Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O jornalismo como teoria democrática

Tem esta reflexão o propósito de sondar compreensões em torno de uma provável síntese entre duas concepções paradoxais do jornalismo. A primeira, de que se trata de uma atividade mercantil-burguesa a serviço da dominação; a segunda, de que se trata do próprio exercício de um dos mais sagrados valores cívicos, a liberdade de expressão. A hipótese de trabalho é a de que o jornalismo, por ser uma atividade de forte vínculo social jamais se renderá inteiramente ao comando dos poderes espoliadores das massas, sob pena de matar a sua própria galinha dos ovos de ouro, que é a sua vocação para o interesse público; para a utilidade pública; e para se desempenhar como serviço público, a despeito das vicissitudes, tanto as que decorrem da prática do jornalismo como uma atividade ‘pública’ pelo setor privado, quanto no que se refere à prática do jornalismo como uma atividade ‘liberal’ por parte de entes estatais, governamentais ou partidarizados. A hipótese, portanto, é de que o jornalismo, independentemente da natureza do dispositivo econômico ou institucional que o abrigue, cumprirá inevitavelmente um papel emancipatório. É preciso ressaltar que tanto o jornalismo de mercado quanto o jornalismo de Estado são objetos de negações quanto à sua autenticidade. O fato é que ambos têm os seus ‘constrangimentos organizacionais’ [expressão de Warren Breed, apud TRAQUINA, N. Jornalismo, questões, teorias e histórias. Lisboa, Vega, 1998] atávicos.

De partida, a premissa de que objetivações, tais como: liberdade, cidadania, democracia e justiça são construções processuais-construtivas e, portanto, protorrealidades que nunca atingirão um estágio de acabamento terminal. A própria noção de sociedade estaria submetida a esse entendimento, sob pena de termos permanentemente de negar a existência [autêntica] da liberdade, da cidadania, da democracia e da justiça. Por extensão, a mesma premissa se aplica ao jornalismo, ainda longe dos tentáculos colonizadores do mundo sistêmico [do poder e do dinheiro]; ainda longe de estar inteiramente associado ao mundo da vida [de um cotidiano não-alienado], mas nem por isso objeto de negação total, sob pena de termos de admitir que não há jornalismo real. O jornalismo seria para todo sempre uma ‘falsa consciência’ [estamos nos referindo ao referente conceito marxista. O jornalismo, além de ser uma falsa consciência em si, seria também um aparelho ideológico (cf. Althusser) disseminador de ilusões da realidade], e jamais resgatável de tal descolamento de sua missão social.

É em torno dessa dedução lógica emanada da lógica construtivista que pretendemos construir a hipótese maior de que o jornalismo, embora forneça peso para os dois pratos de uma balança, está fadado a pender para o lado emancipatório, aquele que o caracteriza como provedor de apropriações coletivas de parte do seu trabalho e que, por ser assim, possibilita o seu entendimento dentro de uma teoria social, da qual poder-se-ia inferir uma teoria democrática.

O jornalismo, como qualquer atividade humana e social concebida no contexto de um embate entre forças emancipatórias e forças conservadoras, acaba sendo tangido pelas contradições históricas, atendendo a dois senhores ao mesmo tempo. Incompletas e tendenciosas seriam, portanto, compreensões maniqueístas dessa atividade, ora vista como desempenhando um papel reacionário, ora vista como força progressista, impulsionadora dos avanços da Humanidade. Existiria para esse par-oposicional um lado vencedor ou uma síntese dialética, nos moldes da equação tese-antítese-síntese? No Brasil, é lugar comum nas redações de ‘mercado’ a qualificação do jornalista que atua no ‘setor público’ como ‘chapa-branca’, a serviço de um jornalismo ‘chapa-branca’.

Numerosos aportes teóricos poderiam nos servir nessa busca de compreensão dos fenômenos em que se insere o jornalismo. Marx e Gramsci parecem-nos, no entanto, os autores apropriados para nos dar suporte, não por uma escolha que, a priori, possa ser tachada de ideológica, mas pela adequação das categorias conceituais para a análise das contradições que se colocam, de um lado, entre e sociedade política e, de outro, sociedade civil; entre a expropriação do trabalho, de um lado; e, de outro, a coletivização da produtividade. Contraponto similar é que o propõe Habermas, entre mundo sistêmico e mundo vivido. Habermas, no entanto, vislumbra a possibilidade – ainda que utópica – de um reengate entre o mundo sistêmico (da Política e da Economia) e o mundo da vida (Lebenswelt). Em outras palavras, seria necessário partir das denúncias de Marx (alienação) e de Gramsci (hegemonia), mas não estancar na negação da vida, por não estarmos vivendo uma vida autêntica, uma liberdade autêntica, uma democracia autêntica, uma sociedade autêntica. Nem teríamos sequer um país, uma vez que o Brasil é ainda um país-vítima dos jogos neo-coloniais e neo-imperiais.

Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, propõe como atitude reconciliadora (uma hermenêutica diatópica) de saberes aparentemente antitéticos – ciência e senso comum – que ele denomina de dupla ruptura epistemológica, capaz de tanto levar em conta tanto o mundo da vida quanto levar ao mundo da vida o saber científico. Uma ciência pós-moderna seria aquela que, sem perder o senso crítico, seria capaz de uma auto-reflexão [crítica], de modo a não pairar acima do senso comum, mas até tendo-o como objetivo a ser atingido: democratizar o saber científico, de modo que ele não atue na sociedade como um poder autonomizado [mundo sistêmico], mas a serviço dela: ‘O que se pretende é um novo senso comum com mais sentido, ainda que menos comum [Boaventura de Sousa Santos, Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro, Graal, 1989].’

Por analogia, e por hipótese, seria esdrúxulo conceber a existência de dois jornalismos: um, descolado do mundo da vida, aquele que, mesmo quando noticiando o próprio cotidiano consensual, o estaria fazendo em favor de estruturas dominantes (mundo sistêmico). Não se espera que o jornalismo se confunda com o senso comum, já que reúne habilidades e competências para cobrir os fatos em quantidade e em qualidade acima dos limites dos atores que dispõem tão somente da circulação natural das ‘notícias’ no dia-a-dia. Espera-se dele, no entanto, que se confunda com o senso comum, na medida em que é próprio da sua função/missão transferir os ‘novos fatos’ (news) ao máximo alcance. Estruturado sistemicamente e até sendo um poder econômico – com reflexos políticos –, o jornalismo perderia, no entanto, o seu vínculo social e trairia o seu ‘público’ se, a serviço desse senhor, apresentasse, porém, ‘fatos’ acrescidos de distorções e engôdos, funcionando, enfim, não como um serviço público em favor do esclarecimento (Aufklärung), mas como uma indústria de produção massiva de falsas-consciências.

Do jornalismo e dos jornalistas se espera, portanto, zelo por princípios da profissão, mas também valores morais (verdade, objetividade e isenção); e rigor nos procedimentos éticos. O jornalismo é, consequentemente, um campo do dever, da obrigação moral (ética) e, em decorrência, um campo dotado de claros compromissos éticos e uma deontologia própria (decoro profissional circunstanciado ao código de ética de uma categoria).

Determinismo histórico

A prevalecer uma visão marxista e ortodoxa do jornalismo praticado pelas empresas capitalistas ou por um Estado burguês, não haveria como conceber essa atividade a serviço da emancipação social. O jornalismo seria, então, uma perigosa ferramenta de alienação das massas. O jornalismo para ser autêntico careceria de uma libertação de si próprio, uma espécie de maturidade ideológica, o que implicaria, lamentavelmente, uma ideologização da própria atividade e uma cisão entre o ‘jornalismo reacionário’ e o ‘jornalismo progressista’. Tal maniqueísmo resultaria num separatismo valorativo e qualitativo, bem como na necessidade de os atores e autores se identificaram como fazendo parte de uma espécie de além-jornalismo, um parajornalismo e, consequentemente, na negação do ‘jornalismo não-engajado’, pois este seria o não-jornalismo, mas lobo em pele de cordeiro, com intentos de devorar o próprio.

A prevalecer uma visão ortodoxa [a luta de classes como paradigma absoluto] do jornalismo como ‘correia-de-transmissão-do-capitalismo’, o leitor de um jornal ou de uma revista, por exemplo, iria à banca com uma preocupação a priori acerca do risco embutido nas informações a serem obtidas: conteriam elas a mácula original do germe da reprodução dos fatores desiguais nas relações de troca? Que valores estariam inseridos originariamente nos valores-notícia dos fatos noticiados? Poderia um veículo burguês de comunicação noticiar um fato sem que esse fato estivesse inexoravelmente refratado pelo prisma da exploração e da alienação? Ou, havendo chances de se inteirar da ‘realidade’, a despeito do caráter burguês da mídia em geral, como separar o joio do trigo? Mais prático selecionar por atacado, selecionando os fornecedores? Dentre os fornecedores selecionados haveria segurança quanto à quantidade e à qualidade dos ‘fatos’ disponibilizados? Ou seria mais útil vigiar o trigo comprado e, aqui-acolá, flagrar amostras do joio intrometido? Aparentemente, essa seria uma vigilância necessária e permanente, com relação a qualquer ato da vida e do cotidiano, uma espécie de cogito para a própria existência: critico, logo sou, uma versão delta para o cogito cartesiano penso, logo existo. Não seria esse o papel do metadiscurso produzido pelos instrumentos à disposição do media criticism?

Qual seria a ideologia da verdade? A ideologia do jornalismo estaria na crença de que, a despeito de interesses políticos e econômicos é possível ao jornalismo transmitir a verdade, se a verdade prevalecer na sua condição de dever. Rui Barbosa, já senil e doente, recebeu em 1920 um apelo: dissertar numa conferência benemerente (em prol do Abrigo dos filhos do povo, um orfanato de Salvador, Bahia) sobre o papel da imprensa. Foi então que escreveu o clássico O dever da verdade [A imprensa e o dever da verdade, de Rui Barbosa, 128 pp., Editora Papagaio, São Paulo, 2004], reeditado em 2004.

A palestra de Rui teve de ser lida por um amigo, o advogado João Mangabeira. A enfermidade não tirou do lúcido Águia de Haia a acuidade em identificar dois graves problemas da imprensa de seu tempo (mas jamais extintos), o suborno e a dependência das verbas oriundas dos cofres públicos, manipuladas por governantes. A despeito de todas as deformações que encontra nas práticas jornalísticas de então, o grande jornalista que foi Rui Barbosa não deixa de acreditar firmemente na capacidade da imprensa de atuar como ‘os olhos da sociedade’.

Como já tivemos oportunidade de comentar em resenha sobre a reedição de O dever da verdade [intitulada ‘Rui Barbosa e o dever da verdade‘], ‘Ao longo de sua palestra, o velho Rui manifesta um intenso nojo pelas relações incestuosas entre governos e imprensa, já que `a imprensa é a vista da Nação´.’ Outra advertência dele: ‘Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida: o receio de tudo, dependência de todos; rumo à mercê do acaso; a cada passo, acidentes, perigos, despenhadeiros. Tal a condição em que a publicidade se avariou, e, em vez de ser os olhos, por onde se lhe exerce a visão, ou o cristal, que lha clareia, é a obscuridade, onde se perde, a ruim lente, que lhe turva, ou a droga maligna, que lha perverte, obstando-lhe a notícia da realidade, ou não lha deixando senão adulterada, invertida, enganosa.’

Parafraseando Rui Barbosa, o problema da imprensa não está na imprensa em si, mas nas suas atribulações, a serem resolvidas, senão, confortadas. Nesses 90 anos que nos separam da conferência mencionada, há pelo menos uma cultura de crítica da mídia, que pode ser traduzida na forma como tem surgido em numerosos países os chamados Meios de Assegurar a Responsabilidade Social (MARS) [o assunto foi objeto de uma tese de doutorado – ‘Responsabilidade Social da Mídia. Análise conceitual e perspectivas de aplicação no Brasil, Portugal e Espanha’ – do prof. Fernando Oliveira Paulino, defendida na Universidade de Brasília, em 2008, transformada em livro: Brasília, Casa das Musas, 2009], entre eles, conselhos, ouvidorias, observatórios e, no Brasil, desde 2005, a Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi).

Retórica e contradição

O exercício permanente da crítica ao jornalismo seria fácil se o leitor não necessitasse do jornalismo para a própria tomada de consciência do mundo. Aliás, jornalismo seria, originariamente, não em definitivo a oferta diária de notícias-produto por produtores de notícias, mas a própria cognição do mundo, tripartida em três patamares de ação: objetivação, subjetivação e intersubjetivação, categorias a que retornaremos mais à frente.

Todos os ‘fornecedores’ de notícia, por um determinismo enunciativo, apresentar-se-ão como portadores do archote da verdade ou, quando menos, da aproximação máxima e possível da própria. O problema da verdade é que ela se presta à apropriação de todos, entre eles, os mentirosos e os delirantes. Um recurso a serviço do leitor seria o da utilidade, a utilidade como um filtro, ainda que acrítico. Ou, quem sabe, a utilidade fosse uma espécie de grau zero da crítica: ‘Este produto me serve?’, ainda que de má qualidade; ainda que contaminado; ainda que seja apenas dos males o menor; ou, é ‘o que há neste momento’.

Seria o jornalismo uma compreensão delegada do mundo? ‘Eu sou capaz de conhecer a realidade, mas há dispositivos especializados em apresentar a realidade e para tanto bem mais aparatados do que a minha compreensão individualizada e limitada.’ ‘Preciso do jornalismo como uma construção avançada e indispensável da realidade.’ Num mundo vasto e numa sociedade complexa, parece não haver sobrevivência crítica possível sem essa tecno-dependência, que é a demanda cotidiana e até simultânea dos processos de mediação [a busca dos meios e soluções] e de midiação [suportes materiais para o permanente exercício da polêmica em torno do bom, do belo, do justo e do bem, em síntese].

A notícia não é, porém, um produto inerte e cabível numa fôrma e numa embalagem. Nem o seu conteúdo destina-se a um usufruto único por parte de qualquer ‘consumidor’ isolado. Aliás, notícia nem seria um produto de consumo, e muito menos desses de descarte imediato. Por se destinar à consciência e não ao corpo, o valor da notícia terá de ser classificado muito mais como valor de troca do que como valor de uso. O principal proveito de uma notícia será, portanto, o proveito dialógico e dialético, insumo para a partilha e para o cotejo das informações; possivelmente, combustível para o debate, para a polêmica e até o para o conflito.

Cognitivamente, três seriam as categorias de apropriação da notícia: 1) a primeira, pela objetivação, ou seja, a notícia como um fator proporcionador e facilitador de contato com a realidade objetiva e com as objetivações possíveis 2) a segunda, pela subjetivação, isto é, a notícia como um valor a ser contextualizado no universo de uma determinada subjetivação do mundo, seja por parte de indivíduos que comungam de determinado gênero, classe, interesse – identidade, em síntese; 3) a terceira, pela intersubjetivação, ou seja, as diversas possibilidades de apropriação partilhada [discutida] de um mesmo ‘fato noticioso’ por parte de distintos segmentos da sociedade, alinhados seja por interesses, seja por opiniões diversas – diferentes cosmovisões, ou, se semanticamente mais apropriado, por diferentes ideologias.

Poderá a notícia ser qualificada como um serviço público? Ou, noutra acepção, um serviço ao público. Esta poderia ser uma maneira de despojar os ‘fatos’ de sua carga ideológica e, mais uma vez, o assoalho universalizador seria o da utilidade. Existiriam notícias úteis para todos, independentemente de gênero, raça, classe, interesses? Existiriam notícias de interesse público? Isto é, capazes de ‘servir’ a todos, indistintamente? Existiria uma espécie de ‘semiótica científica’ dos fatos, capazes de apresentá-los de forma absolutamente refencial-denotativa? Existiria um ‘serviço público’ de notícias? Existiria a possibilidade de qualquer serviço noticioso atuar como fornecedor dessa matéria-prima chamada interesse público?

Estaríamos, aqui, navegando num rio de duas margens, mas à procura de uma terceira [analogia tirada do renomado conto de Guimarães Rosa, ‘A terceira margem do rio‘, parte do livro Primeiras Estórias (1962)] que, de tão ampla e universal, prestar-se-ia mais à condição de foz e, em seguida, de mar ou oceano, do que a continuidade de um fluxo. Utilidade pública; interesse público; e serviço público seriam jusantes e não montantes; resultados e não intenções; apropriação coletiva e, portanto, leitura-representação somente re-conhecível por métodos empíricos: sondagens; tendências; fatos sociológicos – e não mais jornalísticos.

A democracia e, portanto, a pluralidade de versões, seria um fator muito mais determinante das possibilidades de sobrevivência dos valores clássicos do jornalismo do que a pretensa objetivação dos fatos por indivíduos, indivíduos-repórteres; indivíduos-chefes; indivíduos-editores; indivíduos-donos; coletivos-trabalhadores; coletivos-patrões; coletivos-sujeitos. A notícia encontraria, então, seu sentido e seu valor muito mais na apropriação coletiva dos ‘fatos’ narrados (na gênese narrativa) e re-narrados na confluência do caudal das versões-contributos [discursividade]. E essa apropriação coletiva se daria em dois patamares básicos, o primeiro, da utilidade-interesse-serviço; o segundo, do uso denotativo-conotativo-pragmático, a notícia como uma práxis e, portanto, como uma ação transformadora socialmente autônoma – e não dirigida (manipulada ou seduzida) por parte deste ou daquele segmento (em detrimento de outros).

Imprensa e serviço público

Para que serve um jornal?

Valemo-nos de um episódio em que esta questão foi colocada para ilustrar o quanto esta preocupação pode ser partilhada coletivamente. Em 18 de julho de 1999, durante um comício, o ex-governador do DF, candidato à reeleição, Joaquim Roriz, indignado contra as denúncias de irregularidades na sua campanha, publicadas pelo Correio Braziliense (CB), incitou a multidão a um boicote àquele ‘jornal sem serventia’, ao mesmo tempo que convidava o seu público a fidelizar-se ao Jornal de Brasília (aliado seu e adquirido por um novo grupo empresarial, com financiamento do BRB, o banco distrital). Para que, um jornal?, indagou Roriz, em seu discurso.

No dia seguinte, o CB publicou uma primeira página sui generis: tendo como manchete a expressão ‘Para que serve um jornal’ e, abaixo dela, apenas o texto correspondente. Ou seja, uma primeira página com um só texto. As chamadas para as matérias limitaram-se a um rodapé, na horizontal. Originalmente escrito pelo jornalista TT Catalão, para ocupar o espaço de sua crônica, o texto foi elevado à categoria de manifesto, tão logo foi lido pelo então editor-chefe, Ricardo Noblat. Era não somente uma resposta à provocação de Roriz, mas uma peça retórica e ideológica, de afirmação da instituição jornal como um serviço público, seguindo, de certo modo, a inspiração iluminista das primeiras linhas escritas no antigo Correio Braziliense por Hipólito José da Costa: ‘O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela.’

‘Para que serve um jornal’, assumido pelo CB como carta de princípios [e emoldurado em pôster gigante que se manteve por vários anos na entrada de sua redação], enumerava uma série de funções atribuídas a ‘um jornal’, mas era sobretudo pontuado com a expressão, em negrito, ‘um jornal serve para servir’. O texto foi enfático em realçar a diferença entre serviço e servidão:

‘Um jornal não tem senhores, domínios, posses ou possessões. Um jornal serve quando não é escravo até do seu próprio sucesso. Então pra que serve um jornal, mesmo? Um jornal serve para publicar o que se fala, refletir o que se publica, aprofundar o que se opina sobre o publicado e ampliar todas as opiniões sobre o dito e o refletido.’

Com muita frequência, os veículos de comunicação de massa apelam pelos mais elevados valores da liberdade, da democracia e da independência, especialmente, quando identificam algum sinal de ameaça ao exercício das suas atividades e, por vezes, também dos seus interesses econômicos. Quando da campanha pelo banimento da publicidade de cigarro dos canais abertos de TV, a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) considerou tal limite como um atentado à liberdade de expressão. Posicionamento semelhante houve quando as emissoras de TV insurgiram-se contra a classificação indicativa por faixa etária dos conteúdos de diversões públicas – incluindo as telenovelas. A Abert, por meio de seus advogados, obteve não só o direito da auto-classificação de conteúdos por parte das TVs – derrubando 19 anos de prática constitucional, exercida pelo Ministério da Justiça – como obteve o apoio de artistas que vieram a Brasília ‘lutar’ contra ‘a volta da censura’’, um sofisma, evidentemente, já que censura é o exame prévio de conteúdo com possibilidade de restrição à sua publicação não a classificação indicativa dos mesmos. Para o público-audiência desses veículos, era como se a censura do regime militar estivesse de volta.

Paladinos da liberdade são todos os ‘grandes homens da imprensa’, grandes, tanto no sentido que contribui para enobrecer a biografia de próceres da liberdade, os chamados publicistas – a exemplo de Benjamin Franklin, de Hipólito José da Costa, de Rui Barbosa e de Barbosa Lima Sobrinho – como no sentido atribuído aos barões-da-mídia e suas posições liberais, liberalismo, no entanto, por vezes mais direcionado para a liberdade de mercado do que propriamente para a liberdade de publicar incondicionalmente a verdade dos fatos. Vejamos o que, a propósito, refere o professor Venício A. de Lima [na leitura que fazemos de Venício Arthur de Lima (UnB), em sua profícua produção de artigos sobre a mídia brasileira e da forma como ela se apropria da defesa da liberdade de imprensa, preferimos fazer a distinção entre liberdade de pensamento (think); liberdade de expressão (speech); liberdade de publicização (press); e liberdade de impressão (print)]:

‘As diferenças começam com o próprio significado da palavra imprensa. Creio que o herdamos da língua inglesa. Nela, porém, existe uma distinção entre speech (palavra), print (imprimir) e press (imprensa) que, na maioria das vezes, não se faz entre nós.’

Paladinos da liberdade são igualmente os assalariados da imprensa; os jornalistas-empregados; os editores; os repórteres; a categoria sindicalizada e militante tanto pelas condições salariais de trabalho, quanto pelas condições de não serem intimidados na sua missão de fidelidade aos fatos cobertos e apurados. Em suas campanhas trabalhistas e em suas campanhas temáticas, como a eterna luta em favor do ‘jornalismo por formação’ e, consequentemente, em favor de uma profissão legitimada por um diploma obtido em curso superior de jornalismo reconhecido pelo Ministério da Educação, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) sempre procura destacar, entre outros, dois aspectos: a) que os seus ideais encontram o apoio da sociedade; b) que somente uma formação de qualidade poderá assegurar à sociedade a prática de um jornalismo isento e democrático.

Paladinos da liberdade são todos os retores que, ocasional e oportunamente, se manifestam em defesa da liberdade de expressão; da liberdade de imprensa; e do reconhecimento dos dois valores anteriores como intrínsecos à existência de uma democracia. Equação inquestionável é, portanto, a biunivocidade que se estabelece entre democracia e liberdade de expressão; entre liberdade de expressão e democracia, par interdependente; interconstitutivo.

Defender a liberdade de expressão e valores, como: independência; isenção; objetividade; credibilidade; e cidadania, entre outros, é um atitude que transcende a relação capital x trabalho e também as diferenças étnicas, de gênero e outras, a despeito da inexistência de reconhecimento de legitimidade entre contendores. Quando um patrão fala em nome da liberdade de imprensa, um virtual empregado dirá: ‘Ele está confundindo liberdade de imprensa com liberdade de empresa.’ Em contraposição, quando o trabalhador fala em liberdade de imprensa, o ‘patrão’ poderá interpretar que ‘ele está falando em tomada de poder’.

Haveria possibilidade de a imprensa e a notícia ultrapassarem as lutas pelo poder e alcançar o público como um destinatário, acima das pelejas de classe, etnia, gênero etc? Haveria possibilidade de leituras intersubjetivas dos fatos, numa sociedade plural e democrática? Em jogo, portanto, a construção jamais finda da liberdade, da cidadania, da democracia e da justiça, que são processos construtivos e, portanto, jamais concluídos. Por extensão, também não temos uma sociedade autônoma, no sentido de se ter livrado das heteronomias [imperialismos, classes dominantes, patrimonialismos etc.].

Paralelamente à liberdade, à cidadania, à democracia e à justiça e, em síntese, a uma sociedade autônoma, poderíamos compreender o jornalismo igualmente como um campo construtivo [na acepção do construtivismo]. Não temos um jornalismo emancipado e emancipador, mas temos um processo estadial-construtivo. Enquanto isso, louvável o esforço de quem quer que seja no sentido de agregar à notícia algo para além do seu primário valor-notícia. E que agregação seria essa? E a serviço de quem?

Valor-notícia e valor-serviço

Em pesquisa que desenvolvemos com bolsa do CNPq, intitulada ‘O jornalismo como teoria democrática’, construímos a hipótese segundo a qual mais que avaliar o desempenho dos órgãos de imprensa pela sua coloração ideológica ou pelo seu nível de dependência econômica, seja dos governos, seja dos anunciantes, é fundamental levar em conta um outro diferencial: o nível de agregação de valor-serviço às notícias e reportagens.

Estamos denominando de valor-serviço a produção de informações adicionais ao fato noticiado, de modo a facilitar a sua contextualização e de modo que o destinatário possa dispor de elementos para exercer melhor a sua cidadania a partir do fato noticiado, o que somente se torna possível se para além dos valores-notícia que geraram a seleção e hierarquização do fato noticiado (principais critérios de noticiabilidade), a narrativa e a edição da matéria incorporar serviço, conceito difuso, mas facilmente identificável entre uma notícia que simplesmente ‘notifica’ o ocorrido e outra que além de ‘notificar o ocorrido’ fornece informações, dados, utilidade pública e contexto (cultural, social, estatístico e histórico).

A agregação de uma segunda camada de valor à notícia, faz com que ela adquira um valor duplo (valor-notícia + valor-serviço) e, consequentemente, um valor agregado. Havendo valor agregado, pode-se deduzir que houve mais trabalho, ou melhor, mais sobretrabalho. Tais acréscimos, no entanto, que à primeira vista poderiam aparentar mais incorporação de mais-valia e em decorrência maior apropriação do trabalho excedente por parte do capital, não representam uma radicalização de um sistema de ‘exploração do homem pelo homem’, uma vez que num modo de produção como esse a apropriação se dá de forma coletiva, e não privada. Ora, se a apropriação dos excedentes é coletiva, a notícia estará cumprindo um papel socialmente emancipatório e não de reprodução da alienação da produção e da consciência que resultam do trabalho.

Complementando a hipótese referida, haveria um modo de produção jornalístico capaz de funcionar como uma práxis; capaz de funcionar como ação transformadora da realidade, ainda que eventualmente ao custo da exploração do jornalista como mão-de-obra barata. O importante da agregação de utilidade pública; interesse público; e serviço público à notícia é que a apropriação desse valor agregado não é privada, e sim coletiva. Essa possibilidade gera uma nova compreensão do papel da notícia e do papel do jornalista na sociedade: a socialização da informação, por sua vez transmutada em saber. Gera a possibilidade de progressos, ainda que não definitivos (no sentido revolucionário, da tomada do poder e da instauração de uma ‘nova’ ordem).

A se tomar como um marco a magistral conferência de Rui Barbosa, poder-se-ia estabelecer como marco secular o ano de 2020, quando a atual geração dos veteranos no jornalismo ainda teríamos, com certeza, muitos reparos a fazer aos problemas da sociedade brasileira e às contribuições do jornalismo para o seu progresso.

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Jornalista, professor da Universidade de Brasília