Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bolsonaro e sua coerência inabalável

(Foto: Marcos Corrêa/PR/Fotos Públicas)

Há poucos dias assisti a uma live que me reapresentou a fábula do escorpião e do sapo. Àqueles que não a conhecem, trata-se de uma história na qual o escorpião pede ajuda ao sapo para atravessar um rio.

O escorpião queria subir nas costas do sapo para realizar a travessia. O sapo evidentemente hesita, já que o escorpião não é conhecido por ser um animal dócil e gentil. O escorpião, entretanto, argumenta que não seria lógico picar o sapo durante a travessia, pois ambos iriam se afogar.

Aqui está a minha interpretação: o escorpião fez um pacto de não agressão com o sapo. O sapo, que consegue ver o sentido do argumento do escorpião, concorda em atravessar o escorpião. Quando estavam no meio da travessia, o escorpião ferroa o sapo, fazendo com que ambos se afoguem. Em seu último suspiro, o sapo pergunta ao escorpião: “Por que fez isso?”. O escorpião, por sua vez, responde: “É a minha natureza”.

O meu palpite é que, como apontarei logo mais, essa fábula serve para compreender a história do Brasil na segunda metade do século XX, bem como a nossa atual situação. Sim, àqueles que estão pensando isso, concordo. Estou forçando a barra numa fábula infantil para compreender a nossa atual situação. Entretanto, ao vermos o quão infantilizados são aqueles que se apropriaram das cores nacionais, ao vermos o quão infantilizado é o líder máximo da nação, ao vermos o quão infantilizados são os parlamentares da “família real”, eu diria que nada mais apropriado que um conto infantil.

Eu sugeriria pensar o início da Ditadura Militar com o sapo aceitando carregar o escorpião. Por sapo, entendo uma plêiade de sujeitos e grupos, dentre eles: o Congresso Nacional, que elegeu, indiretamente, um militar para ocupar a Presidência após a declaração golpista de vacância do cargo; Carlos Lacerda, que preferia ver o Brasil queimar a aceitar uma derrota eleitoral (discordo da narrativa tradicional que coloca o Brizola como incendiário, visto que foi Lacerda quem atacou as instituições e conclamou o apoio externo para a inexistente ameaça comunista); ainda, o Brasil como país, visto que os períodos que se seguiram poderiam ser compreendidos como o afogamento nacional (torturas, espancamentos, execuções sumárias, desaparecimentos forçados, crises econômicas profundas).

E o escorpião? Deixo a pergunta ser respondida pela imaginação do leitor em potencial (digo “em potencial” porque, após o segundo parágrafo, acredito que cerca de 30% dos possíveis leitores tenham já parado a leitura sob o pretexto de ser o autor do texto um comunista – contém ironia). Sobre a “natureza” do escorpião, esta levou aos Atos Institucionais (dentre eles, o famoso AI-5), à imposição de duas constituições, à torturas, à incompetência governamental generalizada, à escândalos de corrupção abafados, etc.

É interessante que, no ato da ferroada, uma série de pessoas saíram às ruas numa marcha que ficaria conhecida como “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Não sei de qual Deus nem de qual liberdade falavam. Provavelmente falavam do Deus da bancada evangélica atual, que nada tem de cristão. Mas, pensando na fábula, imagino que seria como um sapo que, após ser ferroado e se afogar, chegasse aos céus defendendo o escorpião com toda a sua energia. “O veneno era bom, pois poderia ter me dado imunidade”. “O escorpião me picou porque, caso eu chegasse do outro lado do rio, poderia ter sido morto por uma cobra comunista”. Poderia, ainda, dizer: “O escorpião fez o que fez porque agia em nome da Família e da Liberdade”. De toda sorte, não poderíamos culpar o escorpião. Ele apenas agiu de acordo com sua natureza.

E se, após o sapo ter se afogado, os sapos tivessem se reunido e elaborado um “Pacto de Não Agressão” entre escorpiões e sapos, com a concordância dos escorpiões? Já deixando de lado a separação entre a realidade histórico-política brasileira, poderíamos dizer que esse pacto foi promulgado em 1988.

Durante mais de 2 décadas esse pacto funcionou, dentro de uma noção bastante forçada de “funcionamento” (não nos esqueçamos de que esse pacto contém um ato de disposições transitórias e, se esse ato de transição ainda vige, não seria absurdo inferir que ainda estamos na ditadura, em uma transição de 32 anos para uma democracia que nunca chegou).

Entretanto, em um certo momento, os sapos resolveram eleger um escorpião. Mas não era um escorpião qualquer. Era um escorpião que sempre se posicionou contra o “Pacto de Não Agressão”. Mais ainda, ele dizia que os escorpiões mataram poucos sapos. Deveriam ter matado uns 30 mil sapos. Disse também outras coisas, tendo-as repetido abertamente durante décadas.

Durante a sua campanha, Bolsonaro, digo, o escorpião, deixou claro que não tinha compromisso com minorias, com Direitos Humanos e com preceitos básicos da democracia. Este escorpião era conhecido por negar a realidade, mesmo ela estando clara. Ainda sobre este escorpião, ele sempre foi fortemente ligado a milícias e grupos de extermínio de seu estado, já tendo condecorado e enaltecido pessoas desta estirpe.

Bom, diante disso, talvez eu mudasse um pouco a fábula do escorpião e do sapo após 88. Sugeriria que o escorpião avisou ao sapo que iria picá-lo. Disse isso mais de uma vez. Ameaçou picar o sapo antes mesmo de começar a travessia. Ainda assim o sapo escolheu colocá-lo nas costas. Diante disso, não me surpreendo com ameaças ao STF feitas por escorpiões e endossadas por escorpiões (referência à nota do SNI, ops, GSI). Não me surpreendo com escorpiões querendo colocar os vagabundos dos sapos na cadeia, a começar pelo STF. É a natureza dos escorpiões. Não poderiam eles agir de modo diferente. Seria como esperar democracia de quem sempre defendeu regimes autoritários. O que me surpreende são os sapos que se recusaram a ver isso.

Concluo dizendo que Bolsonaro é absolutamente coerente com tudo que pregou e defendeu. O problema por parte de alguns sapos foi imaginar o contrário.

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Ricardo Manoel de Oliveira Morais é doutor em Direito Político pela UFMG. Mestre em Filosofia Política pela UFMG. Bacharel em Direito (FDMC) e em Filosofia (FAJE). Professor.