Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O legado de Vlado: sobre esperançar, jornalismo e democracia

Para vencer os desafios atuais, é preciso mais que palavras. (Foto: Anna Shvets/ Pexels)

Quarenta e sete anos separam o momento atual de 1975, ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi torturado e assassinado pelo regime militar no DOI-Codi, em São Paulo. Vlado, como era conhecido, tinha dois filhos, foi professor da Universidade de São Paulo (USP) e teatrólogo. Sua família veio para o Brasil em 1946, fugindo do nazismo na Europa. E não sem propósito, a data de hoje – 25 de outubro – que foi um marco na redemocratização do país, também veio a ser instituída como o Dia da Democracia no Brasil.

Sem buscar um paralelo estanque, pela impossibilidade de comparar períodos distintos da história sem ressalvar os respectivos contextos, precisamos falar sobre Vlado, sobre jornalismo e, principalmente, sobre democracia – especialmente em uma semana tão decisiva para o futuro do Brasil. Como diz a frase já conhecida: “Lembrar para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.

Quando foi assassinado, Vlado tinha 38 anos, era ligado ao Partido Comunista do Brasil e atuava como jornalista. Ele era uma importante voz crítica ao regime militar e acabou sendo violentamente silenciado, apesar de ter se apresentado de forma voluntária ao DOI-Codi. Mas, Herzog foi assassinado durante uma ditadura militar – não que isso justifique tamanha atrocidade – mas hoje, graças à quebra do silêncio imposto à base de sangue e censura, sabemos o que foi aquele regime: sem quaisquer respeito aos direitos civis básicos, sem liberdades, sem informações. Um regime marcado pela ignorância e pelo medo: da tortura, da morte, do desaparecimento forçado.

Após um salto de quase 50 anos no tempo, chegamos ao Brasil atual. Com uma democracia recente, já que a ditadura se estendeu até 1985, ainda sofremos as consequências dos anos de chumbo, mas vivemos em um país teoricamente livre: em que há uma Constituição Cidadã vigente (nem sempre respeitada, é verdade); em que as pessoas têm direitos e liberdades básicas minimamente preservadas; e em que não se admitem desmandos autocráticos de quaisquer ordens.

Apesar disso, no entanto, sabe-se que algo não vai bem. Desde 2013, jornalistas vêm enfrentando uma escalada de violência ao exercer suas funções para informar a sociedade – notadamente acentuada a partir de 2018. Não por acaso, este período coincide com ascensão de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, o que inaugurou um período de profundo desrespeito e intolerância à atividade jornalística no país, entre outros retrocessos.

Somente a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) documentou mais de 800 ataques contra jornalistas entre 2020 e 2021. A organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), em seu ranking sobre a liberdade de imprensa em 180 países democráticos, colocou o Brasil na 110ª posição; bem abaixo de países como Israel e Ucrânia e a um passo de entrar na condição de “situação muito grave” em relação à atuação da imprensa. Mas, mesmo em 2022, não passamos uma semana sem testemunhar algum tipo de agressão e/ou tentativa de silenciamento contra jornalistas.

Em um artigo, Anita R. Gohdes e Sabine C. Carey (2017) comparam a violência contra jornalistas à morte de canários em minas de carvão – já que estes seriam os primeiros a morrer diante do vazamento de gases tóxicos. Para as autoras, o aumento dos ataques anti-imprensa seria um forte indicativo do acirramento de processos de repressão e uma ameaça, em última instância, à própria democracia. Algo, infelizmente, muito próximo do que se vive atualmente no contexto brasileiro.

O que se vive no Brasil de hoje é, portanto, um cenário que inspira atenção. Bolsonaro se insurge contra jornalistas, mina a confiança da sociedade nos profissionais e no jornalismo como um todo e isso não é uma ação isolada. Ela integra uma estratégia que se fortalece diante do obscurecimento da sociedade.

Em resumo, a informação que o jornalista não consegue obter do presidente e/ou de qualquer outro ocupante de funções públicas – por força de ataques e/ou performances antidemocráticas – faz falta na vida dos cidadãos e cidadãs. Mais do que isso, processos que alimentam e geram desinformação não favorecem a tomada consciente de decisões, nem tampouco o exercício do direito ao voto. E isso corrói a democracia.

O sinal de alerta soou há tempos. A sociedade brasileira não suporta mais conviver com tantas carências – econômica, educacional, cultural, etc… No front, as narrativas estão postas e o mais elementar exercício de questionamento faz ruir certos ensaios antidemocráticos. Mas, para superar o obscurecimento, é necessário mais do que palavras escritas. Precisamos (sempre) de mais jornalismo ético e comprometido, mas, principalmente, precisamos transpor barreiras, buscar o diálogo com o diferente, estabelecer novos consensos, “esperançar”.

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Aline Rios Doutoranda no  PPGJOR e pesquisadora do objETHOS.