações brutais, como jogar corpos (ou prisioneiros vivos) em alto-mar. Mas é improvável que tivesse feito tudo isso sem jamais incorrer em suspeitas de parentes, amigos e correligionários das vítimas.

Em determinado caso específico, Guerra é desmentido por um interessado direto: o delegado Paulo Fleury, filho do delegado Sérgio Fleury. A versão oficial da morte de Fleury é que foi causada por uma queda acidental, ao passar de um barco para outro. Guerra diz que Fleury foi dopado primeiro e levou uma pedrada na cabeça para cair entre os barcos.

O filho de Fleury diz que a versão é absurda: que sua mãe estava ao lado do delegado o tempo todo e não houve pedrada, nem doping.

Cláudio Guerra cita torturadores e assassinos – os de sempre, sem novidades. Revela a localização de cemitérios clandestinos. E, em sua narrativa, explica por que não foi possível encontrar gente desaparecida: seus corpos haviam sido destruídos (e, em troca do favor prestado, a usina teria tido acesso privilegiado a verbas oficiais, ultrapassando todas as crises do setor sucroalcooleiro sem qualquer problema). A usina, entretanto, entrou em decadência: em 1995 suspendeu suas atividades. Segundo o Incra, não as retomou; segundo os proprietários da usina, em 1997 foi iniciado um plano de revitalização da empresa. Como o livro saiu nestes dias, nenhum repórter foi ainda à usina verificar as informações.

De qualquer forma, é um livro fascinante – que, com certeza, será um best-seller por muito tempo. E traz, em si, os elementos que permitirão comprovar se narra ou não fatos reais. Pode-se procurar, por exemplo, os cemitérios clandestinos apontados por Cláudio Guerra. Pode-se acompanhar sua atividade como delegado, inspecionando documentos como pagamento de horas extras, despesas de viagens, diárias, fornecimento de passagens. Bons investigadores têm, neste livro, material para trabalhar em busca da verdade.

E por que Cláudio Guerra falou? Aos 71 anos, diz, quer estar em paz com sua consciência. Pode ter iniciado um movimento que revisará toda a história recente do país. E teve a sorte de encontrar dois repórteres que se convenceram de que, em suas mãos, estava uma das melhores histórias dos últimos tempos.

 

A CPI e a imprensa

Em princípio, não havia motivo nenhum para uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Toda a investigação tinha sido feita pela Polícia Federal, vinha sendo vazada a conta-gotas para a imprensa, as gravações incluíam muitos meses de conversas. Mas havia quem quisesse mais: aproveitar as investigações, que atingiam diversos partidos e diversos setores da sociedade, para enfraquecer ainda mais a já quase inexistente oposição e dar o troco ao governador goiano Marconi Perillo, por ter dado entrevistas contando que havia informado o então presidente Lula da existência do mensalão (Lula insistia em dizer que não sabia de nada).

Tudo em ordem – mais ou menos. Uma CPI atrai atenções. E a empreiteira Delta, ligadíssima ao governador fluminense Sérgio Cabral, aliado do governo federal, fazia parte do jogo. Abriu-se o campo para que o ex-governador Anthony Garotinho, hoje adversário político de Cabral, abrisse seu arquivo e mostrasse as fotos em que Cabral, o dono da Delta, Fernando Cavendish, secretários estaduais e grandes fornecedores do governo fluminense ostentavam luxo e riqueza, apareciam em lugares caríssimos do principado de Monte Carlo, dançavam com guardanapos na cabeça, longe de qualquer vestígio de sobriedade; e suas esposas tiravam fotos da sola dos sapatos, solas vermelhas da grife francesa Louboutin, tudo de altíssimo preço.

Agora o leque está aberto: já se sabe que a Delta, além de ir muito bem, obrigado, no Rio, é também a principal empreiteira do PAC; que contribuiu para a campanha de Dilma Rousseff à Presidência; que também vai muito bem, obrigado, em São Paulo – ou seja, está sempre bem, seja o governo do PT, do PSDB ou do PMDB.

Agora é esperar o comportamento da imprensa. Em outras CPIs, houve jornalistas que se comportaram de maneira pouco decorosa, gritando contra depoentes que não os agradavam, conversando acintosamente entre si quando não queriam prestar atenção em algum depoimento. CPI, haja o que houver, é coisa séria; deve-se prestar atenção e buscar o máximo possível de objetividade, até para evitar que se desvie do bom caminho e siga para a pizzaria mais próxima.

 

O repórter e o promotor

Grupos empresariais e jornalistas que se intitulam progressistas vislumbram na CPI uma oportunidade de atingir a revista Veja e seu diretor de Redação em Brasília, Policarpo Jr. O motivo é curioso: nas gravações dos telefonemas de Carlinhos Cachoeira, o bicheiro afirma que foi o fornecedor de várias notícias divulgadas por Policarpo. Mas afirma também que Policarpo não é gente sua: só publica o que confirma e acha que vale a pena.

O ex-ministro José Dirceu tem dito que frases desse tipo indicam que Policarpo Jr. e a Veja têm relações com o crime organizado. “Jornalistas progressistas”, seja lá isso o que for, afirmam que a Folha de S.Paulo e O Globo blindam a Veja nas investigações. Besteira: se algum jornalista ou alguma empresa tem relações com o crime organizado, o caminho não é esse. Jornalista se relaciona com todo tipo de gente para obter informações; e esse relacionamento só é incorreto se envolver subordinação à fonte (e, no caso, é incorreto mesmo que a fonte seja um Prêmio Nobel) ou o recebimento de favores, presentes ou pagamentos.

Quem quiser informações de bandidos, para elaborar o noticiário, tem de relacionar-se com bandidos. Não é o caso de um promotor, ou de um juiz, cujos contatos precisam ser cuidadosamente selecionados, e que podem perfeitamente encontrar-se com autores de malfeitos na sala do tribunal.

Personalizando, Policarpo Jr. pode, sem problemas, ter relacionamento com Carlinhos Cachoeira; já Demóstenes Torres não podia. Aliás, há mais gente que não deveria relacionar-se com empresários zoológicos e o fez. Se a CPI correr solta, se a Polícia Federal abrir de vez o inquérito, o Brasil vai ferver.

A propósito, este colunista não acredita que o Brasil vá ferver.

 

Entenda juros e poupança

Esta é uma das funções básica do jornalismo: traduzir corretamente, para o público, aquilo que os especialistas e autoridades dizem e fazem. Este colunista não conseguiu entender até agora o que está acontecendo com a poupança nem qual é exatamente o papel da caderneta na fixação da taxa de juros.

E, do jeito que a imprensa trata a questão dos números, vai ser difícil mesmo entender. Vejamos um bom exemplo: uma determinada categoria recebeu aumento real de 7,2%. No total, foram 14%. Basta fazer as contas: 7,2% de aumento real, mais a inflação, de 6,8%.

Mas, na mesma notícia, informa-se que outra categoria teve a reposição da inflação, mais 3,82% – no total, 8,37%. Vamos fazer as contas: de um parágrafo para outro, a inflação caiu de 6,8% para 4,55%.

Outro caso: num grande jornal, atribuída ao ministro Guido Mantega, há a informação de que, se a taxa Selic cair para 8%, o ganho da poupança será de 5,6%. Já um fundo (que paga imposto de renda e cobra taxa de administração de 1,5%) oferece um ganho de 3,5%.

De onde saiu essa conta? O jornal não esclarece. Mas continua: diz que, para manter o cliente, o fundo terá de reduzir a taxa de administração. Imaginemos que a reduza para zero. O ganho seria, segundo as contas do jornal, de 3,5% mais 1,5% da taxa, que deixa de ser cobrada ao cliente. No total, 5%. O fundo continua perdendo de qualquer jeito: a poupança, sem truque nenhum, pagaria 5,6%.

Como é que dá para entender?

 

Ou não entenda, tanto faz

Em outro grande jornal especializado, explicando as mudanças na poupança:

** “Por ora, o governo descarta mudanças na indexação terá taxa dos financiamentos imobiliários.”.

Simples assim.

 

Um belo livro

Está no forno e será lançado na terça (8/5): Iconografia do Cangaço, organizado por Ricardo Albuquerque e editado pela Terceiro Nome. Fotos históricas da saga dos cangaceiros, em excelente edição. No lançamento (Centro Cultural Rio Verde, rua Belmiro Braga, 119 – SP) haverá xaxado, forró, repente e literatura de cordel para comemorar.

 

Outro sentido

E, por falar em comemorar, um apresentador de TV disse que naquela semana se comemorava a morte de Ayrton Senna. A rigor, não está errado: comemorar, no sentido original, significa lembrar em conjunto. Só que, ao longo dos anos, a palavra foi mudando de sentido e se transformou quase em sinônimo de “festejar”. Acontece: prejuízo, originalmente, era sinônimo de preconceito. Hoje não é mais. A estranheza dos telespectadores tinha razão de ser.

 

Tirando da reta

Que fazer quando o repórter tem receio de publicar a notícia?

Dois cavalheiros, um maior, outro menor, dominaram um casal de universitários, num sequestro-relâmpago. O roteiro foi o de sempre: caixas eletrônicos, roubo de objetos, roubo do carro. A polícia encontrou o carro, dirigido pelo menor, prendeu os dois cavalheiros e achou os objetos roubados do casal. Tudo isso está contado no jornal. Só que, em determinado momento, passam a chamar o assaltante adulto de “suspeito”. Suspeito de que, cara-pálida?

Pior foi a criação de uma nova categoria de idade. Segundo a notícia, “um suspeito de 20 anos (…) e um adolescente de 16 (…)”. Ou seja, suspeito virou sinônimo de assaltante maior de idade. Alô, dicionários!

 

Como…

De um importante jornal online:

** “Nova sede do museu (…) recebe poucos visitantes e aguarda solução de impasse para ser aberta.”

Se a nova sede do museu está fechada, como recebe visitantes, mesmo que poucos?

 

…é…

Num grande portal internacional de notícias, abolindo a concordância:

** “Caiu as calças do animador! Segura!”

 

…mesmo?

No texto de um grande portal de notícias:

** “Um Porsche bateu em outro veículo e capotou (…). O motorista do Porsche estava com o documento atrasado e não tinha Carteira Nacional de Habilitação.”

Tudo bem – mas a foto mostra que o Porsche não capotou, não. O outro carro é que capotou. E que é que quer dizer “documento atrasado”?

 

Mundo, mundo

O futebol anda bravo, e não é só no Brasil. Eta, gente para brigar!

Na Inglaterra, Carolyn Still, diretora-executiva do Mansfield Town, da 5ª divisão, “a dirigente mais bonita do mundo”, segundo a imprensa europeia, teve um ataque de fúria depois da expulsão de um jogador de seu time. A polícia pediu que ela se acalmasse. Não adiantou. E (acredite: há países onde a classe social dos desordeiros não importa muito) acabou sendo detida.

Na Itália, o técnico Della Rossi, ex-Fiorentina, meteu a mão num jogador, no banco de reservas (foi suspenso por três meses). Aí vem a parte mais deliciosa da notícia: Rossi atingiu o jogador “com pelo menos dois socos”. Não, não foi uma saraivada daquelas tipo Mike Tyson, em que só se podia contar o número de socos usando câmera lenta: foram dois – ou mais, digamos três ou quatro, ou dez, ou vinte, ou sabe-se lá quantos. Ainda bem que futebol não é boxe: o caro colega já pensou nos problemas do juiz para contar os pontos?

 

E eu com isso?

No começo do século 19, o presidente americano Thomas Jefferson escreveu em seu diário que há dois anos não tinha notícias do embaixador dos EUA na França, Benjamin Franklin. E prometeu a si mesmo que, se em um mês ou dois não recebesse notícias, escreveria uma carta a Franklin. Na época, a França era uma potência mundial, o mais importante aliado dos Estados Unidos. E mesmo assim Jefferson achava possível aguardar mais de dois anos para ter notícias.

Hoje, não: hoje as informações são instantâneas. Chegam em catadupas (que, aliás, são sinônimo de cataratas, ou cachoeiras). E notícias não faltam:

** “Letícia Birkheuer demite babá após desentendimento na cozinha”

** “Com carro de luxo, Miley Cyrus estaciona em vaga para deficientes”

** “Ex-BBBs Yuri e Rafa teriam sido vistos aos beijos com loiras”

** “Cameron Diaz se estressa com fotógrafos e faz gesto obsceno”

** “Para Ricardinho, voltar à Seleção foi como reatar com namorada”

** “Victoria Beckham usa looks desenhados por ela em visita à China”

 “‘Estou de olhos fechados, mas não estou dormindo’, diz Niemeyer à mulher”

** “Esposa de Dennis Quaid retira pedido de divórcio”

** “Famosas brilham em inauguração de salão de beleza em São Paulo”

** “Jennifer Lopez teria planos de se casar pela quarta vez”

 

O grande título

Um título incomum mostra como é possível reconstruir a última flor do Lácio, cada vez mais inculta e menos bela:

** “Cachoeira evitou Pagot de revelar esquema da Delta no Dnit, diz TV”

E outro, o melhor título da semana, mostra que, quando há uma sentença judicial firme e bem embasada, até milagres acontecem:

** “Liminar determina redução de doenças ocupacionais na (…)”

Notável: não é preciso mexer com ergonomia, nem com o ambiente de trabalho. Basta aplicar a decisão.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]