Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sem distorcer, distorcendo

Frase do pastor Silas Malafaia: “O crime de opinião foi extinto e o ativismo gay quer dizer que a minha opinião sobre a união homoafetiva é crime”.

Título do portal noticioso de um grande jornal: “Silas Malafaia diz que união homoafetiva é crime”.

Talvez tenha sido um erro, de alguém que leu o texto muito por alto e elaborou o primeiro título que coube no espaço. Talvez tenha sido o efeito-manada: como é politicamente correto falar mal do pastor Malafaia, vale qualquer título que se faça contra ele. Mas é óbvio, pelo texto, que o pastor disse que há ativistas querendo transformar em crime uma opinião com a qual não concordam.

Frase do ex-presidente Lula: “Já liguei para a presidente Dilma e disse para ela (…) da falta de fiscal. Ela disse: Pode deixar que eu vou chamar o pessoal para resolver isso”.

Título de um grande jornal: “Lula diz a executivos do Peru que influi em decisões de Dilma”.

Talvez tenha sido um erro, de alguém que confundiu a reclamação de uma pessoa de prestígio (e comunica a seus interlocutores que a queixa deu resultado) com uma bravata, uma bazófia, uma tentativa de mostrar-se importante. Talvez tenha sido o efeito-manada: há grupos partidários interessados em mostrar que Lula manda em Dilma, há grupos partidários interessados em mostrar que, ao contrário do que dizem outros grupos, Lula e Dilma se entendem perfeitamente, há grupos partidários interessados em mostrar que, sem os conselhos de Lula, a presidente Dilma é incapaz de tomar qualquer decisão, por simples que seja. Mas é óbvio, pelo texto, que Lula diz ter feito uma queixa à presidente (que o atende prontamente ao telefone, e isso nunca foi segredo, nem é errado) e que ela prometeu levar em conta as ponderações que lhe foram feitas.

O pior é que, tanto no noticiário impresso quanto no virtual, o título é mais lido do que a notícia. Como agravante, o noticiário virtual não dá aos títulos a mesma importância que lhes é concedida nos meios impressos. Entrou no espaço (às vezes nem isso), está ótimo: bola pra frente, que o importante é sair alguns segundos na frente da concorrência – sabe-se lá para que, mas deve ser bom.

Há alguns anos, quando o então candidato Lula comandava a Caravana da Cidadania e o presidente era Itamar Franco, Lula fez um comentário absolutamente normal, em linguagem coloquial, sobre as oportunidades que, a seu ver, Itamar estava perdendo. As palavras que usou poderiam normalmente ser consideradas ofensivas; mas, em determinado contexto – algo como “esse (…) do nosso goleiro está pegando tudo!” – são elogiosas. Definitivamente, Lula não estava insultando Itamar nem sua família; definitivamente, o que Lula dizia de Itamar não se referia à conduta de dona Itália, a senhora mãe do então presidente. Mas houve quem forçasse a barra, forçando o país a discutir insultos que não haviam sido proferidos.

Tão ruim quanto distorcer o que foi dito para obter um título melhor é levar ao pé da letra uma expressão coloquial, para criar constrangimentos (ou criando-os do mesmo jeito, mesmo sem intenção). Quando alguém se refere a um jogador de futebol como perna de pau, ou a um boxeador como queixo de vidro, certamente não está pensando numa prótese.

De qualquer forma, surge então o principal problema: além da criação de constrangimentos, o desvio de foco dos debates. Pois quando se discute o problema errado a solução será sempre errada.

 

O passado passou

Atenção, colegas: o Superior Tribunal de Justiça decidiu pelo direito ao esquecimento. Da mesma forma como um eventual crime é prescrito depois de determinado período, fatos passados não devem ser relembrados constantemente, como se fossem uma espécie de aposto do nome do personagem. Ninguém pode ser obrigado a conviver para sempre com erros do longínquo passado.

As decisões foram adotadas em dois casos diferentes: o de uma pessoa acusada (processada, julgada e absolvida) no caso da Chacina da Candelária, e o de uma jovem assassinada em 1958, num caso que mereceu ampla repercussão da imprensa em geral, capitaneada pelas reportagens da revista O Cruzeiro. O processo, no episódio da moça assassinada, foi movido por sua própria família, alegando que os fatos já não eram mais de conhecimento popular e que revivê-los apenas traria de volta as angústias e sofrimentos por que passou na época.

Diz o ministro Luiz Eduardo Salomão, relator dos dois casos no STJ:

“Não se pode, pois, nestes casos, permitir a eternização da informação. Especificamente no que concerne ao confronto entre o direito de informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos absolvidos em processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em regra, ao último”.

Não há uma definição do prazo que faz com que o envolvido em algum episódio ganhe o direito ao esquecimento. Cada caso é um caso (e nem sempre o princípio do direito ao esquecimento poderá ser aplicado). O importante é saber que há uma nova tendência na análise de eventuais abusos que prejudiquem a imagem de personagens de notícias ou lhes causem qualquer tipo de prejuízo.

 

Preconceito, sempre

Na foto de um grande portal noticioso, a tenista Maria Sharapova aparece durante num bom lance de mais uma partida que venceu. No título, informa-se que a tenista “só não vence a celulite”.

É o preconceito velho de guerra: este colunista nunca viu críticas à estética das pernas de Garrincha, exceto quando se discutiam problemas médicos e as causas de, mesmo sendo tortas, permitirem dribles incríveis e rápidas arrancadas. Mas Maria Sharapova não pode apenas ser uma das maiores tenistas do mundo: o importante, para alguns meios de comunicação, é a celulite. Então, tá.

 

A culpa da vítima

E, por falar em preconceito, a polícia da capital chinesa, Pequim, iniciou campanha contra o assédio sexual. Sugere às mulheres que não usem minissaias ou outras roupas “leves demais” em ônibus ou no metrô. Outra sugestão: que cubram a parte visível das pernas com a bolsa ou com jornais.

Como de hábito, a culpa é das vítimas. No Brasil já houve campanhas (que apareceram até mesmo na internet) em que as mulheres eram aconselhadas a usar cabelos curtos, blusas sem decotes, tudo para evitar estupros. Prender os estupradores, nem pensar.

 

Dinheiro nos ralos

Responda depressa: o caro colega tem o direito de escolher a empresa que lhe fornecerá água encanada e receberá o esgoto de sua residência? Não? Então, se está submetido a um monopólio, por que o governo de São Paulo vai gastar R$ 120 milhões por ano em propaganda de sua empresa de águas e esgotos?

Pois é. Esquisito! E há coisas ainda mais estranhas. No ano que vem haverá eleições. Pois não é que o governo tucano paulista retirou da sua empresa de águas e esgotos a responsabilidade pela escolha das agências que a atenderão e assumiu diretamente o pesado encargo de julgar a concorrência?

Talvez o tempo disponível da diretoria da empresa de águas e esgotos esteja escasso, diante da magnitude de suas tarefas, e o governo, preocupado em não sobrecarregá-la, decidiu aproveitar suas próprias horas ociosas para fazer o serviço. É. Pensando bem, deve ser isso.

 

Perdendo amigos – Robert Appy

É gente rara: um jornalista trabalhando numa só empresa há 60 anos, um francês escrevendo em português de boa qualidade, um estrangeiro ouvido com respeito pelas autoridades financeiras do Brasil. Foi um bom período que se acabou: Robert Appy, redator de Economia de O Estado de S.Paulo desde 1953, morreu há dias, aos 87 anos.

Appy foi um dos principais colaboradores do lendário Frederick Heller, notável jornalista austríaco que criou a primeira editoria de Economia da imprensa brasileira, a “Atualidade Econômica”, no Estadão. Um dos filhos de Appy, Bernard, trabalhou por sete anos no Ministério da Fazenda, como secretário-executivo, secretário de Política Econômica e secretário extraordinário de Reformas Econômico-Fiscais. Um de seus irmãos, Jean-Pierre, foi por muitos anos importante funcionário da Fotografia do Estadão.

Uma curiosidade, que mostra bem como já funcionaram os grandes jornais brasileiros: quem fez a entrevista de emprego com Appy, para o Estadão, foi Fernand Braudel, notável pensador francês, especialista em Brasil.

 

Perdendo amigos – Édson Flosi

Édson Flosi foi um dos primeiros jornalistas especializados em polícia a perceber a necessidade de conhecer os princípios básicos do Direito. Repórter de polícia por 30 anos, na Folha de S.Paulo, Notícias Populares, O Globo, Jornal da Tarde, Flosi estudou Direito e trabalhou por bom tempo como advogado criminalista. Mais tarde, dedicou-se à carreira acadêmica e deu aulas de Jornalismo numa universidade. Escreveu três livros, Por trás da notícia, O assalto dos 500 milhões e A renúncia do presidente Jânio Quadros.

 

De jornalista, sobre jornalista

O personagem é excelente: Armênio Guedes, 95 anos, com passagem nos principais jornais do país, uma vida dedicada ao jornalismo e à política de esquerda. O autor é Sandro Vaia, ex-diretor de Redação de O Estado de S.Paulo, duro crítico da esquerda brasileira. Da reunião dos dois talentos nasce Armênio Guedes – sereno guerreiro da liberdade, com lançamento previsto para o dia 17, segunda-feira, às 18h30, na Livraria da Vila da Alameda Lorena, 1731, São Paulo. Para quem gosta de jornalismo e de bons textos, um livro indispensável.

 

De historiador, sobre História

O historiador Jaime Pinsky acaba de lançar um livro que tem tudo para transformar-se em sucesso: Por que gostamos de história. O tema é interessante; e o autor é um de seus principais conhecedores.

 

Última flor

Coisas que andaram sendo publicadas nos meios de comunicação e que poderiam perfeitamente ser escritas de maneira correta:

1. – “Aferir” é medir. “Auferir” é ganhar.

2. – Ninguém é socorrido “ao hospital”. Pode ser levado ao hospital. Pode ser socorrido no hospital. Pode ser socorrido “ao levar um tiro”. Mas sem misturas.

3. – “Flagrar” é pegar em flagrante. “Deflagrar” é “fazer arder ou arder, subitamente, em chamas ou explosões (…)”. Ou seja, “Microsoft e FBI deflagram rede que roubou mais de US$ 500 mi de contas bancárias” não quer dizer nada.

4. – Apesar das mudanças ocorridas no mundo, o sujeito e o predicado continuam concordando. E se o resto da frase for correto, então, fica bem mais fácil entendê-la. Exemplo atual: “(…) teve uma reunião com os diretores onde foi discutido todos os pontos de sua saída da empresa após 20 anos”.

Este colunista trabalhou com feras como Ruy Onaga, Luiz Carlos Cardoso, Raul Drewnick – gente fina, e além disso competentíssimos. Depois de passar por eles, o texto ficava impecável. Mas será tão difícil assim trabalhar um pouquinho na notícia para deixá-la, ao menos, compreensível?

 

Como…

Do portal noticioso de um grande jornal:

** “Morto aos 23, alemão, Georg Büchner tem duas pessas em cartaz em SP”.

Duas pessas, cim, çenhor. E, se houvece mais três, ceriam sinco pessas.

 

…é…

De um grande jornal impresso, de circulação nacional:

** “As vendas de manufaturados representaram apenas 36,9% do total embarcado. A receita dos básicos correspondeu a 47,6% do total e a dos semimanufaturados a 31,2%”.

Quando este colunista estudou aritmética, 100% equivalia ao total. Logo, em algum lugar dos cálculos do jornal, deve haver dupla contagem. Mas onde?

 

…mesmo?

De um grande portal noticioso:

** “Rubens Paiva foi autuado por estacionar em vaga especial”.

A notícia em si é daquelas que só acontecem no Brasil. Embora use cadeira de rodas o tempo todo, embora tenha a autorização oficial para estacionar o carro em vagas para deficientes físicos, embora coloque a autorização em lugar visível, já foi multado várias vezes. E seus recursos, comprovando a tese de que aprovar ou rejeitar recursos é questão de cotas, vêm sendo sucessivamente rejeitados.

Mas o personagem da notícia é Marcelo Rubens Paiva, o escritor. Rubens Paiva é seu pai, preso e assassinado pela ditadura militar há cerca de 40 anos.

 

Frases

Do blogueiro Ricardo Noblat:

** “Se a imprensa não existisse os governos seriam mais felizes.”

Do repórter e escritor Cláudio Tognolli:

** “Na Arábia Saudita, bandido é amputado: no Brasil, é deputado.”

Do jornalista e dramaturgo Oswaldo Mendes:

** “O jogador chega ao clube e diz que veio para ajudar. Chega à seleção e diz que veio para ajudar. E até o Neymar diz que chega ao Barcelona para ajudar. Ninguém chega pra jogar, caramba? O politicamente correto é um porre!”

Do compositor Júnior Bueno:

** “Jornalistas, vamos parar de usar a palavra ‘companheiro/a’ pra casais do mesmo sexo? Somos gays, não somos da CUT.”

 

As não notícias

Existe uma maneira simples de evitar o cansativo trabalho de apuração e os riscos de assumir a responsabilidade por divulgar uma notícia: é só dizer que a notícia talvez tenha acontecido, talvez não, ou pode ser que eventualmente, sabe-se lá, tenha algum fundo de verdade. Ou não.

1. – Texto: “Uma tentativa de sequestro-relâmpago na Zona Sul de São Paulo terminou com um suspeito morto e outro detido (…)”

Os cavalheiros capturaram a jovem que dirigia o carro, fizeram-na de refém, atiraram na polícia. E continuam sendo tratados como “suspeitos”.

2. – Paris, filha de Michael Jackson, tentou suicídio, foi internada, recuperou-se. Mãe e hospital confirmaram a tentativa de suicídio.

Títulos:

** “Filha de Michael Jackson teria tentado suicídio”

** “Filha de Michael Jackson é internada após suposta tentativa de suicídio”

3. – O vídeo mostra um cavalheiro de blusa vermelha atirando na vítima e matando-a. O portal noticioso tem link do vídeo; todos podem vê-lo.

Por que o assassino vira “suspeito” após todo mundo assistir ao crime que ele acaba de cometer???

 

E eu com isso?

As notícias viraram não-notícias; em compensação, as não-notícias viraram notícias, confirmadas, caprichadas, com fotos, com revelações espetaculares.

** “Tenho a periquita mais desejada do Brasil”, diz Gaby Amarantos

** “Katy Perry circula de bobes no cabelo em Los Angeles”

** “Isis Valverde sai para jantar com namorado”

** “Justin Bieber é visto cercado de garotas”

** “Murilo Benício usa bermuda justinha”

** “Shakira adora andar descalça”

** “Cláudio Heinrich surfa na praia da Barra”

** “Keanu Reeves passeia de moto na Califórnia”

** “Carolinie Figueiredo almoça com Guga Coelho e sua filha”

** “Angelina Jolie acompanha Brad Pitt a première de filme em Berlim”

** “Caio Castro mostra foto da infância”

** “Beyoncé espanta boato de gravidez”

 

O grande título

O material é caprichado. Começa com algo que parece uma crítica ao trabalho de uma atriz, embora o fato merecesse elogios:

** “Mulher de Tim Burton fica irreconhecível como Elizabeth Taylor em filme”

Ainda bem: se ela não se transformasse em Liz Taylor, seria uma péssima atriz.

E um título notável mostra que a capacidade de Neymar de surpreender os repórteres esportivos parece não ter fim:

** “Neymar fala com camisa do Barça”

Que será que a camisa do Barça respondeu?

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação