Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As novas tarefas do jornalismo em tempo de coronavírus

(Foto: Reprodução Fenaj)

Ao ideologizar a questão do confinamento, Jair Bolsonaro antecipou a discussão sobre as consequências econômicas da pandemia do coronavírus ao levantar o fantasma do caos econômico e do apocalipse empregatício com o aparente objetivo de tentar reanimar os adeptos do “discurso do ódio” e os empresários assustados com a queda dos negócios.

Essa mudança no contexto político nacional no momento em que a doença começa a ganhar um ritmo acelerado nas principais capitais brasileiras colocou a imprensa diante do dilema de dar meia volta em toda a campanha a favor do confinamento social ou entrar em rota de colisão com o capitão-presidente.

A Folha de S.Paulo e a TV Globo foram as empresas que reagiram mais rapidamente e passaram a uma crítica sistemática das decisões oficiais no combate à pandemia, assumindo um protagonismo que vai azedar ainda mais as relações entre duas das mais importantes organizações da mídia nacional e o Palácio do Planalto.

Ao ideologizar o debate sobre o combate à pandemia, Bolsonaro tenta recuperar os pontos perdidos nas pesquisas de popularidade em favor de governadores estaduais, prefeitos das grandes capitais e até mesmo do seu ministro da Saúde. Mas ele provavelmente não se deu conta de que a dinâmica da mobilização nacional contra o coronavírus pode conduzir a uma mudança significativa na economia e nos comportamentos sociais da população brasileira.

Folha e Globo optaram por uma estratégia editorial que pode levá-las à necessidade de rever alguns procedimentos jornalísticos, tendo em vista as características especiais do tipo de crise que o coronavírus está criando no planeta inteiro. É o primeiro grande trauma social, político, econômico e científico de natureza global, incontrolável e com fluxos informativos em tempo real.

Tudo indica que raríssimos países conseguirão sair incólumes da disseminação do vírus, mas a contaminação não acontece simultaneamente e não segue o direcionamento de epidemias anteriores. O coronavírus migra dos países ricos para os pobres, que tradicionalmente sempre estiveram na origem de focos de contágio de enfermidades infecciosas. Além disso, o coronavírus registra, no momento, diferentes estágios de evolução; alguns países já consideram a epidemia em vias de desaparecimento e, em outros, ela ainda nem começou.

As quatro fases da pandemia

Segundo especialistas em saúde pública, uma pandemia normalmente passa por quatro estágios antes de desaparecer. O primeiro é o da tomada de consciência diante da gravidade potencial da doença. O segundo é o do compartilhamento das estratégias e medicamentos no combate ao vírus. O terceiro é quando a solidariedade entre as pessoas surge como o principal recurso contra o caos hospitalar e contra a desorganização da economia. A quarta e última fase acontece quando os sobreviventes enfrentam a dura tarefa de reconstruir as estruturas sociais, políticas e econômicas destroçadas pela pandemia.

No primeiro e no segundo estágios, o trabalho da imprensa obedece às normas gerais de produção, edição e publicação de hard news, ou seja, fatos novos que documentam o surgimento e evolução da intensidade da pandemia, bem como formas de combater os efeitos da doença. É a etapa que está sendo vivida por um grande número de países, especialmente os Estados Unidos e nações da Europa. O terceiro estágio marca uma mudança significativa nos dilemas a serem enfrentados pelos veículos de comunicação jornalística. As hard news já não são mais tão importantes, porque o essencial são informações sobre como as populações afetadas devem conviver com o confinamento longo, com as limitações de consumo, com a insegurança hospitalar e com a necessidade de apoio mútuo.

O jornalismo foi exemplar na hora de disseminar notícias e informações visando criar uma consciência da gravidade da pandemia e no compartilhamento das estratégias de combate ao coronavírus. Mas, agora, ele enfrenta o desafio de se reinventar para mergulhar no esforço de mudar comportamentos e rotinas de uma sociedade acostumada ao individualismo. É uma missão que foge aos padrões tradicionais da profissão, porque é mais voltada para o engajamento social do jornalismo e à orientação informativa do público do que para a divulgação de hard news.

Mudar comportamentos e valores não é uma tarefa simples e nem rápida. Normalmente, seria uma atribuição do marketing social, apoiado pela sociologia e psicologia, mas, num mundo onde a informação passou a ter um papel primordial no funcionamento da sociedade, cabe ao jornalismo formatar as mensagens que circularão nas plataformas digitais. O jornalismo é o curador das informações que serão distribuídas porque ele sabe, ou pelo menos deveria saber, qual é o formato mais facilmente assimilável por uma massa de usuários de redes sociais, por exemplo.

Engajamento jornalístico

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, os moradores de bairros de classe média afluente já estão começando a experimentar os desafios da solidariedade. O início é sempre promissor porque gera situações inovadoras e envolventes do ponto de vista emotivo, facilmente documentadas pela imprensa. Mas, com o passar do tempo, o ineditismo desaparece e haverá necessidade de intensificar o fluxo de informações para que as pessoas continuem criativas na manutenção da solidariedade no condomínio, rua, bairro ou cidade. É aí que o jornalismo passa a ser fundamental como alimentador de fatos, dados e eventos capazes de dar origem a novas ações comunitárias.

A quarta e última etapa de uma pandemia vai ser construída com base no êxito ou fracasso do desenvolvimento de um clima solidário no país porque envolve a necessidade de uma mobilização nacional pela reconstrução do que foi afetado pela pandemia do coronavírus. Essa ação vai exigir o surgimento de uma liderança carismática e com alto poder agregador, enquanto a imprensa passa a ter um papel chave na criação de um consenso nacional em torno do esforço de reconstrução.

Ao criticar o confinamento, Bolsonaro e seus seguidores inverteram as prioridades porque focaram na reorganização econômica antes de pensar na geração de uma solidariedade nacional capaz de unificar o país em torno de um objetivo acima das legendas e ideologias. Por sorte, a imprensa parece não ter embarcado na jogada bolsonarista, pelo menos por enquanto.

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Carlos Castilho é jornalista graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.