Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os limites da lei

O jornal espanhol El País acaba de inaugurar sua edição brasileira, com foco, segundo informa seu dirigente Juan Luís Cebrián, no noticiário ibero-americano. E acaba também de criar um contencioso interessantíssimo: tendo capital 100% estrangeiro (99% do El País, 1% do Grupo Prisa, empresa proprietária do El País), abre a discussão sobre o limite de capital estrangeiro na imprensa brasileira, hoje estabelecido constitucionalmente em 30%. Dá para discutir: como El País existe no Brasil apenas em formato digital, será aplicável a ele a legislação anterior à era virtual?

Juan Luís Cebrián, CEO (presidente executivo) do El País, recorre a outro argumento: o novo jornal não concorre com a imprensa nacional, nem em conteúdo nem na disputa por anunciantes. “Trabalhamos nas notícias mais importantes do Brasil, mas também queremos estabelecer uma ponte com leitores que não são abastecidos pelo conteúdo que já existe.” Completa com sua opinião sobre a Constituição brasileira: acha que o limite de 30% para capital estrangeiro é “obsoleto”. Como é o que ele acha, acha também que o assunto está resolvido. Besteira lutar pela mudança da Constituição, para depois agir dentro das normas vigentes: num país do lado de baixo do Equador, um europeu falou, está falado.

Não está: a Associação Nacional de Jornais (ANJ), estuda abrir processo judicial contra o grupo espanhol, por ferir a Constituição. É briga boa.

Em princípio, a opinião de um executivo espanhol, por mais eminente e competente que seja, sobre a Constituição brasileira, vale menos que um texto virtual antes de ser salvo: é facilmente deletável. O problema é que a lei a respeito da propriedade de meios de comunicação jamais foi muito levada a sério no país.

Há alguns anos, a propriedade dos veículos de comunicação era privativa de pessoas físicas, brasileiros natos (nem naturalizado podia), sem qualquer participação de capital estrangeiro. Claro que Samuel Wainer, nascido na Bessarábia, não era brasileiro nato, mas montou um esplêndido jornal, Última Hora, que se transformou numa rede; Victor Civita, nascido em Nova York, não era brasileiro nato, mas criou a gigantesca Editora Abril; Adolpho Bloch nasceu em Jitomir, na Ucrânia, na época pertencente ao Império Russo. Criou e dirigiu a Manchete e a Rede Manchete de Televisão sem ser brasileiro nato. Roberto Marinho era brasileiro nato. Mas teve à disposição, para expandir a Rede Globo, farto aporte de capital do grupo Time-Life, que durante alguns anos foi decisivo na administração da empresa, e nomeou como seu representante um grande executivo, Joe Wallach.

A lei mudou; hoje, a participação dos sul-africanos na Editora Abril está enquadrada nos atuais parâmetros. Mas 100% de capital estrangeiro é algo que não faz parte da lei. E a discussão vai versar sobre a natureza de um empreendimento jornalístico estritamente virtual, sem papel. Vale a pena acompanhar a briga: envolverá advogados de excelente nível, servirá para aprender muito a respeito do funcionamento dos negócios de comunicação no país.

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O leão ainda ruge – Luciano Martins Costa

 

O Brasil velho sobrevive

Uma adolescente, 14 anos incompletos, manteve relações sexuais com um adulto de 29 anos, num motel de uma cidade do litoral do Piauí. Tecnicamente, é crime: estupro de vulnerável. Mas vejamos como o jornal da cidade noticiou o fato: “Safadinha de 14 anos é flagrada em motel com homem de 29”.

Descrevendo: “As informações são de que a menina, mesmo tendo 14 anos, não era mais virgem e 'dava' facilmente para quem se envolvia. Mesmo com sua vadiagem, por ser menor de idade lhe é permitido transar com menores mas não com adultos; nesse quesito, para a lei, o que vale é a idade, não o ato sexual. Uma lei, portanto, altamente feminista (…)”

O rapaz foi preso, reagiu e teve de ser algemado. “(…) já a menina vadia foi liberada para que saia atraindo mais vítimas.”

Tudo bem, é um jornal pequeno, de uma cidade pequena, exprimindo preconceitos que ainda devem prevalecer na sua região. Só que, de maneira um pouco mais requintada, há grandes meios de comunicação reforçando os preconceitos. Dando conselhos, por exemplo, sobre a maneira de vestir das mulheres, para que não atraiam estupradores – em vez de reclamar da falta de segurança que permite que os estupradores escolham suas vítimas. Ou regozijando-se quando alguém é preso porque, segundo insinuam, o novo interno será estuprado e isso, em sua opinião, o ensinará a não delinquir. Ou justificando os maus tratos a presos com a alegação de que ninguém foi para a cadeia por ser apanhado rezando.

É como se pessoas que não rezem sejam automaticamente menos respeitadoras da lei. Entretanto, este colunista, mesmo nunca tendo feito reportagem policial, já viu pessoas perigosas que não dispensam orações e sinais religiosos. E, pior, muitos veículos de comunicação justificam os maus tratos: se os presos estão presos, é porque alguma fizeram; e se fizeram os maus tratos são plenamente justificáveis. É horrível, mas é assim.

 

Expondo ao Sol

Todo esse caso do escândalo do metrô e dos trens urbanos fica em discussão por um único motivo: o segredo da documentação entregue aos órgãos competentes. Que se abram os documentos, que se permita à imprensa investigar por conta própria e a discussão vazia do “eles são mais ladrões do que nós” desaparece de uma hora para outra. Há alguns fatos que parecem claros: primeiro, que os governos tucanos de São Paulo, desde o início do mandato de Mário Covas, têm muitas explicações a dar; segundo, que deve haver investigações sobre os períodos anteriores, já que seria estranhíssimo que empresas habituadas a práticas pouco ortodoxas tenham se mantido honestas até um determinado momento, só então liberando suas tendências propinológicas. Terceiro, há poucas empresas internacionais especializadas em estradas de ferro, material ferroviário, metrôs. É possível que tenham agido também em outros estados, não apenas em São Paulo, e em outros níveis de poder, não apenas governos estaduais.

Que sejam abertos, portanto, os documentos e as denúncias já existentes. A luz do Sol, como sempre, será o grande remédio para combater a bandalheira.

 

Inúmeros números

O pessoal anda caprichando na confusão numerológica. Um grande jornal, que já se vangloriou do texto elegante, das suas informações precisas, informa:

“(…) a Prefeitura disse que já empenhou R$ 3,4 milhões em investimentos e espera fechar o ano em R$ 3,7 bilhões (…)”

E confunde milhão com bilhão na mesma frase!

O mesmo jornal, descrevendo o acidente no estádio de abertura da Copa do Mundo, bota lá:

“(…) o guindaste pesa mais de meia tonelada e tem capacidade para suportar até 1.550 toneladas (…)”

O guindaste deve ser feito de um material superleve e extremamente resistente, para levantar um peso quase três mil vezes superior ao dele.

Outro jornal impresso, um regional de boa reputação, informa no título que uma quadrilha é suspeita de desviar R$ 1,7 bilhão na venda de café. No texto cita R$ 1,7 milhão. Milhão ou bilhão? Você decide!

 

Tudo de bom

O livro é de Araquem Alcântara, um dos mais importantes fotógrafos de hoje; a grande personagem do livro é uma das mais importante cidades do país, Santos, sede do maior porto brasileiro, decisiva na política, na cultura e na economia, decisiva na nossa História; o patrocínio é da Marimex Inteligência Portuária, avaliada pela revista Transporte Moderno como Melhor Operador Logístico e de Armazenagem do Brasil. O livro é belíssimo; e o local do lançamento é também belíssimo, um prédio histórico revestido de antigos azulejos, a Casa da Frontaria Azulejada, na Rua do Comércio, 96, no centro tradicional de Santos. Vale pela importância cultural e histórica, vale pela beleza. Dia 5/12, às 19h30.

 

A grande luta

Outro excelente livro já está nas livrarias: O Valor da Vida, de Roseli Tardelli, que está na linha de frente da luta contra a Aids. Roseli comemora, com seu livro, os dez anos da Agência Aids, que dirige, destinada a combater o preconceito, informar como prevenir a doença e divulgar os avanços do tratamento. Um trabalho de fôlego, sempre bem executado, que resultou neste livro.

 

A grande Isaurinha

Muito antes de Rita Lee se tornar “a mais completa tradução” de São Paulo, outra grande cantora era o retrato do estado: Isaurinha Garcia, a Personalíssima. Gravou sucessos nacionais, simbolizou a ascensão da Rádio Record, de quem era contratada; sua vida amorosa, complicada (foi casada com o organista Walter Wanderley, e dele se separou na época em que separações conjugais eram um escândalo), recheou as revistas de fofocas; e se tornou a pessoa mais conhecida de uma família onde pontificava, entre outros, seu tio, o grande pintor Pancetti.

Isaurinha volta agora num belo livro, Mensagem, de Lulu Librandi, já nas livrarias. Uma linda foto na capa, um bom texto, com muita pesquisa e carinho. Vale a pena.

 

O grande d. Paulo

Outro livro absolutamente indispensável acaba de ser lançado: de Ricardo Carvalho, um jornalista de primeira linha, O Cardeal da resistência – as muitas vidas de d. Paulo Evaristo Arns. Carvalho é um dos jornalistas que melhor conhecem d. Paulo; e escreveu este livro comemorando os 68 anos de ordenação do futuro cardeal-arcebispo de São Paulo (e os 40 anos de sua nomeação para cardeal, pelo papa Paulo 6º).

Relembrando: nos anos mais duros da ditadura militar, d. Paulo foi a garantia de que o país não caísse ainda mais nas trevas. Ele, com o reverendo James Wright, protestante, e o rabino Henry Sobel, judeu, desafiou a ditadura promovendo um grande culto ecumênico na catedral da Sé, em São Paulo, pela alma de um jornalista assassinado pela ditadura, Vladimir Herzog. D. Paulo, o reverendo Wright e o rabino Sobel poderiam ter-se poupado: Herzog era judeu, mas não praticante; d. Paulo, Sobel e James Wright viram nele não uma pessoa de outra religião, nem um não-praticante, mas o ser humano perseguido. E por ele se colocaram à frente da multidão que pacificamente protestou contra a ditadura.

D. Paulo foi também, com James Wright, a alma do projeto Brasil Nunca Mais, que juntou num livro imprescindível os impressionantes depoimentos dos presos à Justiça Militar. Coube a ele, principalmente, escolher o autor do livro, um grande repórter, Ricardo Kotscho, que era obrigado a trabalhar em sigilo para que a espionagem do governo não sabotasse o projeto. O livro de Ricardo Carvalho sobre d. Paulo vale a pena – vale muito a pena.

 

Como…

De um grande jornal:

** “O presidente da Alstom foi intimidado a depor na CPI (…)”

A situação está ficando crítica. Antigamente, a CPI limitava-se a intimar os depoentes.

 

…é…

De uma publicação especializada em petróleo, comentando a quantia que a Petrobras tem de pagar ao governo por sua parte no Campo de Libra:

** “(…) representa quase um terço do lucro da empresa nos três primeiros semestres do ano (…)”

Isto é o que se pode chamar de um grande ano.

 

…mesmo?

De um grande jornal, seção de Esportes:

** “Ponte despacha o São Paulo. Com vitória, time vai à final da Sul-Americana”.

Tudo bem – só que a vitória da Ponte foi por 1×1.

 

Pois é assim…

A matéria de um grande jornal impresso sobre a Fórmula Um começa citando a casa de Sebastian Vettel em Staad. Deve ser “Gstaad”.

 

…que fazer?

Na matéria seguinte, sobre os Jogos Olímpicos, o embaixador britânico cita um certo “lord Cole”. Pela explicação, de que se tratava do presidente do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Londres, descobre-se que falava de Sir Sebastian Coe. A diferença é pequena, mas tão absurda como chamar Pelé de Plé. Sebastan Coe é uma glória do atletismo mundial e foi duas vezes medalha de ouro na prova dos 1.500 m, nas Olimpíadas de Moscou e Los Angeles. E bateu onze recordes mundiais de corrida.

 

As não notícias

O mundo mais uma vez se curva ante o Brasil. Não, essa história de fingir que se dá uma notícia enquanto se nega a informação deixou de ser jabuticaba e é hoje uma vertente universal do, digamos, jornalismo.

1. Beyoncé teria sido expulsa de pirâmides do Egito

Foi expulsa ou não? Se há apenas um boato, quais as evidências da expulsão e da não expulsão, para que se possa buscar o que há de verdadeiro na história? E, finalmente, que pirâmides? Terá a popstar ido a várias pirâmides do Egito para ser expulsa de todas? E qual o suposto motivo para a suposta expulsão?

2. Um carro teria passado, e atirado em dois homens, que morreram na hora.

Que morreram, morreram: é o que diz a notícia. Já o carro pode ter passado, pode não ter passado; e, se não passou, gente de fora do carro é que atirou nas vítimas. E, como nas obras abertas, o espectador é que decide como é a história, sem se preocupar nem um pouco com aquilo que a história foi.

3. Pai e filho morreram baleados em uma suposta tentativa de assalto

Que morreram, morreram; que foram baleados, foram. Se houve assalto é tema para discussão. Pode ter havido, também, algum disparo acidental, por que não? Ou tentaram matar outras pessoas e erraram o alvo. Tudo é possível.

4. Foto de píton que engoliu bêbado na Índia engana milhares na web

Bom, a cobra existe, foi fotografada e comeu bem, como se nota pela protuberância na região da barriga. Mas, conforme a legenda (a foto foi amplamente divulgada pela internet), o fato aconteceu na Índia, na Indonésia, na África do Sul. Conforme o local, comeu um bêbado que dormia na estrada, ou uma mulher desavisada, ou um veado adulto. Tirando a cobra e seu almoço, tudo o mais é duvidoso – do local ao cardápio.

 

Frases

>> De Dai Macedo, Miss Bumbum 2013, sobre sua vitória no concurso: “Fui lá e dei o meu melhor”.

>> Da jornalista Rosana Hermann: “Eu vivo engordando porque estou num regime semiaberto”.

>> Da cartunista Ciça, Cecília Pinto, sobre o helicóptero com cocaína apreendido em Minas: “Quem poderia supor que, no suposto acontecimento da suposta queda do suposto helicóptero supostamente lotado com supostos 450 kg de suposta cocaína, até a suposta gasolina da suposta aeronave fosse por conta do contribuinte?”

>> Do colunista Tutty Vasques: “A pergunta: por que diabos quase todo ministro do STF parece ter um ovo na boca quando fala?”

A constatação: a exceção é o Gilmar Mendes que, quando fala, parece ter dois ovos na boca.

 

E eu com isso?

Artista trabalha muito, é obrigado a cumprir uma série de compromissos sociais, precisa estar sempre vestido na moda, ensaia, trabalha até tarde. Mas, no noticiário, leva um vidão: passeia, curte tudo, brinca com os filhos, namora muito, faz coisas esquisitíssimas mas divertidas, passa o dia na praia.

** “Ivete Sangalo diz que se esconde do marido para comer chocolate”

** “Kevin Bacon se mostra sustentável em Nova York”

** “Filha de Sílvio Santos vai a show com o noivo”

** “Macaulay Culkin troca beijos com a namorada”

** “Luana Piovani passeia pela orla com o marido e o filho”

** “Hillary Duff leva o filho ao cabeleireiro”

** “Marina Ruy Barbosa e Carol Castor brilham em evento”

** “Corte ‘joãozinho’ de Jennifer Lawrence é aposta para o verão”

** “Milena Nogueira celebra seu aniversário na quadra do Salgueiro”

** “Filha de Nelson Mandela prestigia o pai”

** “Termina o namoro de Maria Melilo com lutador de MMA”

** “Joshua Bowen, de Revenge, curte dia de sol no Rio”

** “Thaís Ayala se diverte nas férias em Los Angeles”

** “Miley Cyrus publica foto ousada”

 

O grande título

Há empresas que acham que contratar uma agência de publicidade é um desperdício de dinheiro. Sempre existe um sobrinho que cria muito melhor do que esses medalhões caríssimos que estão por aí. E então vem o título do anúncio, supondo dizer que os preços são tão bons que o estoque será esgotado em breve:

** “Móveis por estes preços não vão durar nada!”

Há dois títulos fantásticos, de certa forma parecidos. Mas um comprova que certas coisas só podem ser feitas enquanto se está vivo:

** “Jovem que bateu a 170 km/h enviou SMS antes de morrer”

Já o outro procura provar exatamente o contrário:

** “Vendedor morto correu após ser posto para fora de boate em S. Paulo”

Há um título mostrando que certas verdades que conhecemos instintivamente podem ser comprovadas pela ciência:

** “Os ouvidos são responsáveis pela audição!”

Mas o grande título da semana não é exatamente um título. É uma frase de reportagem de rádio:

** “A vítima teve ruptura hepática dos rins”

O caro leitor, aposto, jamais soube que havia fígados embutidos nos rins.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação