Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Armai-vos uns aos outros

A contratação por fazendeiros de segurança armada, para evitar invasão de suas terras por índios, é assunto local ou nacional?

A julgar pela reação dos meios nacionais de comunicação, a decisão de produtores rurais de promover leilões de gado e destinar a receita à defesa de suas fazendas, a bala ser for necessário, é assunto local. Só veículos de Campo Grande, MS, estão dando a notícia. Os veículos nacionais por enquanto estão de fora.

De que se trata? Há propriedades invadidas e outras que correm o risco de invasão, especialmente na região de Sidrolândia. Produtores se reuniram na Acrissul, Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul, e decidiram doar gado para leilões cuja receita será destinada à defesa das áreas invadidas e sob pressão. “Faremos essa mobilização e usaremos os recursos para nos defender, isso através dos meios jurídicos legais”, disse o presidente da Acrissul, Francisco Maia. “Contrataremos seguranças e tudo o que for preciso para esta batalha”.

Não é questão de discutir quem tem razão. Se há invasões de terras, cabe à Justiça decidir quem tem razão e ao governo e à polícia fazer cumprir a decisão. Pode ser que os produtores se sintam inseguros com a inação governamental, mas armar-se para substituir o poder público não é uma solução aceitável. Se não houver motivo para que os produtores se sintam inseguros, mais ainda é necessária a ação do governo, para evitar combates entre grupos armados, como se não houvesse lei, como se não houvesse autoridade, como se não fosse do Estado o legítimo monopólio do uso da força.

As autoridades sabem? Devem (ou deveriam) saber: não é segredo. No link http://bit.ly/1hwJdje está a notícia completa da reunião em que os fazendeiros decidiram reunir recursos para ampliar sua capacidade, digamos, bélica. Se houver batalha, com tiros, mortes, sangue, os meios nacionais de comunicação finalmente darão a notícia, entrevistarão as autoridades, perguntarão o que está acontecendo? Ou estarão achando que, longe do litoral, longe das maiores cidades, a região não é exatamente Brasil – talvez seja o faroeste?

Ninguém ainda está pronto para a batalha, mas a batalha já se delineia no horizonte. Vai ficar assim mesmo? Há tempo para cobrir os preparativos: os produtores organizam os leilões, os possíveis invasores montam seus acampamentos nas proximidades das áreas desejadas. Há tempo até para levantar a situação jurídica das áreas em disputa e ouvir todos os lados, antes de alguma tragédia. E entrevistar, além das partes diretamente envolvidas, o governador do Estado, o secretário da Segurança, autoridades federais. Que é que estão fazendo no caso?

 

A balada é notícia

Veja SP publicou reportagem de capa com um personagem grotesco, logo apelidado de Rei das Baladas, um certo Alexander Almeida. Sua principal característica é gastar rios de dinheiro para não sair desacompanhado das noitadas. Chega a gastar R$ 50 mil numa balada, com champanhe Crystal, uísque do mais caro que houver, grandes gorjetas. Só usa roupas de grifes caras, vai de Ferrari, seguido por seguranças, que controlam o acesso a seu camarote e, quando ele volta para casa, devidamente alcoolizado, guiam a Ferrari para ele. Só usa roupas de grifes caras. A matéria provocou várias controvérsias:

1. Quem é esse cara para aparecer na capa de uma revista?

Ele se transformou em notícia – ou seja, em algo não corriqueiro. Dificilmente seria capa de Veja. Mas de Veja SP, revista que se dedica a assuntos mais leves, que lista bares, shows, restaurantes, boates, que cuida de entretenimento, é natural. Houve quem dissesse que não gostava de personagens desse tipo. Este colunista também não gosta. Mas não gosta de ditadores, de assassinos, de serial-killers, de fanáticos, de racistas, de traficantes, e é obrigado a vê-los na TV, nos jornais, nas revistas, na web. São nocivos, causam asco, mas é preciso saber quem são e o que é que andam planejando e fazendo.

2. Entrou também em ação a patrulha anti-Veja, que busca demonizar a revista. Por que dar esse sujeito na capa quando ganha força o noticiário sobre o cartel no fornecimento de serviços e equipamentos para metrô e trens urbanos?

Porque Veja SP trata de assuntos mais leves. O caso do cartel (e propinas, e seus desdobramentos, e quem leva quanto de quem) deve estar na Veja. Uma simples questão de adequação de veículo.

3. E, finalmente, uma preocupação exclusiva da patrulha anti-Veja: a que procurou colocar em dúvida a própria existência do personagem. Besteira pura, claro: além de entrevistado e fotografado, o cavalheiro foi personagem central de um vídeo em que expõe com toda a clareza seu jeito de viver a vida. Mas valeu para avaliar o grau de exasperação do pessoal mais patrulheiro: não importa se é verdade, tem de ser tratado como mentira. Tanto que, depois de exibido o vídeo, depois de um amigo do cavalheiro ter dito que a revista não tinha sido justa com ele, por apresentá-lo como um idiota, embora ele tenha mesmo feito e dito tudo aquilo, ainda há gente que diz que Veja SP caiu no conto do personagem. Veja SP oferece o link.

 

E gente, é notícia?

Uma discussão marginal sobre jornalismo, que também foi motivada pela matéria do Rei das Baladas, pode ter desdobramentos interessantes: a das pautas que exige que o repórter encontre um personagem. Conforme o caso, isso pode gerar matérias distorcidas. E, em casos extremos, há histórias verdadeiras de repórteres que procuraram fontes do veículo com frases prontas, para que as fontes as assumissem. Este é um belo debate, até por envolver o esforço que certas pessoas fazem para se transformar em subcelebridades – o que inclui, eventualmente, comportar-se de modo excêntrico ou parecer idiota, apenas para garantir seu nome em destaque. Esse tipo de pauta inverte e subverte a ordem natural das coisas: em vez de encontrar um personagem e retratá-lo, o repórter precisa encontrar alguém que se enquadre na figura do personagem.

 

Sem seguro, e daí?

Um caso menos charmoso, mas mais revelador da busca dos meios de informação por fatos desimportantes, é o roubo de um carro Porsche, avaliado (pelo dono) em R$ 330 mil. O título, em praticamente todos os meios de comunicação, salientava que o carro não tinha seguro.

E daí?

Primeiro, não é obrigatório ter seguro que não seja aquele previsto em lei. Pessoas ricas muitas vezes preferem correr o risco, já que têm condições de cobrir as despesas sem grandes problemas, em caso de qualquer prejuízo. Segundo, se o proprietário não tiver seguro e seu carro for roubado, o problema é dele, sem qualquer reflexo sobre outras pessoas. O roubo de um carro tão vistoso, tão caro, é notícia (por mostrar que não são apenas automóveis que se perdem na multidão e são fáceis de vender os alvos dos bandidos), mas a ausência de seguro é um detalhe para constar no texto, não como destaque do título.

Enfim, o caso morreu no dia seguinte, quando o carro foi encontrado. E ninguém foi atrás do dono para saber se, agora, ele decidirá assegurá-lo.

 

A guerra na web

Como diria um amigo deste colunista, “ô, gente chata!”

A guerra política chegou ao ridículo: um jornal, noticiando a pesquisa CNT sobre as eleições presidenciais, diz que a aprovação da presidente Dilma Rousseff estancou. É verdade; era de 38%, passou a 39%, na soma de ótimo e bom. E é menos da metade da aprovação da presidente em maio, de 79%.

Aí surgem os patrulheiros, protestando porque a notícia deveria ser que Dilma continua sendo a favorita e, pela pesquisa, derrotaria qualquer dos adversários no segundo turno. OK, poderia ser este o enfoque; mas também poderia ser o da aprovação, por que não? Aliás, o da aprovação é mais consistente: trata de algo atual, enquanto a intenção de voto será efetivada ou não daqui a quase um ano. Mas foi o bastante para acusar a imprensa de esconder o que é bom na pesquisa.

E se o título fosse que Dilma é a favorita e venceria qualquer adversário no segundo turno? Aí viriam os patrulheiros do outro lado, acusando o jornal de esconder os fatos desagradáveis e só mostrar os favoráveis ao governo. Em suma, os meios de comunicação sempre estarão errados.

Outro caso interessante foi o da atriz Tatá Werneck. Num programa, quando lhe perguntaram o que faria se testemunhasse bullying contra um gay, respondeu de bate-pronto que procuraria desviar o alvo, talvez para um judeu. Besteira? Sim. Só que ela não fez isso, apenas sugeriu uma solução, certa ou errada, para um problema que lhe havia sido levantado naquele momento.

Caiu o mundo sobre Tatá, acusada de ser preconceituosa. Não é: é casada há anos com um judeu, não tem nenhum histórico de preconceito contra quem quer que seja. E é parente do Humberto Werneck, jornalista e escritor de raríssimo talento, caráter impecável. Tatá pode eventualmente errar, como todo mundo, mas não é antissemita, não é preconceituosa; é moça do bem, não do mal. E é preciso acabar com essa patrulhas do politicamente correto, que criam, pensando em coisas boas, um certo tipo de comportamento obrigatório – o que é fascista, sempre.

Um exemplo? Um jornalista de longos anos de carreira teve sua demissão pedida por um patrulheiro porque, a respeito de um policial agredido que não recebeu solidariedade de bem-pensante nenhum, contou uma piada em que “a turma dos direitos humanos”, como a denominou, só chega na hora em que criminosos perdem a parada. Patrulhar piada é o limite da invasão do comportamento alheio. Repetindo, “ô, gente chata!”

E, por favor, antes de iniciar mais uma discussão sem sentido, não se esqueça de que este colunista é judeu, gordo e careca. Já ouviu milhares de comentários e piadas por ser judeu, gordo e careca, e nada disso o afetou. E, se ninguém jamais tivesse feito piadas com ele por ser judeu, gordo e careca, não mudaria nada. Continuaria sendo judeu, gordo e careca.

 

Delírios bem-pensantes

As teorias conspiratórias não são exclusivas dos meios de comunicação nem das patrulhas que circulam pela internet. Atingiram também os políticos que querem posar de campeões dos direitos humanos. O presidente da Comissão da Verdade de São Paulo, por exemplo, disse que uma testemunha identificou um buraco de bala na cabeça do motorista de Juscelino Kubitschek. O ex-presidente morreu quando o carro em que viajava, na via Dutra, chocou-se com um ônibus. Os corpos foram agora exumados para verificar se houve homicídio.

Buraco de bala na testa do motorista seria a certeza de que houve homicídio. Só que o orifício no crânio do motorista já tinha sido identificado em exumação anterior. Conforme se comprovou na ocasião (a ditadura já tinha terminado faz tempo), o crânio havia sido perfurado por um prego mal colocado do caixão.

 

O grande Almir

O advogado e ex-ministro Almir Pazzianotto, conforme noticiado por esta coluna, acaba de lançar seu novo livro, O Ponto e a Curva. O lançamento se transformou numa caminhada cívica. Em Capivari, SP, sua cidade natal, autografou 320 livros – a um minuto por livro, sem parar, dá mais de cinco horas de dedicatórias. Apareceram prefeitos da região, veio a Rede Globo de Campinas, foi uma grande festa – que em seguida se repetiu na Universidade Santa Cecília, em Santos. O editor do livro, Fernando Portela, faz uma reflexão interessante: se houvesse mais gente com a iniciativa de Pazzianotto e escrevesse livros de seus próprios conteúdos, desde que bons, a História ganharia muito com isso. “Como dizia Fernand Braudel, História não é data nem evento, mas o povo em ação”.

 

Experiência vivida

Outro livro interessante, em que o autor analisa situações que enfrentou, é Violência e Corrupção no Brasil, do procurador, ex-secretário de Estado e ex-secretário nacional de Justiça João Benedicto de Azevedo Marques. O livro, lançado há poucos dias, reúne 25 artigos sobre violência urbana, sistema prisional, maioridade penal, políticas de segurança pública; e, temas atualíssimos, a participação do Ministério Público em investigações criminais e os protestos de rua ocorridos de junho para cá. Vale a pena: é um livro de referência, importantíssimo para quem quer que deseje entender e debater esses assuntos.

 

Como…

Da BBC, informando de Santiago do Chile que Leopoldo García entrou com ação contra o Estado por tê-lo forçado a exilar-se em 1975: “É a primeira vez que a Corte Interamericana de Direitos Humanos se pronunciou sobre o caso de um sobrevivente ainda vivo (…)”

Os sobreviventes falecidos, ao que parece, jamais acionaram a Corte, talvez por não se enquadrarem na categoria de sobreviventes.

 

…é…

De um grande portal noticioso, comentando as mudanças na Fórmula 1:

** “Os resultados da Williams neste ano são pifeis (…)”

Exato: “pífio” é para os fracos. Os mestres da nova grafia jornalística preferiram “pífel”, daí o plural “pifeis”. Ou será que era “pífil”?

 

…mesmo?

Do press-release distribuído pela administração de uma cidade importante:

** “(…) planejamento e execução de obras de abastecimento e esgotamento para atingir, até o ano de 2017, a meta de cobertura de 300% de saneamento”.

É isso: 300%. Considerando-se que com cobertura de 100% toda a população teria sido atendida, deve haver planos para que cada casa tenha três sistemas diferentes de saneamento básico. Se um deles falhar, restam outros dois.

 

As coisas são assim

De um grande portal noticioso, explicando ao internauta menos esclarecido o que significa a mega-sena de R$ 80 milhões de reais:

** “Com o dinheiro, é possível comprar 80 imóveis de R$ 1 milhão cada um”

 

E podem ser piores

De um jornal regional, relatando um acidente em que uma motosserra cortou o pescoço do operador, matando-o instantaneamente:

** “De acordo com a vítima, ele perdeu o equilíbrio (…)”

É uma tremenda notícia: este colunista jamais tinha ouvido falar de pessoas falecidas que prestavam declarações à imprensa.

 

Frases

>> De Nelson Jobim, ex-deputado, relator da Constituinte, ex-ministro da Justiça e da Defesa, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal: “Só os incompetentes e os amadores não sabem que, em política, até a raiva é combinada”.

>> Do jornalista Sandro Vaia: “Segundo o ministro da Justiça, a espionagem brasileira não espiona”.

>> Do poeta Ulisses Tavares: “Impostos/ Eu pago./ Tu pagas./ Eles pegam”.

 

As não notícias

A praga das informações que não são exatamente informações, porque o repórter ou o veículo, ou ambos, têm receio de fornecê-las, é internacional. O Brasil globalizou-se aí também, seguindo os padrões internacionais.

1. Gaga estaria noiva?

Boa pergunta: terá Lady Gaga ficado noiva? Pois não é lendo esta não notícia que o caro leitor ficará sabendo.

2. Mulher que filmou Justin Bieber dormindo seria modelo carioca

Seria modelo? Ou seria carioca? Ou talvez não seja carioca, nem modelo. Enfim, esta é uma frase com a qual ou sem a qual o nível de informação do leitor continua tal e qual.

3. Shakira pode estar separada de Gerard Piqué

Sim ou não? E se alguém resolver aproximar-se de Shakira e a notícia for falsa, como irá se explicar para aquele atleta fortíssimo e veloz?

 

E eu com isso?

A vida é complicada, patrulhada, cara, cheia de altos e baixos. Menos aqui, no setor frufru do noticiário: aqui o mundo é cor de rosa, feliz, feito apenas de coisas boas. É como aquela casa de bolos e doces de Joãozinho e Maria, só que sem a bruxa má.

Claro que nada tem muita importância. Mas qual a importância de ter importância?

** “Luana Piovani e o filho usam óculos de sol combinando”

** “Kate e William andam de ônibus”

** “Sérgio Mallandro mostra foto antiga ao lado de Xuxa”

** “Sharon Stone é clicada com os dentes sujos”

** “Anderson di Rizzi confessa que é ciumento”

** “Tom Cruise diz que é um bom pai”

** “Anitta se diverte em Orlando”

** “Selena Gomez fala sobre o lado bom de estar solteira”

** “Cantor Mariano e Dany Bananinha vão juntos a evento em São Paulo”

** “Lindsay rouba namorado de amiga”

 

O grande título

Há de tudo: títulos cuja compreensão é difícil, títulos esquisitos, contorções gramaticais. Comecemos pelo título difícil:

** “Ciclista flagra motorista dirigindo com cereal no colo”

Bem explicadinho, deve fazer sentido. Ou não.

Continuemos com um título estranho:

** “Refúgio de agentes de repressão, corte de direitos humanos se reúne no País”

Será a Corte de Direitos Humanos um refúgio de agentes da repressão? Não, nada disso: segundo explica o texto, o País é o Brasil, e o Brasil é um refúgio de agentes da repressão. Citando Pelé, “entendje”?

Agora, o melhor de todos:

** “ABRAF realiza caminhadas em prol da Hipertensão Pulmonar”

Na verdade, a Associação Brasileira de Amigos e Familiares de Portadores de Hipertensão Arterial Pulmonar, ABRAF, faz caminhadas em prol das vítimas da moléstia. Tudo bem: é só ler o título e entendê-lo ao contrário.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação